O problema do ser: transcendência e imanência divina

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Data: 21-Nov-2017
De: Frei E
Cidade:
Assunto: o problema do ser: transcendência e imanência divina

***

o Senhor esteja convosco!

Assisti a aula sobre o problema do ser e, embora entendo que ela se dirigia à formação introdutória de leigos e por isso ocorria em tantas generalizações, ocorreu-me que também por isso o jovem acabou por ensinar um erro. Pergunto portanto ao jovem professor Emerson o que ele quis dizer, quando a aula chegava aos 49 do segundo tempo e um aluno lhe fez a pergunta pela imanência e trancendência divina. O jovem responde que dizer que Deus é transcendente é o mesmo que dizer que Ele não está substancialmente conosco, exceto pela Graça e na Eucaristia. Mas o que dizer, então, dos vinte anos de sofrimento de nossa madre Santa Teresa tentando entender a mesma questão, que ela relata em sua Vida:

“No princípio, atingiu-me uma ignorância de não saber que Deus está em todas as coisas, o que, como ele me parecia estar tão presente, eu achava ser impossível. Eu não podia deixar de crer que ele estivesse ali, pois achava quase certo que percebera a sua presença. Os que não tinham letras me diziam que ele só estava ali mediante a graça. Eu não podia acreditar nisso, porque, como digo, sentia a sua presença. Por isso, ficava aflita. Um grande teólogo da Ordem do glorioso São Domingos (Frei Vicente Barrón) me tirou dessa dúvida, ensinando-me que o Senhor está presente e se comunica conosco”.

Foi ao saber desta doutrina que Santa Teresa escreveu sua obra, iniciando o Castelo Interior justamente alegando que Deus está, sim, na alma humana. Este ensinamento do frei dominicano, acaso os queridos jovens amigos desconheçam, diferente da presença objetiva, que é quando ele cria o organismo sobrenatural da Graça para habitar a alma de modo santificante, se trata da doutrina da presença ativa de imensidade, pois os espíritos que não têm corpo para se localizarem no espaço são considerados presentes onde exercem atuação. E, uma vez que Deus cria e mantêm no ser toda criatura, a esta ação não é incorreto dizer que ele ali está substancialmente presente na alma… Ele sustenta, nos penetra e nos envolve. Não há um único átomo do nosso ser onde ele não esteja presente, um único movimento dos nossos membros ou das nossas faculdades que ele não tenha animado. Esta presença de Deus na alma (Castelo) não é um símbolo, uma criação da imaginação, nem aquele sentimento religioso condenado pelo grande São Pio X. É uma realidade. Deus habita verdadeiramente na alma e esta é a grande certeza que fez de Santa Teresa Doutora da Igreja… sem inovar ou revolucionar em nada (se este é o grande medo dos irmãos, que já notei que são mais da linha conservadora!), pois já São Justino, Cleanto, Agostinho e mesmo os estoicos já sabiam que na alma existe uma “Logos spermakitós”… uma semente do Logos, uma centelha divina no homem!… Há mais de 2 500 anos a humanidade sabe disso, e Santa Teresa confirmou. Vocês estão no caminho certo, meus filhos, se esforçando para partilhar estes temas tão difíceis de fé e razão, mas rezarei para que vocês penetrem o mistério da fé e possam também entender que

Ele está no meio de nós!

abraços fraternais,

Frei E.

***

Resposta

Prezado Frei E., salve Maria!

Primeiramente, que Deus lhe pague as palavras de incentivo ao nosso trabalho. Pedimos suas orações e as de seus confrades para o bom êxito deste apostolado. Afinal de contas, a vida contemplativa é o “combustível” da vida ativa.

Na questão suscitada, o senhor afirma, fundamentando-se em “Santa Teresa Doutora da Igreja”, que acabei “por ensinar um erro” sobre a transcendência divina.

Sem prejuízo da autoridade de Santa Teresa, é forçoso reconhecer a necessidade de explicar com mais detalhe e clareza esse tópico doutrinário, relativo à presença de Deus nas coisas.

Para tanto, recorremos aos préstimos do Doutor Comum da Igreja, S. Tomás de Aquino, que, para nossa satisfação, trata exatamente desse tema na primeira parte da Suma Teológica, na questão número oito (I, q. 8).

Nessa questão, S. Tomás prova que sim, Deus está em todas as coisas. O argumento invoca a Sagrada Escritura (texto do profeta Isaías XXVI, 12) e o princípio filosófico segundo o qual “onde algo opera, aí está”.

Para evitar, porém, toda confusão a respeito do modo dessa presença do “operante” no “operado”, S. Tomás continua explicando que “Deus está em todas as coisas, não como uma parte da essência delas, ou como um acidente, mas como o agente presente naquilo em que age. (…) Portanto, enquanto uma coisa possui o ser, é necessário que Deus esteja presente nela, segundo o modo pelo qual possui o ser” (Suma Teológica I, q. 8, a. 1, Edições Loyola, 2001 – negrito meu). Para dar um exemplo clássico, analógico como são sempre os exemplos, na medida em que o fogo aquece a panela está presente na panela, pois o calor dela depende inteiramente da ação do fogo.

Mais à frente, no 3º artigo da mesma questão, S. Tomás usa o termo “essência” e é explícito quanto ao que se deve entender por isso. Diz ele: “Ele [Deus] está em tudo por sua essência, porque está presente em todas as coisas como causa do ser de todas elas” (Suma Teológica I, q.8, a. 3, Edições Loyola, 2001 – sublinhado e negrito nosso).

Perdoe-me a insistência, mas, por favor Frei Elias, repare no sentido que o Aquinate quer dizer “essência”, isto é, não como constituinte das criaturas, mas como causa do ser de todas as coisas.

De fato, as criaturas são seres contingentes, sua existência é sustentada pelo Criador. Se Ele as “deixasse” de sustentar, nada mais existiria. Para voltar a nosso exemplo, se o fogo não continuar sustentando o calor da panela, esse deixa de existir, e a panela fica fria. Daí se concluir que Deus está sempre presente enquanto causa da existência das coisas. Isso é bem diferente da presença real, em corpo, sangue, alma e divindade, nas Espécies Consagradas.

Se não fosse assim, toda criatura, inclusive Lúcifer, teria natureza divina, uma vez que em Deus a essência divina é a própria natureza divina, pois Ele é Uno e Simples. Ora, mas isso seria cair nos mais puros Panteísmo e Gnose. Assim, enquanto parte constitutiva dos seres, Deus não pode estar em tudo.

Também na Suma contra os Gentios (no Livro I, Capítulo XXVI) S. Tomás expõe a mesma doutrina de maneira mais detalhada:

Se Deus fosse o ser de todas as coisas [constitutivamente], seria então algo em todas as coisas e não estaria acima delas [como S. Paulo diz na Epístola aos Romanos IX, 5 – “Ele está sobre todas as coisas”]. (…) Se, pois, Deus é o ser de todas as coisas, não é mais verdade[deiro] dizer que a pedra é ser do que dizer que a pedra é Deus. (…) Quando, porém, se diz que a divindade é o ser de todas as coisas, quer-se dizer que se encontra em todas elas alguma semelhança do ser divino. (…) A quarta causa que pode induzir a tal erro está na maneira de falar, segundo a qual dizem que Deus está em todas as coisas. Ora, não compreenderam alguns que Deus não está nas coisas como parte delas, e sim como causa das mesmas, causa que de nenhum modo falta a seus efeitos. Também não é com o mesmo sentido que dizemos estar a forma [alma] no corpo e que o nauta [tripulante] está na nave” (Suma contra os Gentios, vol. 1, p. 66 – tradução de D. Odilão Moura e D. Ludgero Jaspers – negrito nosso).

Embora a demonstração de S. Tomás seja suficiente para a solução da questão, julgamos oportuno lançar mão de um argumento acessório, haja vista a aparente colisão das afirmações de Santa Teresa de Jesus e de São Tomás. Ora, como é cediço, na Doutrina da Igreja não pode haver contradições, pois Ela é a coluna da Verdade, fundada pela própria Verdade Encarnada.

Destarte, a sintética afirmativa de Santa Teresa, Doutora da Igreja, por coerência doutrinária, deve se coadunar às distinções especificadas por S. Tomás de Aquino, Doutor da Igreja, o que, de fato, podemos constatar exatamente pelo próprio testemunho da Santa, o qual o senhor transcreveu.

Com efeito, Santa Teresa – que escreveu a obra “O Castelo Interior” em 1577, 14 anos após o Sacrossanto Concílio de Trento (1563), Concílio que se utilizou da Suma Teológica para a fundamentação da Doutrina ali deliberada – buscou auxílio de “um grande teólogo da Ordem do glorioso São Domingos (Frei Vicente Barrón)”. Assim, é razoável admitir que este dominicano tenha explicado os argumentos postos acima.

Por uma gentil ironia de Nosso Senhor, estou eu a repetir o episódio registrado na História da Igreja, porém ao modo inverso de… Santidade: lá, a Santa Doutora consultou um teólogo dominicano não-santo; aqui, um não-santo ignorante buscou auxílio d’O Teólogo Dominicano Santo Doutor. Apesar, e com muito pesar, da abissal diferença entre a Santa e o pecador, bebemos da mesma fonte que irrigou o Infalível Concílio.

Ademais, cabe aqui um mea culpa. No trecho da videoaula, objeto desta missiva, reconheço que usei erroneamente um termo para se referir a Deus Nosso Senhor. Na ocasião, eu dissera que “Deus não está substancialmente conosco”, quando o correto é “Deus não está essencialmente conosco”, no sentido constitutivo do ser. Precisão a ser feita, pois S. Tomás demonstra que não cabe o gênero substância a Deus.

E para concluir, permita-me um pequeno comentário sobre o suposto aval que Santa Teresa teria de Santos, e até de estoicos (!), dos primeiros séculos do Cristianismo. O senhor diz que “Deus habita verdadeiramente na alma e esta é a grande certeza que fez de Santa Teresa Doutora da Igreja… sem inovar ou revolucionar em nada (se este é o grande medo dos irmãos, que já notei que são mais da linha conservadora!), pois já São Justino, Cleanto, Agostinho e mesmo os estoicos já sabiam que na alma existe uma “Logos spermakitós”… uma semente do Logos, uma centelha divina no homem!…”.

O senhor, curiosamente, fez-me lembrar de alguns teólogos atuais que, infelizmente, buscam justificativas para uma linha não tão ortodoxa, dispensando a clara e precisa explicação do Santo Doutor Comum da Igreja de Sempre, que viveu na Idade Média mais foi recomendado por praticamente todos os Papas, de João XXII ao Papa Francisco, mas indo buscar citações até de nomes da Antiguidade.

Porém, não é necessário ir tão longe, buscando fundamento nos estoicos. Creio que a autoridade do Evangelista S. João basta.

Em sua Primeira Epístola (III, 9), o Apóstolo amado diz: “Todo aquele que nasce de Deus não comete pecado, porque a semente de Deus permanece nele, e não pode pecar porque nasceu de Deus. Nisto, se distinguem os filhos de Deus dos filhos do demônio” (negrito nosso).

Evidentemente, não podemos entender a expressão “semente de Deus” como o senhor a entende e quer atribuir a Santa Teresa, pois senão “haveria alguns homens divinos e outros nascidos para o mal, o que é evidentemente herético. Por isto Santo Agostinho, ao comentar este texto de São João, o relaciona com o estado de graça e com o estado de pecado” [cfr. Comentário da Primeira Epístola de São João, pp. 105-106] (FEDELI, Orlando. Cartas sobre o Concílio – Vaticano IIModernismo e Eclesiologia. São Paulo: Flos Carmeli Edições. 2020).

Assim, Santo Agostinho, Doutor da Igreja, entende a expressão “semente de Deus” como sendo a Graça Santificante que está no homem.

Sem inovar ou revolucionar em nada.

Quanto a S. Justino Mártir e sua expressão “semente do Logos”, apoio-me num comentário do então Papa Bento XVI, citado num blog que trata exatamente desse assunto.

“Bento XVI explica o pensamento de Justino:

‘(…) Cada homem, como criatura racional, é partícipe do Logos, leva em si uma “semente”, e pode colher os indícios da verdade. Assim o mesmo Logos, que se revelou como figura profética aos Judeus na Lei antiga, manifestou-se parcialmente, como que em “sementes de verdade”, também na filosofia grega. Mas, conclui Justino, dado que o cristianismo é a manifestação histórica e pessoal do Logos na sua totalidade, origina-se que “tudo o que foi expresso de positivo por quem quer que seja, pertence a nós cristãos” (2 Apol. 13, 4). (…)’ (RATZINGER, Joseph. São Justino, filósofo e mártir. Audiência Geral, Quarta-feira, 21 de março 2007)

Portanto, aquele pagão que nunca ouviu o anúncio da Igreja, e que sob o influxo da graça vive de acordo com o ditame da consciência, ou seja, de acordo com o Verbo que ilumina todo homem que vem ao mundo, poderá ser salvo, pois está em ignorância invencível, e só lhe resta o ditame da consciência” (OLIVEIRA, Lucas H. Firmat Fides: São Justino e a semente do Verbo. Disponível em: < https://firmatfides.wordpress.com/2014/08/26/sao-justino-e-a-semente-do-verbo/ &gt; Desde 25/08/2014, negrito nosso).

Destarte, S. Justino Mártir, usa a expressão “semente do Logos” como sendo o ditame da consciência, isto é, a Lei Natural escrita nos corações (cfr. Epístola de S. Paulo aos Romanos II, 14-15) de todo homem que vem ao mundo.

Portanto, desde S. João Evangelista até Santa Teresa, dado que a Verdade Católica é imutável, é evidente a coerência doutrinária.

Ad Majorem Dei Gloriam

Emerson Takase

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