Romantismo e Modernismo

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Orlando Fedeli

ROMANTISMO E MODERNISMO

 

Sumário

Introdução: as origens do romantismo

I. A doutrina do modernismo

II. Doutrinas românticas

1. Quadro histórico do Romantismo

2. Conceito de Romantismo

3. Conhecimento e Metafísica do Romantismo

4. Romantismo e Gnose

5. Irracionalismo e Dialética do Romantismo

6. Negação da verdade objetiva no Romantismo

7. Imaginação e Romantismo

8. Identidade entre Sujeito-Objeto no Romantismo

9. Imanência e Transcendência de Deus segundo o Romantismo

10. A Presença divina no Homem- O germe divino no homem

11. Sentimento e revelação no Romantismo

12. Romantismo e Ecumenismo

13. Romantismo e Igreja Primitiva

14. Separação ente Igreja e Estado: o Estado deveria ser laico

15. Igreja pobre e sem estruturas. Igreja igualitária.

16. Kant e a negação do valor do intelecto

17. Schelling e a Gnose romântica

18. Friedririch Daniel Ernst Schleiermacher

19. Wilhelm Dilthey

20. Max Scheler

CONCLUSÃO

***

Introdução: as origens do romantismo

É bem conhecida nos ambientes universitários mais desenvolvidos a relação entre Romantismo e a Gnose. Os trabalhos de Ernst Benz (Les Sources Mystiques de la Philosophie Romantique Allemande, Vrin, Paris 1968), de Auguste Viatte (Les Sources Occultes du Romantisme, Honoré Champion, Paris, 1979), de Albert Begin (L’Âme Romantique et le Rêve), G. Gusdorff (Le Romantisme, Payot, Paris, 1983-1993), entre outros, mostraram bem as fontes gnósticas esotéricas, e cabalistas do Romantismo através das obras místicas de Jacob Boehme.

Também é muito importante para conhecer as origens do Romantismo alemão estudar a obra de Antoine Faivre sobre o esoterismo na Alemanha no século XVIII (L’Ésotérisme en France et en Allemagne au XVIII ème siècle).

No Brasil, a coletânea de ensaios sobre o Romantismo elaborada por J. Guinsburg, – O Romantismo (Perspectiva, São Paulo 1972), assim como as obras de Massaud Moisés são fontes excelentes para se conhecer o fundo religioso do Romantismo.

Examinando-se a questão pelo lado da Gnose, as obras de Simone Pétrement, de Denis de Rougemont, e de muitos outros especialistas demonstram como o Romantismo é uma manifestação da Gnose antiga. Para um exame mais completo da bibliografia quer, do lado do Romantismo, quer do lado da Gnose, que se nos permita indicar a lista bibliográfica constante de nossa tese de Doutoramento sobre Romantismo, Cabala e Esoterismo, aprovada pela USP, em 1988. Em nossa tese, mostramos como o Romantismo foi formado por três veios; o pietismo nascido das doutrinas cabalistas de Jacob Boehme, o esoterismo e o Idealismo alemão, todos os três veios de caráter gnóstico.

A renovação dos estudos antigos no Renascimento abrangeu também os estudos hebraicos, integrados no grande patrimônio cultural do ocidente. O hebraisante Reuchlin, professor de Tubingen e mestre de Melanchton, foi cativado pela Cabala, à qual ele consagrou diversas obras, em particular o De Arte Cabbalistica (1517). Vai se firmando a ideia de que se pode elaborar uma Cabala cristã cujas interpretações tornam a ligar o Novo testamento ao Antigo, em benefício do Messias anunciado pelos Profetas. O iluminismo pietista recolhe esses ensinamentos que fazem parte do patrimônio secreto da confraria dos Rosa Cruz desde o século XVII. Esse saber atravessou os séculos até o momento em que ele se afirma com um vigor renovado no iluminismo romântico. (Georges Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, Payot, Paris 1983, p.185).

Se a ligação do Romantismo com as doutrinas da Gnose e da Cabala são conhecidas, não conhecíamos nenhuma obra que fizesse um relacionamento explícito entre o Romantismo e a heresia do Modernismo, condenada por São Pio X, na encíclica Pascendi, em 1908. Agora, enquanto redigíamos este trabalho, foi publicada na Europa, uma excelente obra, tratando desse tema. Referimo-nos ao livro do Abbé Dominique Bourmand, Cent Ans de Modernisme Généalogie du Concile Vatican II, Ed Clovis, Étampes, 2003.

Finalmente, essa relação é exposta sistematicamente, o que facilita compreender como os católicos foram preparados para aceitar os erros modernistas pela mentalidade romântica, largamente difundida no clero e nos meios paroquiais.

O Romantismo estendeu sua influência a todas as esferas do pensamento, no século XIX, incluindo, evidentemente a Filosofia e a Política. Assim é que o Simbolismo, as doutrinas de Bergson e de Blondel – sem esquecer a Psicanálise de Freud – que tanto influíram no Modernismo, estavam empapadas de teses românticas.

Neste artigo, queremos mostrar a ligação de alguns autores românticos com a Gnose do Modernismo.

Foram estas doutrinas que acabaram triunfando no Concílio Vaticano II dando origem à crise atual da Igreja (conforme nosso trabalho Doutrinas Modernistas no Concílio Vaticano II – Resposta ao Instituto Paulo VI de Brescia). Daí nosso interesse em focalizar este tema.

I – A DOUTRINA DO MODERNISMO

Na encíclica Pascendi, São Pio X afirma que o Modernismo é a cloaca para onde confluíram todas as heresias. Diz ainda que essa heresia penetrou na Igreja de tal modo que, os inimigos dela já não deveriam ser buscados fora, mas dentro dela, especialmente nas fileiras do Clero (Pascendi, № 2). E a esses Modernistas – especialmente do Clero – São Pio X chama de “os mais perigosos inimigos da Igreja” (Pascendi, № 3).

O Papa demonstra que os Modernistas, para melhor ocultar sua ação deletéria, não apresentavam sua doutrina de modo sistemático, mas, “com astucioso engano” apresentam seu pensamento de modo não coordenado, um defendendo o Modernismo apenas no campo exegético (o Padre Alfred Loisy);

outro, no terreno teológico (Padre Laberthonière, Padre Georges Tyrrell e Padre Ernesto Bonaiutti, o amigo do futuro João XXIII e que lançou o Manifesto dos Modernistas);

outro no campo místico (o Barão Von Hugel);

outro na Filosofia (Maurice Blondel);

outro numa Arqueologia e Antropologia “Gnóstico-Mística” (Padre Teillhard de Chardin);

outro na literatura (Antonio Fogazzarro);

outros na política (Marc Sangnier, Padre Romolo Murri);

outros enfim, no Vaticano, exercendo uma ação discreta, mas decisiva, na política eclesiástica, protegendo os modernistas, ou mesmo defendendo suas ideias (como Della Chiesa, Gasparri, Radini Tedeschi, João XXIII, Paulo VI, Cardeal Bea etc.).

É claro que o espírito furta cor e camaleônico do Modernismo não permite detectar – por vezes – claramente a heresia em muitos de seus defensores, tanto mais quando se sabe que eles, como lembrou São Pio X, muitas vezes negam numa página o que afirmam noutra (Cfr. Pascendi, №. 3).

O sistema Modernista, diz o Papa São Pio X, parte de uma posição agnóstica. Para eles a razão só pode estudar e examinar os fenômenos perceptíveis pelos sentidos e pela ciência. Daí afirmarem, inicialmente, que Deus e a Fé serem assuntos alheios à Ciência experimental moderna.

Para os Modernistas então todas as provas da existência de Deus são elucubrações intelectualistas que nada comprovam. Eles rejeitam assim o que definiu o Concílio Vaticano I: que os católicos devem ter como demonstrável pela razão a existência de Deus. Como rejeitam o que diz São Paulo que após a criação as qualidades invisíveis de Deus se tornaram cognoscíveis através das coisas criadas” (Rm I, 20). Deste modo, os Modernistas se inclinam para a Gnose, ao rejeitarem a analogia do ser: o mundo criado não refletiria a Deus criador (Pascendi, №. 6).

Esse agnosticismo radical, do qual partiam os Modernistas, os levava a afirmar que a Ciência e a História tem que desconhecer o papel de Deus, já não seria possível provar sua existência. Ciência e História deveriam ser ateias ou agnósticas. Que é exatamente como se ensinam, hoje, História e Ciência.

Entretanto, se conforme os Modernistas, não se podem conhecer senão os fenômenos, há que constatar que a religião é um fenômeno existente na História, e que se deve estudá-la apenas enquanto fenômeno histórico, comum a tantas civilizações e culturas.

A causa do fenômeno religioso – visto que não se pode provar a existência de Deus – deve ser buscada no próprio homem. A religião seria uma forma de vida que tem raiz na própria vida do homem. Daqui procede o que os modernistas chamam de “Princípio de Imanência Religiosa”.

Tal princípio manifestaria uma necessidade profunda do homem, que se exprime num movimento do coração, a um sentimento.

Note-se: do coração e não da razão. O Modernismo – como o Romantismo e toda a Gnose – odeia a inteligência e a razão, colocando acima dela o coração e o sentimento. Como o Romantismo, o Modernismo manifestará uma antipatia pelo intelecto e pela capacidade do homem conhecer a realidade.

Este sentimento do coração seria uma manifestação de uma necessidade da divindade que nasceria do subconsciente do homem. (Note-se aí uma influência direta do Freudismo, ele também negador da capacidade do conhecimento racional do homem.

Como o sentimento do coração, nascido das profundezas do inconsciente humano, desabrocha em religião, estaria fora do âmbito do conhecimento científico. Isso estaria na esfera do incognoscível.

Este misterioso sentimento nascido do inconsciente humano seria, de fato, a própria Divindade imanente ao homem, a realidade substancial de Deus imanente nas profundezas do ser humano – eis aí a Gnose manifestada – produziria a revelação divina no interior de cada homem, gerando a Fé. Esta seria o sentimento interior do divino que une o homem a Deus. Toda revelação seria interior. O que leva à negação da revelação de Cristo.

O sentimento interior do coração seria então a própria realidade divina, imanente no mais profundo do ser humano, manifestando-se no interior de cada homem. Este sentimento seria, ao mesmo tempo, Deus revelante e a revelação de Deus, Deus revelado. Daí toda revelação seria, ao mesmo tempo natural – porque provindo da natureza humana – e sobre natural, porque provindo de uma divindade misteriosa aprisionada no interior do homem, e imanente a todas as coisas existentes (Cfr. Pascendi, № 8).

“O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o germe de toda religião e a razão de tudo o que tem havido e haverá ainda em qualquer religião” (Pascendi, № 10).

Sendo a revelação interior ao homem, deveria haver plena liberdade de consciência, porque cada um sente a Deus de modo pessoal, e o manifesta a seu modo. A Igreja Católica então deveria aceitar a tese da liberdade de consciência defendida pelo Liberalismo e pela Maçonaria e promulgada como direito natural do Homem pela Revolução Francesa.

Daí decorreria a liberdade de religião já que nenhuma religião seria superior ou mais “verdadeira” do que qualquer outra. Portanto, liberdade absoluta de praticar qualquer religião. Condenação de qualquer religião que queira – como a Igreja Católica – afirmar ser a única verdadeira. Ecumenismo total.

Como se vê, são as teses que triunfaram no Concílio Vaticano II.

A Divindade imanente a todas as coisas seria absolutamente incognoscível pela inteligência humana. O homem não seria capaz de traduzir seu sentimento interior de Deus em palavras e conceitos racionais, os quais deformariam a revelação interior. A revelação interior e a Fé que dela decorre seriam inefáveis, incapazes de serem postas em termos conceituais e traduzidas pela palavra humana.

As religiões, em suas manifestações e crenças, não passam de exteriorizações do sentimento divino interior e inefável. Daí nenhum Credo seria verdadeiro. Inclusive o católico. A religião católica teria nascido do sentimento interior que se manifestou em Cristo – homem de consciência privilegiada – sentimento que Cristo teria deformado, traduzindo-o em afirmações religiosas necessariamente falsas, porque incompletas ou imperfeitas.

A Divindade interior e imanente era chamada pelos Modernistas de Incognoscível.

Este, porém, sempre se manifesta num sentimento do coração, aproveitando-se de um fato ou fenômeno qualquer. Daí se seguiriam duas coisas:

Uma Transfiguração do fenômeno;

Uma Desfiguração Mítica do fenômeno.

Aplicando toda esta teoria a Jesus Cristo, diziam os Modernistas que a Ciência e a História (agnósticas) encontravam nele apenas um homem, excluindo propositadamente tudo o que pretendesse ser divino ou sobrenatural nele.

Entretanto, esta figura histórica foi transfigurada e mitificada ou desfigurada pela Fé.

Embora a Fé seja absolutamente inefável – incapaz de ser colocada em conceitos e palavras, porque o sentimento não é conhecimento – o homem teria que “pensar a sua fé”, diziam os Modernistas.

Inicialmente, o homem exprime a noção que lhe adveio de seu sentimento interior com uma proposição simples ou vulgar. Depois, ele elabora seu pensamento. Faz afirmações mais sutis. Quando estas formulações mais elaboradas são sancionadas e tornadas obrigatórias, nasce um dogma.

Entretanto, sendo a revelação inefável, toda fórmula dogmática é inadequada, imprecisa, imperfeita e incapaz de transmitir o conteúdo real da revelação e da Fé. Os dogmas seriam, segundo os Modernistas, meros símbolos do sentimento interior inefável. Seriam instrumentos inadequados para comunicar, até certo ponto, o que se pensou sentir, mas que jamais exprimem uma verdade absoluta, tal e qual fosse revelada por Deus.

Como a revelação interior é inefável, os dogmas estariam sujeitos a explicitações e formulações variáveis no tempo. O dogma seria modificável, aperfeiçoável, sem jamais chegar a exprimir corretamente o sentimento interior e a Fé. O dogma e a Fé jamais seriam estáveis ou definitivos: pelo contrário, estariam em constante evolução. Não haveria verdade absoluta e objetiva.

“Ousadamente afirmam os modernistas, e isso, mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas não somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se” (O modernista filósofo, Pascendi, №. 13).

Para eles, os dogmas, as fórmulas religiosas, porque não são resultantes de especulações intelectuais, e sim produtos do sentimento religioso, que é vivo, devem ser vitais e mutáveis como ele. O crivo que as faz mudar vitalmente não é a inteligência, e sim o coração.

Se as fórmulas vitais perderem sua relação com a vida do sentimento, elas teriam que ser mudadas para serem adaptadas ao homem e à vida… Resultado: o dogma deveria estar sempre evoluindo, e a religião sendo constantemente reformada.

Como se vê, o espírito evolucionista e bergsoniano marcou o Modernismo com sua nota de instabilidade. O anti intelectualismo romântico da filosofia da ação de Maurice Blondel formou a doutrina da heresia Modernista.

O filósofo modernista, estudando o que se passa na alma do crente, verifica apenas como se dá e como se desenvolve o sentimento religioso e a Fé, identificando este sentimento com Deus, mas não se manifesta se, de fato, este Deus existe fora da alma do crente.

O crente tem consciência da existência imanente de Deus nele por meio da experiência religiosa individual.

Para o crente Modernista, o sentimento religioso é uma espécie de intuição do coração que coloca o homem em contato direto com a realidade divina imanente no homem. Esta experiência pessoal daria uma certeza experimental muito superior à certeza intelectual. Como se vê, o Modernista recusa a convicção racional, preferindo a ela a experiência mística do coração.

Ora, como esta experiência religiosa interior se dá em qualquer homem, pouco importando a religião positiva a que ele pertença, segue-se que se deve aceitar qualquer religião, até mesmo a dos hereges e idólatras. Toda experiência religiosa seria válida, não importando o credo que dela nascesse, visto que os credos são deformadores da experiência religiosa inefável. Todas as religiões seriam igualmente válidas, e nenhuma pode se arrogar o monopólio da verdade.

Desta atitude nasce o ecumenismo do Modernismo, que já manifestara sua tolerância liberal e relativista no Congresso das Religiões de Chicago, em 1894, organizado pelos hereges Americanistas.

“Os Modernistas de fato não negam, ao contrário, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religiões são verdadeiras” (O modernista crente, Pascendi, № 14).

Os mais moderados, quando muito, dizem que a Religião Católica tem mais verdades que as outras, porque é mais viva. São Pio X, na Pascendi, diz que é “absurdíssimo que católicos e sacerdotes, que, como preferimos crer, tem horror a tão monstruosas afirmações, se ponham quase em posição de admiti-las” (Pascendi, № 14).

Desgraçadamente, hoje, esta crença monstruosa tonou-se corrente nas paróquias, nas catedrais, e até, em documentos oficiais.

Quem não defende, hoje, entre os católicos, o ecumenismo relativista?

Émile Poulat, historiador do Modernismo e simpatizante dele, confessa que após um século da polêmica modernista “passamos de um modernismo restrito a um modernismo generalizado” (E. Poulat, Histoire, Dogme et Critique dans la Crise Moderniste, Albin Michel, Paris, 1996, p. VII).

E Poulat confessa que:

As ciências históricas não revolucionaram apenas nosso conhecimento do passado, como também, no total, o espírito dos historiadores e a consciência dos crentes, uma revolução na revolução. Neste sentido, nós todos somos modernistas. Que aqueles que duvidam disso ou o contestam releiam os documentos pontifícios, o Decreto Lamentabili e a Encíclica Pascendi (1907). O fato é que o longo juramento anti modernista instituído por São Pio X em 1910 foi revogado, abreviado, reduzido a algumas linhas) por Paulo VI depois de pouco mais da metade de um século. (E. Poulat. op. cit. p. XVII).

Esta ideia da experiência religiosa interior, diz São Pio X, se opõe e destrói a tradição católica. De fato, para os Modernistas, a Tradição é simplesmente a transmissão ou comunicação da experiência original feita através da fórmula intelectual imperfeita. Esta fórmula, porém, teria uma capacidade de sugestão para tornar a despertar o sentimento religioso, tanto em quem pronuncia a fórmula, quanto em quem a ouve, produzindo, de novo ou pela primeira vez, a experiência religiosa pessoal. Assim se propagaria no tempo a experiência religiosa de um modo vivo. Quando esta experiência se propaga e transmite vitalmente, ela seria verdadeira.

“O viver, para os Modernistas, é a prova da verdade; e a razão disto é que verdade e vida para eles são uma e mesma coisa. E daqui mais uma vez se infere que todas as religiões existentes são verdadeiras, do contrário já não existiriam” (O modernista crente, Pascendi, № 15).

Para o Modernista, a tradição é viva ou não é verdadeira. E tradição viva significa, para eles ser mutável e evolutiva como a vida.

Os Modernistas separam de modo absoluto Fé e Ciência. A Fé teria por objeto algo incognoscível de modo científico. A Ciência se ocupa apenas dos fenômenos. A Fé, resultante da experiência interior mística, inefável, seria incognoscível pelo intelecto e pela Ciência, mas atingível apenas pelo coração.

Desta separação absoluta entre Fé e Ciência – que atuariam em campos absolutamente incomunicáveis – resultaria também uma impossibilidade absoluta de conflito real entre elas, porque jamais elas podem se encontrar. Os conflitos ocorridos no passado entre a Igreja e a Ciência teriam resultado de uma incompreensão da Igreja, que não tinha verdadeiro entendimento do que era realmente a Fé. Desses conflitos a Igreja deveria pedir perdão à Ciência moderna.

Entretanto, embora atuando em campos diferentes e absolutamente separados, a Fé teria que subordinar-se à Ciência. Primeiro, porque a religião enquanto fenômeno, pode e deve ser estudada pela Ciência. Segundo, se a realidade divina está fora do âmbito da Ciência e dentro do âmbito da Fé, a ideia de Deus permanece sob dependência da Ciência. Por isso, dizem os Modernistas que a evolução da religião deve ser coordenada com a evolução moral e intelectual da humanidade controlada pela Ciência. Portanto, a Fé deveria estar subordinada à Ciência.

Esta subordinação deveria ser o objeto do trabalho do teólogo, que procuraria conciliar o pensamento religioso com as novas descobertas da Ciência.

“Diz o filósofo que o princípio da Fé é imanente; acrescenta o crente que esse princípio é Deus; conclui pois o teólogo: logo, Deus é imanente no homem. Disto se conclui a imanência teológica”. (O modernista teólogo, Pascendi, № 19).

Embora haja, entre os modernistas, quem ponha certas distinções ao princípio de imanência teológica, os mais coerentes deles propugnam diretamente o panteísmo. Ou a Gnose.

São Pio X mostra que, para os modernistas moderados, essa imanência significaria uma verdadeira indistinção entre a ordem natural e a ordem sobrenatural.

São Pio X explica que os modernistas moderados “Empenham-se em convencer o homem que nele mesmo e nos íntimos recantos de sua natureza e de sua vida se oculta o desejo e a necessidade de uma religião, não já de uma religião qualquer, mas da católica; porquanto esta, dizem, é requerida (postulata) pelo perfeito desenvolvimento da vida” (São Pio X, Pascendi, № 37, Vozes, Petrópolis, pp. 40-41).

Por outro lado, os modernistas mais radicais – que São Pio X denomina de Modernistas integralistas, “pretendem que se deve mostrar ao homem que ainda não crê, como se acha latente dentro dele mesmo o germe que esteve na consciência de Cristo e que Cristo transmitiu aos homens”. (São Pio X, Pascendi, № 37, p. 41. O negrito e o sublinhado são nossos).

E quando Cristo teria transmitido esse misterioso Germe?

Há quem diga que foi no momento da Encarnação, ou no Natal, ou ainda na hora de sua morte na cruz. Com qualquer que seja esse momento, Cristo teria redimido e salvado todos os homens, porque, todos possuindo tal germe, já estariam naturalmente salvos.

A identificação entre natureza e sobrenaturalidade exige admitir a salvação universal. E não só a salvação universal, mas também a tese de que todas as religiões são vias de salvação, já que esta provém do germe de origem divina depositado no “coração” do homem.

Este seria o “mistério do homem”: o homem possui, em sua natureza, um germe divino através do qual ele é necessariamente salvo.

A Revelação que Cristo traz ao homem, essa revelação que brotaria do coração e do sentimento interior, provém deste germe divino, e é a tomada de consciência do homem de que há, no seu íntimo, a própria divindade em germe.

***

Segundo os Modernistas, a Ciência não pode constatar nenhuma intervenção de Deus na História. Isto seria objeto da Fé, nunca da Ciência.

Por esta razão pretendiam que a Sagrada Escritura fosse examinada apenas com os métodos científicos modernos, excluindo que nela se pudesse admitir a intervenção divina. A aceitação das Escrituras como revelação de Deus seria uma mera conclusão da experiência religiosa dos homens que as escreveram, ou daqueles que as leem. Diziam que os Evangelhos, por exemplo, não haviam sido realmente registros históricos dos discípulos de Cristo, mas que eram produto das experiências religiosas dos primeiros cristãos, que haviam mitificado a figura de Jesus histórico transformando-o em Messias e Redentor. De fato, os Evangelhos teriam sido escritos até séculos depois de Cristo, o que a Ciência hoje provou ser uma falsidade da parte dos Modernistas. Admitiam que nos livros sagrados pudessem existir erros e contradições. Por exemplo, Loisy ironizava que Cristo havia predito, para logo, a vinda do Reino, e o que chegou não foi o Reino, mas sim a Igreja.

A pessoa de Jesus Cristo é, para eles, puramente humana, capaz de erros, desconhecendo o futuro, e até mesmo a sua própria missão e essência divinas. Foi a experiência religiosa dos primeiros cristãos que transformou e mitificou a pessoa de Cristo. Daí distinguirem eles o Cristo histórico, do Cristo da Fé.

O Cristo histórico teria sido um puro homem, certamente dotado de qualidades não comuns, mas permanecendo sempre puro ser humano.

Este Jesus histórico, mero filho de carpinteiro, teve uma experiência religiosa pessoal extraordinária que o levou, pouco a pouco, a conceber-se como filho de Deus. Após a sua morte, seus discípulos completaram sua mitificação, transformando-o em Deus Homem

“A divindade de Jesus Cristo não se provaria pelos Evangelhos; ela é um dogma que a consciência cristã deduziu da noção de Messias” (Decreto Lamentabili, erro XXVII da Cristologia de Alfred Loisy).

“Jesus, quando exercia o seu ministério, não falava com o intuito de ensinar que era o Messias, nem os seus milagres tinham por fim demonstrá-lo” (Lamentabili, erro XXVIII).

Nem Cristo teve, desde o princípio, consciência de sua dignidade messiânica. (Lamentabili, erro XXXV).

Até mesmo a ressurreição de Cristo era negada pelos modernistas porque não a consideravam um fato histórico. Tais erros, hoje, são propalados por muitos “teólogos” de fama internacional… E, por isso, são repetidos, nas homílias, nos folhetos dominicais, em catecismos populares etc. Recentemente, um teólogo que negou, em livro, a Ressurreição de Cristo, que Jesus é Filho de Deus, monsenhor Kasper, foi elevado ao cardinalato, e nomeado membro da Congregação da Doutrina da Fé – o ex-Santo Ofício. Seria como nomear o lobo guardião do redil…

Todos esses erros contra a Fé provinham da falsa ideia dos Modernistas sobre o que é a Fé e da colocação da Ciência acima da Fé. Por isto, eles estavam prontos a interpretar os primeiros capítulos do Gênesis, como mero relato simbólico, aceitando o que afirmava o evolucionismo de Darwin como realmente científico.

***

Também a Eclesiologia modernista é completamente herética.

Para os modernistas, a Igreja não fora fundada por Cristo, nem Ele dera o poder supremo da Igreja a Pedro.

A Igreja seria resultante da consciência coletiva dos crentes. Por isso o poder nela derivaria do povo fiel, e não de Deus. A autoridade eclesiástica emanaria do povo crente. Daí ser necessário, segundo os modernistas, uma democratização da Igreja.

Toda a autoridade eclesiástica deveria se desvestir da pompa que a tem cercado, fazendo o Papa parecer um soberano, e o Bispo, um príncipe.

Toda a pompa que cercou as manifestações da autoridade eclesiástica seria alheia ao espírito da religião. A Igreja deveria ser simples, pobre, igualitária e democrática.

Por essas razões, todo o culto deveria ser reformado, perdendo as cerimônias pompa e buscando ser simples e pobres. De nenhum modo o Papa deveria ter um poder soberano, nem poderia ter um território. Face ao Estado, a Igreja deveria ser separada dele, e não gozar de privilégio algum, porque ela não pode se arrogar orgulhosamente a posse da Verdade. Todas as religiões deveriam ter iguais direitos no Estado democrático.

Também o Magistério eclesiástico deveria ser mudado, assumindo feições democráticas porque, no fundo, ele nasceria das consciências individuais. Seria um abuso tirânico alguém se considerar fonte do Magistério. O Papa deveria aceitar a verdade que nasce das bases, e que é expressa pelos “teólogos” subordinados, estes também, ao povo, como fonte original da Revelação.

Uma Instituição como o Santo Ofício seria a expressão da tirania de um poder monárquico sobre o povo, única fonte de verdade.

A concepção do Papa como soberano que decide o que é dogma, o que é verdade, e o que é heresia, seria uma deformação absurda do fenômeno religioso que reside no fundo das consciências individuais.

Como a manifestação da consciência religiosa é inefável, e como ela está sujeita, como tudo, à lei da evolução, a religião, como fenômeno vivo deve evoluir continuamente, o que é impedido e tiranizado pelo estabelecimento de uma autoridade magisterial tida como “infalível”.

Assim como a Igreja deveria estar separada do Estado – porque ela não se pode arrogar a posse única da verdade – assim todas as religiões deveriam ser aceitas quer pelo Estado, quer pela própria Igreja. Afinal, toda religião seria produto do sentimento interior de cada ser humano, em cuja inconsciente profundo jaz imanente, a Divindade.

Sendo todas as religiões igualmente verdadeiras, e igualmente falsas por serem todas incompletas, a verdadeira Igreja seria constituída por todos aqueles que houvessem tomado consciência da imanência divina em seu inconsciente profundo. A “Igreja” verdadeira não seria nenhuma das religiões positivas e estruturadas. A IGREJA seria absolutamente espiritual, sem estruturas, sem dogmas, ecumênica, relativista, igualitária, pobre e democrática.

A IGREJA verdadeira não existe na História. Ela estaria continuamente sendo gestada no fundo das consciências.

As igrejas estruturadas, e em primeiro lugar a Igreja Católica, deveriam se esforçar para tender para esta IGREJA espiritual, que vive secretamente no fundo das consciências, buscando vir à luz, num parto doloroso, em busca da Unidade.

O Ut unum sint da oração de Cristo por seus fiéis, é entendido pelos Modernistas como significando: “para que todas as religiões sejam uma só”, na Igreja pneumática, espiritual, atualmente em gestação ecumênica.

O culto também deveria perder toda pompa e todos os símbolos de majestade com que foi carregado e deturpado, nas épocas monárquicas. Deveria perder todo o caráter autoritário, hierárquico e elitista, tornando-se democrático. Para isto, o culto deveria estar voltado para o povo, para o homem em cuja consciência inacessível se daria a manifestação da revelação e da divindade.

Todos os sacramentos seriam meros sinais ou símbolos, cuja eficácia consistiria apenas na capacidade de despertar o sentimento religioso nas consciências individuais, nutrindo a Fé.

A hóstia consagrada não seria verdadeiramente o corpo, sangue, alma e divindade de Cristo. Ela seria apenas um símbolo da união das consciências. Cristo não estaria na Hóstia consagrada pelo sacerdote, mas estaria imanente nas almas. Estaria “no meio de nós” e não nas espécies eucarísticas. A Missa deveria ser a Missa do Povo, e nunca a renovação do sacrifício do Calvário. Quem rezaria, de fato, a Missa, seria o Povo, e não sacerdote. Por estas razões, a Missa deveria ser na língua do Povo, já que ele é, de fato, o sacerdote.

Toda a apologética Modernista nasceu das doutrinas de Maurice Blondel (1861-1949). Não se deveria mais fazer a apologética tradicional, com argumentos, defendendo uma verdade objetiva, pois não há verdade objetiva. A apologética não deveria visar a conversão de alguém a uma suposta doutrina verdadeira – já que ninguém, e nenhuma religião possui sozinha a verdade – mas deveria procurar despertar a consciência adormecida para que “ouvisse” a revelação do sentimento interior, para que afinal intuísse a voz da divindade imanente no homem. A verdadeira apologética deveria levar cada um a ter a sua experiência do divino. A tomar consciência da imanência da divindade no coração do Homem.

***

Todas estas heresias levavam os Modernistas a propugnar amplas e profundas reformas na Igreja Católica.

O evolucionismo radical do Modernismo exigia que eles amassem as novidades pelas novidades e que odiassem tudo o que é tradicional na Igreja.

Propugnavam o abandono da filosofia escolástica e tomista, adotando a filosofia moderna. Consequentemente, recusavam a antiga teologia, defendendo uma Nova Teologia, tal qual aquela que era proposta pelos teólogos jesuítas de Lyon e que triunfou no Concílio Vaticano II, apesar da crítica e condenação a ela feita pela encíclica Humani Generis de Pio XII. Desejavam a extinção dos Seminários.

Os catecismos deveriam ser modernizados, tal qual o foram nestes últimos tempos. Queriam reformar a Missa. Queriam acabar com as devoções externas.

A Igreja toda deveria ser democratizada, tomando-se todas as decisões, doutrinárias ou de direito, em assembleias. Exigiam uma reforma do governo da Igreja, especialmente por meio de uma democratização da Cúria Romana, e pela extinção do Santo Ofício, a fim de haver maior liberdade para os teólogos exprimirem suas “teorias”…

Em Moral, defendiam as teses do americanismo, afirmando uma falsa distinção entre virtudes ativas e virtudes passivas, como se fosse possível uma virtude ser passiva. Outros defendiam uma reforma da doutrina moral, que levava, de fato, à abolição de toda a lei moral.

E, com energia, propugnavam a abolição do celibato.

***

Como se pode verificar por este simples resumo das doutrinas do Modernismo, o que se vê, hoje, por toda a parte, é o triunfo dessa heresia.

Foi a heresia Modernista a responsável pela desolação universal em que jaz o catolicismo. Foi esta destruição que Nossa Senhora previu em Fátima, e contra a qual foram anunciados os castigos de que fala o famoso Terceiro Segredo, agora parcialmente publicado.

O que pretendemos mostrar com este estudo é a relação doutrinária entre o Modernismo e o Romantismo, porque de nada valeria extirpar o Modernismo, se fossem deixadas intatas suas raízes românticas. Se tal se desse, o Modernismo renasceria, no futuro. O que pretendemos é alertar muitos Católicos anti-modernistas, que, sem o saber, sendo românticos, carregam dentro de si, o germe profundo do Modernismo.

II – Doutrinas românticas

1. Quadro histórico do Romantismo

O Romantismo surge com a revista Athaeneum entre 1798 e 1800.

Nesses mesmos anos, Napoleão tomava o poder na França, e fazia a Concordata de 1802 com Pio VII. Depois das violentas e sangrentas perseguições feitas aos católicos durante a Revolução Francesa – tão esquecidas pela História oficial – o “iluminismo racionalista” da Deusa Razão perdia poder e influência, sendo substituído pelo irracionalismo dos “iluminados pelo Espírito Santo”, defensores de uma Religião vasta e ecumênica, que pretendia ser a Religião das Religiões, englobadora de todos os cultos, inclusive o católico que era convidado, gentil e respeitosamente, a se abraçar a todas as seitas, religiões e cultos.

Passava-se da guilhotina para a ceia ecumênica. Da perseguição sangrenta, aos louvores irênicos da Gnose romântica.

“A situação era diferente desde que o Romantismo era um movimento de renovação espiritual; o cristianismo não era atacado de frente; não era questão de irreligião, bem pelo contrário” (G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, ed. cit. p. 178).

O perigo era tanto maior quanto o romantismo era de sentimentos religiosos de tal modo vagos que neles o Catolicismo cabia largamente. Tão largamente que havia lugar também para todas as demais religiões.

Ora, o Romantismo alargou e multiplicou o sentido religioso, ele dissociou em geral a religião e a revelação cristã, que impõe à afirmação do divino uma especificação histórica, um gargalo de estreitamento. Nenhuma obediência cristã poderia pretender deter a exclusividade da afirmação religiosa (G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, ed. cit. p. 179).

E, ao mesmo tempo em que o Romantismo com seus encantos vagos e dulçurosos atraía os católicos, há pouco saídos do Terror revolucionário, Napoleão enganava os católicos com uma Concordata que, dando uma aparente liberdade à religião, a acorrentava ao poder político liberal.

2. Conceito de Romantismo

Sabe-se da dificuldade que sempre houve em definir o Romantismo. Gusdorf diz que sua melhor definição é:

“que ele representa o desejo de ressacralizar a vida, a tentativa de edificar uma nova Fé que fosse capaz de substituir o catolicismo tradicional” (Gusdorf, Le Romantisme, Payot Paris, 1993, p. 657).

Para Novalis (Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, 1772-1801), preparando o Cristo ômega de Teilhard de Chardin,

“todo objeto pode tornar-se um santuário, para o homem religioso, no sentido em que os áugures o entendiam. A alma desse santuário é o sumo sacerdote onipresente, o mediador monoteísta, o único que está em relação imediata com Deus” (Novalis, Grãos de Pólem, Aubier, Paris, p. 61)

“Novalis autoriza uma sacralização da natureza; cada ser, cada objeto se ilumina à luz transcendente da verdade divina, quando ela se depõe sobre ele, e a transforma em um “santuário” para a alma crente” (Gusdorf, Du Néant à Dieu, ed. cit., p. 27).

Essa ressacralização da vida era um a tentativa de construir uma nova Fé capaz de substituir o catolicismo (Cfr. Jean Gualmier, Les grands écrivains devant Dieu, apud Gusdorf, Du Néant à Dieu, ed. cit., p. 209).

Em nossa tese Elementos Esotéricos e Cabalísticos nas Visões de Anna Katharina Emmerich (São Paulo, USP, 1982) demonstramos que o Romantismo era gnóstico, pois se define como o “Conhecimento Absoluto”, o “Conhecimento Salvador”, como o “Conhecimento do Incognoscível”.

O Romantismo não tem dogma, nem princípio, nem objetivo, nem programa, nada que se situe dentro de um pensamento definido ou de um sistema de conceitos (…) O Romantismo é uma atitude vital de índole própria e nisso reside a impossibilidade de determinar conceitualmente a sua essência (Nicolai Hartman – A Filosofia do idealismo alemão, Lisboa, Gubelkian, 1983, pp. 189-190).

Friedrich Schlegel, um dos líderes e fundadores da escola romântica alemã, escrevendo a seu irmão, August Schlegel, disse:

“Não posso enviar-te a minha interpretação da palavra “romântico” (…) ela tem 125 páginas de extensão” (apud Ladislao Mittner – Storia della Letteratura Tedesca, ‘Dal Pietismo al Romanticismo, 1700-1820′, Turim, Giulio Einaudi, 1977, p. 699).

Mittner, tratando desse tema, diz que se coletaram cento e cinquenta definições de romantismo e que”… a palavra ‘romântico’ deve a sua excepcionalíssima e indeclinável fortuna à sua irridescente polivalência; ela tenta, de fato, definir o indefinível (…).” (L. Mittner, op. cit. p. 699. O sublinhado é nosso).

Eis aí um bom ponto de partida. “Definir o indefinível”, tal seria o escopo do Romantismo. Portanto, já que só se pode definir o conhecido, ele pretende “conhecer o incognoscível”. Ambas as formulações são bem próprias dessa escola, por sua natureza paradoxal ou, mais precisamente, dialética.

Neste sentido, é muito típico o ensaio de Kleist sobre as marionetes, onde se diz que o homem, quando se mirou pela primeira vez no espelho, reconhecendo a si mesmo, perdeu a inocência.

Agora, ele quer descobrir o caminho de volta. Para tanto, precisa comer mais uma vez da árvore do conhecimento infinito e alcançar de novo, pelo outro lado, o paraíso da inocência, de uma segunda inocência. (…) O grande sonho dos românticos é a inocência, a segunda inocência que englobe, ao mesmo tempo, todo o caminho percorrido através da cultura, isto é, uma inocência que não seria mais a primitiva, a do jardim do Éden, mas uma inocência sábia. É a famosa criança irônica de Novalis, um dos grandes símbolos do movimento romântico (Anatol Rosenfeld / J. Guinsburg – “Romantismo e Classicismo” in O Romantismo, org. J. Guinsburg, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 274).

Este conhecimento seria capaz de fazer compreender o que há de mais elevado, a harmonia de todos os seres, e daria a vida eterna. É o que diz Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822) em seu “O Vaso de Ouro”:

Serpentina! – A confiança que eu tive em você, o amor por você, me abriu as profundezas mais secretas da natureza. Você me trouxe a rosa nascida do Ouro, força primitiva da Terra, antes até que Phosphorus tivesse feito nascer o pensamento, a rosa me fez conhecer a harmonia sagrada de todos os seres e – felicidade suprema! – eu viverei para sempre neste conhecimento. Sim. foime concedida a força de conhecer o que há de mais alto. Eu amá-la-ei eternamente, Serpentina – jamais empalidecerão os raios da rosa, porque, como a fé e o amor, eterno é o conhecimento (E.T.A. Hoffmann – Le Vase d’Or in Romantiques allemands, Paris, NRF, Plêiade, 1963, vol. I p. 864. O sublinhado é nosso).

3. Conhecimento e Metafísica do Romantismo

De início, devemos lembrar que “o Romantismo nascente se define como uma metafísica, no contexto ofuscante da filosofia alemã, de 1780 a 1830; os nomes de Kant, de Fichte, de Schelling e de Hegel anunciam uma nova era da filosofia universal” (G. Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris, 1993, p. 481).

Mais exato seria dizer que Romantismo é uma antimetafísica, no sentido que ele recusa todos os conceitos metafísicos aristotélicos e tomistas.

Conforme o pensador marxista brasileiro Michael Löwy “O romantismo é fundamentalmente antimetafísico” (Michael Löwy, Revolta e Melancolia, O Romantismo na Contramão da Modernidade, ed. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 9). E é anti metafísico, porque o Romantismo e contra o ser, contra a contingência, contra o existir no mundo criado.

O Weltchmerz [que os franceses traduziram como o “mal du siècle”, no Brasil se traduziu literalmente como o “mal do século” em vez de “o mal do mundo”] a dor mundial, a dor metafísica, aquela que não tem nenhum a razão particular, mas que se segue à insatisfação de todas as coisas, envolve como nua mortalha mortuária a alma romântica (Mario Puppo, Il Romanticismo, Ed. Studium, Roma, 1973, p. 38).

Esta nova antimetafísica romântica é, antes de tudo, antirracional. Ela recusa o discurso lógico, e pretende atingir uma verdade transcendente, inacessível à inteligência racional, por meio de uma intuição mística.

Frederico Schlegel deu a fórmula desse saber:

a mais alta filosofia não pode ser outra coisa que ciência da mais alta realidade, isto é, da Divindade, de tal natureza e de suas relações. Mas esta é precisamente teosofia, e não é possível com referência à revelação; é por isso que na mais alta filosofia, enquanto ela se põe por fim o saber do que o ser próprio e o fundamento de todas as religiões, se encontram necessariamente unidas religião e filosofia (…) o idealismo conduz sempre à teosofia como ao mais alto princípio do espírito (F. Schlegel, Curso de 1804-1805, apud G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, ed cit, pp. 185-186).

O crítico e poeta inglês Thomas Ernest Hulme (1883-1917), tradutor de obras de Bergson, dizia que a melhor definição para o Romantismo era a de “religião difusa” (“spilt Religion”):

“O Romantismo, (…) e esta é a melhor definição que posso dar dele, é religião difusa” (T. E. Hulme, Romanticism and Classicism, in Speculations, Routledge & Kegan Paul, p. 118, apud Benedito Nunes – A Visão Romântica in O Romantismo, org. J. Guinsburg, p. 70, nota 69).

O escritor Denis de Rougemont (1906-1985) dá um nome a essa “spilt Religion”:

“A exaltação da morte voluntária, amorosa e divinizante, eis o tema religioso mais profundo dessa nova heresia albigense que foi o romantismo alemão.” (Denis de Rougemont – L´Amour et l’Occident, Paris, Plon, 1939, p. 204).

“A doutrina romântica do conhecimento, nos antípodas da busca de uma verdade objetiva, propõe uma busca do Ser, cuja posse somente pode dar não só a ciência das coisas, mas a salvação da alma” (Gusdorf, Le Romantisme, p. 634).

O conhecimento do incognoscível daria ao homem o saber absoluto, um poder mágico que lhe permitiria redimir-se e redimir a natureza. Seria, pois, um conhecimento salvador.

Certamente, os românticos não crerão também que uma simples acumulação de fatos, devidamente constatados, conduza ao saber supremo; mas, eles manterão a esperança de obter um conhecimento absoluto, que, para eles, será mais e melhor do que um simples ‘saber’: (será) um ‘poder’ ilimitado, o instrumento mágico de uma conquista e mesmo de uma redenção da Natureza. Para eles, tratar-se-á de um conhecimento do qual participarão não só o intelecto, mas o ser inteiro, com suas regiões as mais obscuras e com aquelas que ele ainda ignora, mas que lhe serão revelados pela poesia e por outros sortilégios (Albert Béguin, L´Âme Romantique et le Rêve – op. cit. p.5. O sublinhado é nosso).

A filósofa Ricarda Huch (1864-1947) mostra que “para os românticos, todo conhecimento é inseparável de um aprofundamento de si mesmo pela reminiscência e pela reflexão” (Ricarda Huch – Les Romantiques Allemands, Bernard Grasset, Paris, 1933, p. 69).

E o conhecimento de si mesmo significava o conhecimento do “infinito subjetivo em si”, isto é, do divino no homem, exatamente como diz a Gnose, e este era o ponto de partida do Romantismo, nos assevera o próprio Hegel. Ora, este vínculo entre o conhecimento do infinito no homem e romantismo dá a esta corrente artística um tonus religioso. Por essa razão, Ricarda Huch afirma que, para os românticos, a arte seria de fato “mística inconscientemente aplicada”, e dessa asserção só não aceitamos o termo ‘inconscientemente’, pois muitos românticos tinham clara consciência de que visavam ter uma experiência mística que lhes daria um “conhecimento absoluto”.

Embora possam existir outras interpretações, não é arbitrário, ou improcedente, concluir com a filósofa francesa Simone Pétrement (1907-1992) que o Romantismo foi uma forma de Gnose.

4. Romantismo e Gnose

Sabe-se que a Gnose nasce da não compreensão do problema do mal, isto é, da consideração que o mal é algo substancial. Unde malum, de onde vem o mal, é a pergunta original de toda a Gnose.

Ora, para o Romantismo como para a Gnose, o mal é o existir, é ser em forma contingente. Daí a obsessão romântica de alcançar o Absoluto superando o relativo, de escapar da finitude para atingir o Infinito, de odiar o narrável e querer o Inefável.

Denis de Rougemont diz:

“Eu definiria, de boa vontade, o romantismo ocidental como um homem para o qual a dor amorosa é um meio privilegiado de conhecimento”. (Denis de Rougemont – L´Amour et l’Occident, Paris, Plon, 1939, p. 37).

Definir o indefinível, conhecer o incognoscível, obter um conhecimento absoluto e salvador, um conhecimento redentor da Natureza e do homem, capaz de conceder a vida eterna e o retorno à inocência primeira, estas são fórmulas que demonstram bem o parentesco doutrinário direto que o Romantismo tem com a Gnose.

Este conhecimento absoluto e salvador seria capaz de reconduzir o homem ao estado de inocência superior, ao estado de Adão no Paraíso.

O romântico pretende restaurar ou reintegrar o homem na inocência primeva. Mais ainda: reintegrando o homem na divindade primitiva original dele, se restauraria a felicidade original do paraíso perdido. (sobre a doutrina da reintegração do homem conforme o Martinesismo, cfr. R. Le Forrestier, La Franc-maçonnerie occultiste au XVIIIéme Siècle & l’ordre des Élus Coens, Ed. Doreon- Aîné, Paris, 1928, pp. 37 e seg.). E o termo Restauração que tanta importância teve no período pós napoleônico, era ele também originário das doutrinas esotéricas de Madame Krudener (Barbara Juliane von Krudener, 1764-1824), que tanta influência teve na instituição da Santa Aliança. (Cfr. Auguste Viatte, Les sources occultes du Romantisme, ed. Honoré Champion, Paris, 1979, 2 volumes, 2º vol., pp. 188 a 213).

O retorno do homem a seu estado original no Éden seria o que se chamou mais tarde, entre certos esotéricos de “Le Grand Retour”, o Grande Retorno.

O Romantismo, como a Gnose, pretende possuir um Conhecimento salvador, quer obter a salvação pelo Conhecimento absoluto.

O conhecimento gnóstico consiste numa experiência interior inefável pela qual o homem se sabe divino, e este conhecer-se como Deus, é uma revelação ao homem do que o homem é. O Saber, o Conhecimento gnóstico é uma revelação ao homem do mistério do homem.

A Gnose é uma experiência, ou se refere a uma experiência interior chamada a se tornar um estado inamissível pelo qual no curso de uma iluminação, que é regeneração e divinização, o homem se apodera de si em sua verdade, se relembra e retoma consciência de si, isto é, ao mesmo tempo, de sua natureza e de sua autêntica origem; desse modo ele se conhece e se reconhece em Deus, conhece Deus e aparece a si mesmo como emanado de Deus e estrangeiro ao mundo, adquirindo assim, com a posse do seu “Eu” e de sua verdadeira condição, a explicação de seu destino e a certeza definitiva de sua salvação descobrindo-se como ser – por direito e desde toda a eternidade – salvo (D’Henri-Charles Puech, En quête de la Gnose – Tome I, La gnose et le temps, Gallimard, Paris 1978, I Vol. p. 190).

E Hans Jonas mostra que o conhecimento gnóstico é uma experiência interior:

No contexto da Gnose a palavra “conhecimento” toma um sentido categoricamente religioso ou sobrenatural; refere-se a objetos de fé, diríamos hoje, mais que a objetos de razão” (…) segue-se disso que o “conhecimento de Deus é conhecimento de um objeto incognoscível por essência (…) de uma parte esse “conhecimento” está ligado estreitamente a uma experiência de revelação, de modo que a recepção da verdade, por tradição sagrada e secreta ou por iluminação interior substitui a teoria do argumento de razão(…) conhecimento que tem por objeto os segredos da salvação uma instrução teórica sem mais (…) o “objeto” último da gnose é Deus: seu advento na alma transforma o conhecedor fazendo dele um participante da existência divina (Hans Jonas, La Religion Gnostique, Flammarion, Paris, 1978, pp. 55-56).

Não há então dúvida que o Romantismo é uma forma de Gnose. Daí dizer Georges Gusdorf:

“A doutrina gnóstica da revelação como experiência íntima de uma verdade transformante que conduz à salvação por vias que escapam ao controle do entendimento é um elemento da ontologia romântica” (G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le savoir romantique, ed cit, p. 187).

Como dissemos essa experiência era indizível. Daí o recurso dos românticos – aliás como o fizeram todas os sistemas gnósticos – ao mito.

O mito transmitiria um ensinamento oculto, não racional, ou mesmo a racional, embutido numa linguagem simbólica ou codificada. A desconsideração do valor da palavra humana, correspondendo à desvalorização do conhecimento racional – já que pensamos por meio de palavras, por meio do verbo interior – leva o romântico a preferir o símbolo misterioso à expressão objetiva pela palavra.

O Romantismo, como dissemos, pretende dizer o indizível.

“Daí o esoterismo romântico, o gosto pela linguagem cifrada, a paixão pelos hieróglifos, inclusive as interpretações ocultas das matemáticas em Herder, Baader ou Novalis, as especulações sobre os signos da Cabala, o gosto pelos símbolos…” (Gusdorf, op. cit. Vol I, p. 868).

Isto tudo levava o romântico a imaginar uma língua primitiva capaz de transmitir o conhecimento de modo direto, intuitivo e mágico, de modo tal que produziria a realização da coisa dita. Uma linguagem mágica que faria do homem um ser igual a Deus que, ao pronunciar a palavra divina, criava.

Por isso os românticos pesquisavam línguas antigas e mortas, buscando encontrar a língua original, que teria sido a língua perfeita:

A especulação sobre as línguas mães originais procedem da mesma inspiração; o sânscrito, o hebreu, aureolados por radiações sacrais, se veem atribuir a missão de dizer o indizível; mas como o hebreu, o sânscrito dos filólogos, são, em seu momento histórico, línguas como as outras, tem-se o prazer de acreditar que elas propõem formas tardias e degeneradas do verdadeiro sânscrito e do hebreu autêntico, em sua perfeição original. nada impediria de recomeçar o mesmo desdobramento se fosse necessário (Gusdorf, op. cit. Vol. I, p. 868).

Procura-se sempre uma linguagem mais antiga e mais perfeita, que daria um conhecimento sempre fugitivo e oculto, que nunca é alcançado, da mesma forma que no esoterismo se procura um segredo que sempre se evade, e que, quando encontrado remete sempre a outro, até se chegar ao segredo final que seria o que Hassan Ibn Sabbah transmitiu a seu sucessor na chefia dos ismaelitas de Alamut: “Nada é verdade e tudo é permitido”. (Cfr. Le Communisme, de la Bible à nos Jours, e Umberto Eco, L’Idea Deforme, Bompiani, Milano, 1989).

De fato, a Gnose pretende ser exatamente o conhecimento do incognoscível, isto é, o conhecimento do Ser Absoluto, Deus, e o conhecimento do processo vital da divindade (Cfr. Hans Jonas – La Religion Gnostique, Paris, Flammarion, 1978, p. 371). E, tanto quanto o Romantismo, a Gnose pretende ser um conhecimento absoluto e salvador. Algumas citações podem comprová-lo.

“(…) a gnose (do grego Gnosis, ‘conhecimento’) é um conhecimento absoluto, que salva por si mesmo, ou que o gnosticismo é a teoria da obtenção da salvação por meio do conhecimento” (Henri-Charles Puech – En Quête de la Gnose, Paris, Gallimard, 1978, Vol. I, p. 236).

Estas palavras, de um autor que é das maiores autoridades em matéria de Gnose, poderiam ser aplicadas inteiramente ao Romantismo.

Com ele concorda Serge Hutin ao dizer:

“Não é arbitrário de colocar um conceito geral de Gnose (como) ‘conhecimento’ salvador”. (Serge Hutin – Les Gnostiques, PUF, Paris, Que Sais-je?, 1970, p. 8).

E Simone de Pétrement escreveu:

“A Gnose (…é…) a religião do conhecimento, o culto do conhecimento como meio de salvação” (Simone de Pétrement – Le Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, Paris, PUF, 1947, p. 88).

Por sua vez, Robert M. Grant confirma essas afirmações ao dizer:

“…este é o primeiro ponto e o mais importante da definição do gnosticismo: uma religião que salva pelo conhecimento; conhecer, para eles, é essencialmente se conhecer, reconhecer o elemento divino que constitui o verdadeiro Eu”. (Robert M. Grant – La Gnose et les Origines Chrétiennes, Paris, Seuil, 1964, pp. 18-19).

Estas palavras também se aplicam perfeitamente ao Romantismo. Veja-se, por exemplo, como um pensamento de Friedrich Schlegel parece um reflexo delas:

“Tornar-se Deus, ser homem, formar-se, são expressões sinônimas”. G. Lukacs – Die Seele und die Formen, Berlim, Luchterland, 1971, p. 71-73 apud M. Puppo, op. cit., p. 276).

Não se julgue que forçamos o paralelo entre Romantismo e Gnose até fazê-los coincidir. Já Simone de Pétrement chegara à conclusão de que o Romantismo foi uma corrente gnóstica:

Pode-se dizer que reina, desde o romantismo, uma espécie de dualismo pessimista e sentimental, análogo ao dos gnósticos. Ele consiste, sobretudo, no sentimento que o homem está adaptado à sua própria condição, que ele se encontra apertado, que ele precisa de outra coisa (como se ele fosse estrangeiro a si mesmo e ao mundo em que ele se acha, como se sua verdadeira natureza não estivesse aí). Nós dissemos que os gnósticos são românticos; nós poderíamos dizer do mesmo modo que o romantismo é gnóstico (Simone de Pétrement – op. cit. p. 344).

Ora, se essa revelação por experiência interior é qualificada como Gnose, do mesmo modo o Modernismo, que afirma ser a revelação e fé são uma experiência interior, também ele é uma forma de Gnose.

5. Irracionalismo e Dialética do Romantismo

O pensamento romântico é um vitalismo. A divindade imanente ao homem, se esforça por penetrar pelas brechas do intelecto, pelas quais o inconsciente procura acabar com a distinção entre sujeito e objeto, entre o sim e o não, alcançando uma unificação dos princípios contrários. O pensamento romântico é dialético, unindo na identidade todos os contrários. A dialética romântica elimina quer o princípio de identidade, quer o princípio de não contradição.

Ao abrigo da cortina de sombras, os extremos se comunicam, as contradições se encontram unidas; tudo é possível, mesmo o impossível, e talvez o absurdo, assim como o manifestam os romances e contos nos quais o irreal parasita o real, onde os delírios da imaginação põem em cheque as indicações do bom senso. Märchen, contos de fadas, romances negros desencadeiam os impulsos surgidas desde os subterrâneos da realidade humana, extravagâncias de um pensamento que escapou ao controle das normas que regem suas atividades lúcidas, e que são reencontradas em estado selvagem. (Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit., vol. I, p.497).

O Romantismo quer fazer advir um modo de inteligibilidade que transcende as configurações mentais usuais. “Se se tem a paixão do absoluto e se não se pode curar dele, escreve Novalis, não restará outra escolha senão contradizer-se sem cessar e de conciliar os extremos opostos. O princípio de contradição se achará inevitavelmente abolido, e se terá apenas a escolha entre uma atitude passiva ou a decisão de reconhecer a necessidade de a enobrecer transformando-a em ato livre. (Novalis, Grãos de Pólen, 26, apud G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, p. 314).

Os modernistas – disse-o São Pio X, na encíclica Pascendi – costumavam mascarar seu pensamento utilizando duas táticas:

1) Afirmavam numa página o que negavam na outra. Deste modo, podiam sempre se defender quando eram acusados de ensinar uma heresia: na página tal negavam rotundamente o que haviam dito anteriormente.

2) Simulavam não estarem coordenados entre si. Cada modernista defendia o sistema num campo. Um era modernista na Exegese; outro na História; um terceiro na Filosofia; ainda um outro, na Teologia. E, por vezes, polemizavam entre eles mesmos, dando a impressão de que não existia um sistema comum e coerente.

Algo semelhante ocorria entre os românticos, facilitado pelo subjetivismo desta corrente de pensamento filosófica e artística.

Na realidade, o que existia tanto no Romantismo quanto no Modernismo, era uma doutrina esotérica que era ensinada claramente apenas para os iniciados. E essa doutrina esotérica era a Gnose.

Tudo isto fazia do Romantismo um movimento esotérico, que pouco se importava de fazer concordar suas teses com o que ensinavam as religiões, em seus credos.

Por exemplo, “o Iluminismo de Saint Martin, quase tão pouco cristão como o de Hermsterhuis, propõe uma livre pesquisa da verdade integral aberta a todos os espíritos de boa fé, sem subordinação às revelações extrínsecas” (Gusdorf, op cit., vol. I, p. 608).

6. Negação da verdade objetiva no Romantismo

O caminho exterior a que nos leva nossa racionalidade, tem como consequência o dividir a realidade em seres distintos, por meio da conceituação. Abstraindo, recortamos a realidade numa infinitude de conceitos, destruindo a realidade universal, que é uma totalidade viva, ficando em nossa mente um amontoado de ideias, como peças desordenadas de um puzzle infinito, que não conseguimos compreender, porque destruímos sua visão de conjunto. Somente pela intuição não racional é que captamos a realidade como um todo vivo, continuamente móvel, perpetuamente evolutiva, incapaz de ser reduzida a conceitos abstratos, nem de ser expressa por palavras.

O próprio do pensamento de Franz Von Baader, como de todo pensamento romântico em geral, (…) observa Eugène Susini, é de não poder se desenvolver de modo discursivo. O modo discursivo de exposição é o sinal da abstração; ele caracteriza o entendimento que divide para finalidades pedagógicas, enquanto que, ao contrário, toda a realidade viva se apresenta sob um aspecto global e sob a forma de uma totalidade (G. Gusdorf, Le Romantisme, op. cit., p. 488).

A conceituação seria como uma fotografia, um instantâneo de uma realidade em constante mutação. Ela mais deforma do que capta o real.

Duas coisas então são tidas como adversas à captação do real: a conceituação abstrata, e a palavra que dela decorre. Ideia e palavra, verbo interior abstrato, e verbo exterior prolato, seriam enganadores e escravizadores do homem no cativeiro da realidade concreta, dividida e morta.

Deste modo, o Romantismo se apresenta como inimigo do Verbo. Ora, isto demonstra como era falsa a pretensão de ver no Romantismo um movimento de fundo católico. Opondo-se ao intelecto, à ideia concebida, e à palavra, o Romantismo se opõe, de fato, ao Verbo. E a religião Católica é a religião do Verbo de Deus encarnado. Opondo-se ao verbo, o Romantismo se define como uma Gnose, coisa que foi constatada por inúmeros estudiosos.

Como vimos o Romantismo visa alcançar um Conhecimento absoluto e libertador por meio da intuição. O Romantismo, como filosofia procura “conhecer o Incognoscível. O Romantismo, como literatura, tenta dizer o inefável, o indizível. Ora, a Gnose pretende ter o “conhecimento do Incognoscível”, que é Deus. O Romantismo é uma Gnose moderna.

7. Imaginação e Romantismo

Para o Romantismo todo o mal vem da existência neste mundo material onde caiu a Divindade. Só realizaremos o Grande Retorno ao Eu divino – Le Grand Retour – e nos tornaremos, de novo, Deus, quando nos libertarmos da matéria e da individuação. Para isto será preciso libertar-se da razão que nos engana, apresentando o estado de existência atual como inteligível, racional, razoável e bom.

“O erro não é apenas consentir na existência: o erro está em existir” (…) Para nos liberarmos seria preciso o “abandono de toda consciência separada, para entrarmos num total esquecimento, que só ele nos restitui a Ser” (Albert Béguin, L´Âme Romantique et le Rêve, Lib. Jose Corti, Paris 1946, pp. 384-385).

Esta é a concepção romântica: o mundo dito “objetivo” é uma simples convenção sobre a qual nós nos entendemos, que nós “colocamos” para a comodidade de nossas relações entre homens, e o mundo do sono, ao contrário, é um mundo que nos é dado desde o interior de nós mesmos; ele nos é realmente comum a todos, porque nós todos nele participamos, ou porque nele nós participamos da Realidade universal (Albert Béguin, L´Âme Romantique et le Rêve, Lib. Jose Corti, Paris 1946, p. 85).

Karl-Philipp Moritz considera que

a existência é uma maldição. Os ocultistas, e logo os pensadores românticos, admitem que a unidade primitiva foi dissociada pela queda: e é a esta concepção que se liga Moritz, quando, vítima do austero pietismo de sua infância, ele acredita que os infortúnios, grandes e pequenos, de sua vida lhe são infligidos para “expiar o pecado que ele só cometeu por sua própria existência”. (Apud Albert Béguin, L´Âme Romantique et le Rêve, Lib. Jose Corti, Paris 1946, p. 32).

O mal viria então da existência e da consciência de existir, querendo permanecer nessa existência que seria uma limitação de nosso ser divino decaído na materialidade e na objetividade.

Conforme Carl Gustav Carus:

Não podemos conceber a Consciência do Espírito divino senão como alguma coisa de tão incomensurável, de tão infinito de tão universal, que, aos olhos de má consciência humana, de tal modo limitada e atada ao finito, essa Consciência divina coincide absolutamente com o mistério do Inconsciente; mas, inversamente, e por essa mesma razão, aquilo que chamamos de a Divindade do Inconsciente só pode residir na imensidade inefável de uma suprema Consciência divina (Cfr. A. Béguin, op. cit., p. 143).

Dessa recusa da existência, e da objetividade provém a recusa do pensamento e da razão como enganadores. Daí os românticos colocarem o sonho acima do pensamento.

Para Hoelderlin, “O homem é um deus quando ele sonha, um mendigo, quando ele pensa” (Apud A. Béguin, op. cit., p. 161).

Para Rousseau, “o homem que pensa é um animal depravado” (J. J. Rousseau)

Para o romântico Carl Gustav Carus,

o Amor é (…) a primeira libertação da existência separada, o primeiro passo de retorno ao Todo”. “E o romântico se trai na afirmação da superioridade do sentimento sobre o pensamento: pelo pensamento, se pode iluminar a relação ente a Ideia e sua manifestação; mas a própria Ideia não é alcançada de modo imediato e íntimo senão pelo sentimento. (Apud A. Béguin, op. cit., p. 137).

Enquanto o classicismo significava o triunfo da razão até seu endeusamento no racionalismo, o Romantismo é negador da razão. Daí o classicismo defender a clareza e a precisão, enquanto o Romantismo prefere a obscuridade, e a imprecisão do vago e do brumoso. Não é à toa que Novalis cantou os Hinos à Noite.

Libertar-se, exige sonhar e não mais pensar, pois o pensamento provém de um real ilusório. Só o sonho permitiria atingir a verdadeira realidade que existiria além do mundo das aparências, e que nos aparece furtivamente em insights, em flashes que perfuram a carapaça do mudo concreto, e objetivo, escapando da rede mentirosa dos raciocínios.

Compreende-se então porque se afirma que o Romantismo é antimetafísico (Cfr. A. Béguin, o. cit. p. 389).

Falando da cosmovisão de Karl-Philipp Moritz, Béguin diz:

Assim, a seus próprios olhos, o problema essencial de sua evolução era esta partilha entre dois mundos, um mundo real que o feria, e um mundo “ideal”, um a existência de sonho na qual ele se refugiava. Essa criação de um mundo arbitrário, onde o eu ferido pela dura realidade, pudesse expandir-se, é o movimento primeiro da alma romântica (A. Béguin, op. cit., p. 38).

Schleiermacher dirá:

Ah, se os homens soubessem usar esta divina faculdade da fantasia, já que somente ela pode libertar o espírito e colocá-lo acima de toda limitação e de toda constrição, e sem a qual a muralha, dentro da qual o homem está fechado, é tão apertada e tão angustiante! (Schleiermacher, Monólogos, tradução Italiana, p. 268, apud N. Abbagnano, Storia della Filosofia, vol. V, La Filosofia del Romanticismo, Ed. TEA, Milano, 1993, p.17).

E comentando esse parágrafo, escreveu Abbagnano: “E assim a potência e a infinita liberdade do homem se transforma na evasão, tipicamente romântica, do mundo da realidade, para o mundo da fantasia, do romance e da fábula”.

Para os românticos, mais vale a lenda do que a História, como disse, admitia e defendia, o romântico fundador da TFP, Plínio Corrêa de Oliveira.

Exemplo de fuga romântica se tem na vida do poeta romântico que redigiu as falsas visões de Anna Katharina Emmerich, Clemens Brentano.

Esse poeta, desde pequeno, imaginara a existência de um lugar perfeito, para onde ele fugia imaginariamente do mundo real que ele não suportava. A esse mundo de sonho ele o chamou de Vadutz. E quando, um dia, um tio mostrou a ele que existia a cidade de Vadutz num mapa do Lichtstein, Brentano se retirou em prantos, pois que se Vadutz existia, era mau.

Muitos sonharam com uma Idade Média de lenda outros imaginaram um Shangri-là. Outros, uma Montanha dos Profetas. Outros um Reino perfeito no futuro, com ares de retorno ao Éden. Sempre o sonho romântico é uma fuga para o passado mitificado.

8. Identidade entre Sujeito-Objeto no Romantismo

O idealismo filosófico afirmava a prioridade do sujeito sobre o objeto. Seria o eu que determinaria o objeto real. A verdade seria subjetiva, cada um criando a própria realidade a seu gosto. Daí tudo dependeria do homem. sujeito determinante do mundo. e da verdade. Voltando-se para o eu, para o interior de si mesmo, o homem se libertaria da realidade exterior imaginária alcançando o mundo divino ideal. Como dizia Novalis, o caminho da libertação não estaria fora do homem, e sim em seu interior: “É dentro de nós que está o caminho condutor misterioso” (Novalis, Grãos de Pólen, 16).

“Os pensadores do Romantismo se chocam com a impossibilidade quase material de dizer o indizível. Conforme Steffens, discípulo de Schelling, “a consciência é a revelação do infinito no finito, a tensão entre o infinito interior do Eu e o infinito exterior, o Universo” (Apud Gusdorf, p. 488).

Está aí uma primeira formulação diretamente Modernista: a consciência é a revelação do Infinito no finito, de Deus no homem.

Isto é já uma admissão de um princípio divino imanente no homem, que é um posicionamento claramente gnóstico.

O conhecimento verdadeiro não seria o de um objeto por um sujeito, mas o conhecimento que uniria sujeito e objeto num só ser. O sujeito só conhece o objeto quando ele sabe que o sujeito é o objeto. Deus, o mundo e o eu seriam uma só coisa. A “razão” romântica seria um “órgão” capaz de atingir o transcendente, que na verdade, seria imanente ao homem. E esta transcendência não seria apenas com relação ao mundo divino, mas também – se não principalmente – com as esferas infernais que povoam o inconsciente humano (Cfr. Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit. p. 489).

9. Imanência e Transcendência de Deus segundo o Romantismo

Para o Romantismo como para a Gnose, Deus é, ao mesmo tempo, imanente ao mundo e transcendente a ele. É imanente, pois que a gnose e o Romantismo acreditam que a Divindade está aprisionada em toda a natureza. É transcendente, porque originalmente a Divindade era absolutamente extrínseca ao universo – que só começou a existir quando a Divindade caiu nele – e porque a Divindade, atualmente imanente ao mundo, tende a sair dele.

A Divindade seria transcendente e, ao mesmo tempo, imanente. Seria transcendente porque só Ela seria o Ser, enquanto o mundo dos seres visíveis seria pura ilusão do conhecimento abstrativo. A Divindade seria também imanente porque estaria, atualmente, presa no mais profundo de todas as coisas.

“Não há contradição entre a afirmação da imanência de Deus, de sua presença no coração da Criação, e o reconhecimento da transcendência divina” (Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit. p. 646). Blondel e seus seguidores, nossos modernistas tupiniquins, Boffs e Bettos, – como Olavo de Carvalho, seguindo Guénon – não dizem diferentemente: para eles Deus é imanente e transcendente, ao mesmo tempo.

O divino está realmente em todas as coisas, mas tudo não é Deus. Deus é ao mesmo tempo o centro do mundo e a alma, ou o princípio de vida, de cada uma de suas partes; mas ele não se confunde mais com o mundo como a alma não se confunde com o corpo que ela anima. Deus é exterior ao mundo tanto quanto interior a ele; ele o ultrapassa e reside nele, o transcende e, entretanto, não poderia deixar de se manifestar nele (Albert Béguin, L´ Âme Romantique et le Rêve, Corti, Paris, 1939, p. 131).

10. A Presença divina no Homem – O germe divino no homem

Deus, o universo e o homem não teriam apenas uma correspondência poética. Entre eles haveria muito mais: haveria uma certa identidade substancial na medida em que o espírito divino – o Espírito Santo – está ao mesmo tempo, em Deus e também no cosmos e no homem, como um germe em vias de se desenvolver. Nesse sentido é que os românticos diziam que Deus era o “Centro” (Zentrum), o “Meio” (Mitte) o “Coração”, o “núcleo” (Kern), do homem e da natureza. Daí na Missa Nova de Paulo VI – pelo menos na tradução em português, quando o sacerdote dizia: “O Senhor esteja convosco”, o povo proclamava: “Ele está no meio de nós”. No meio, isto é, em Mitte, no Zentrum de nós”.

E os que fizeram essa tradução esdrúxula do et cum spiritu tuo [E com teu espírito] podem muito bem se escusar lembrando que na Constituição Gaudium et Spes se diz:

Por isso, proclamando a vocação altíssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina, o Sacrossanto Concílio oferece ao gênero humano a colaboração sincera da Igreja para o estabelecimento de uma fraternidade universal que corresponda a esta vocação (Concílio Vaticano II, Constituição Gaudium et Spes, № 3).

Como não ver que essa ideia, exposta na Gaudium et Spes, mais do que corresponde, é idêntica ao que expunha a Gnose romântica:

O fragmento 41 das Ideen evoca a necessidade de um contrapeso espiritual à Revolução, que cada um deve encontrar em si mesmo; assim o centro de equilíbrio de toda verdade se situa no espaço interior; todo movimento “deve vir do centro”, indica o fragmento 50. O centro é o lugar privilegiado a partir do qual se exerce a visão religiosa do mundo: “a religião é a força centrípeta e centrífuga no espírito humano e o que liga os dois (…) A determinação do Centro, expressão de uma nova economia espiritual, põe em causa a vocação de cada homem para a humanidade (G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, ed cit, p. 311).

A coincidência vai até a expressão vocação do homem à humanidade…

E Schlegel acrescenta: “um homem digno desse nome é aquele que chegou que chegou até o ponto central da humanidade (F Schlegel, Ideen, 20). A recorrência das palavras Zentrum, Kern (núcleo), Mitte (Meio), Mittelpunkt (ponto central) é significativo de uma pesquisa do centro da vida pessoal (G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, ed cit, p. 311).

Dessa Divindade imanente e transcendente ao mundo o poeta romântico se pretende mais ser profeta do que poeta, no sentido comum. Ele seria um médium entre o mundo divino e a realidade concreta deste mundo cheio de males e de tristezas, em que o homem se sente exilado. Pela mediação – ou mesmo pela mediunidade poética – o homem entraria em contato com o paraíso do qual fora expulso por um deus maldoso e ciumento.

A religião das religiões buscada pela teosofia romântica é expressa na poesia do Romantismo como a celebração dessa “Presença” transcendente e imanente da Divindade agora aprisionada no mundo, mas em busca de Libertação

“A presença de Deus imanente à Criação, não permite identificar a Criação a deus; é uma presença-ausência, sobre o modo de comunicação indireta, por meio de mediadores” (G. Gusdorf, Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique, ed cit, p. 199).

A palavra “Presença” designativa da Divindade imanente-transcendente tem origem na cabala que com ela se referia a Schechinah, presença imanente da última sefirah emanada pelo Ein Sof, e caída no mundo.

A ambiguidade da palavra “Presença” permitirá aos gnósticos infiltrados na Igreja jogar com seus vários sentidos, o que lhes permitirá afirmar a presença de Deus no povo e na Sagrada Escritura colocando-as no mesmo nível que a presença real de Cristo na Eucaristia. Na nova Missa de Paulo VI tais manobras quanto á presença de Deus permitirá a introdução de ideias gnósticas bem camufladas em certas fórmulas e rubricas da nova liturgia.

11. Sentimento e revelação no Romantismo

Ao negar a distinção de sujeito e objeto, ao identificar a realidade como um todo vivo que inclui Deus, o Universo e o Homem. o Romantismo nega que a natureza humana seja a de um animal racional, composto de corpo animal e alma racional. Para o Romantismo, o homem é apenas o “sentimento” interior, entendido como uma força vital, principio divino imanente e aprisionado num corpo animal e numa alma racional. Toda a redenção do Homem consistiria na tomada de consciência desta unidade única de Deus, do Mundo e do Eu. Redimir-se seria conhecer este princípio divino interior imanente que se expressa por meio do sentimento.

Essa “Presença” imanente do divino o homem por meio do Centrum, aquilo que na Gnose se chamava éon ou pneuma, e que na Gnose de Mestre Eckhart se chamava de “Funkenlein” [chamazinha] isso seria o foco da revelação e do conhecimento salvador no homem.

Esse atman divino no homem se manifestaria através de um sentimento vago e inefável. Quando o homem sente o seu Centrum aí ele tem uma revelação do divino em si mesmo. Esse sentimento se realiza para uma experiência em que se sente o sentimento. E esse sentir o sentimento seria propriamente o Amor, presença manifestada de Deus no homem.

“É unicamente pelo amor e pela consciência do amor que o homem acede ao homem” nos diz Schlegel no Ideen (Frederico Schlegel, Ideen, 83, apud G. Gusdorf, Savoir Du Nèant à Dieu dans le Romantique, ed. cit. p. 203)

É o sentimento que é o próprio homem, o sentimento é a alma (…) O sentimento (Gefuhl) abole tanto a dúvida quanto a certeza; o sentimento não procura palavras, ele não precisa delas, ele acha sua satisfação em si mesmo, e o homem que atingiu isto, disto volta para até uma forma qualquer de fé, porque a fé e o sentimento são uma só e a mesma coisa” (Tieck, apud Gusdorf p. 492).

Balzac faz um de seus personagens de seu Livro Místico dizer, em 1835: “Crer é sentir. Para crer em Deus, é preciso sentir Deus” (Apud Gusdorf, Le Romantisme, p. 790).

Eis aí, de novo expressa, uma formulação que é diretamente modernista: fé e sentimento são uma só e a mesma coisa. Loisy e Laberthonière não dirão diferentemente.

O sentimento interior era, na realidade, a manifestação ou a revelação da divindade imanente ao homem. A revelação divina não era recebida pelo ouvido, como ensina São Paulo, mas era sim uma experiência interior. Quem vivesse essa experiência estava salvo, porque tomara consciência que, no mais profundo de seu ser, o homem se reconhecia Deus.

Schleiermacher acaba por afirmar a especificidade do sentimento religioso como a intuição do infinito no finito. “Somente a religião é capaz, assim, de libertar o homem de sua limitação e de lhe conferir a universalidade, a infinitude; ela ultrapassa, portanto, a filosofia confinada no fenomenismo da ciência e no formalismo da moral. Se o idealismo é filosoficamente o ponto de vista do sujeito, a religião, no sentido em que a entende Schleiermacher, é um esforço para ultrapassar o ponto de vista do sujeito, sem todavia sair do sujeito, para elevar o sujeito à altura do Absoluto (Xavier Léon, Fichte et son temps, II, A. Collin, 1924, p. 191, apud Gusdorf, op cit, vol. I, p. 615).

O sentimento de piedade assegura a comunicação entre o indivíduo e o Ser universal; ele consagra a inserção do finito no infinito, a experiência fundadora do valor da existência, fora dos quadros da teologia. A partir desta origem se opera

a descoberta, pela religião, da verdade religiosa, da qual os dogmas são os símbolos, os quais somente o sentimento religioso pode vivificar: o milagre, a imortalidade da alma, a existência, e a própria natureza de Deus recebem então do puro espírito da religião um sentido plausível e uma interpretação verídica. (Xavier Léon, op. Cit., apud Gusdorf, vol. I, p. 616).

E como este sentimento é intraduzível, quer pelo verbo interior, quer pelo verbo exterior, cada homem expressa seu sentimento – sua fé – com palavras diversas, com fórmulas de credo diferentes, todas elas, porém, impotentes de expressar o que é o sentimento interior, o qual é, na realidade, o próprio ser divino imanente no homem. Todos os credos são inúteis tentativas de pronunciar o que é inefável.

Para Benjamin Constant também

todos os nossos sentimentos íntimos parecem burlar-se de dos efeitos da linguagem, a palavra é rebelde, pelo simples fato de que ela generaliza o que ela exprime, ela serve mais para designar, para distinguir do que para definir.(…) A epistemologia intelectualista não é aplicável a uma realidade por essência irredutível ao discurso (Apud Gusdorf, op. cit. p. 786).

“A crença toma posse das almas, uma e única crença, se bem que pela inadequação da linguagem a faça revestir-se de expressões diferentes”. (Gusdorf, Le Romantisme, p. 492).

Esta frase, citada acima por Gusdorf, é de Tieck, nos anos iniciais do século XIX. Entretanto, seu ecumenismo a faz parecer a de um “teólogo” atual, seguidor do Vaticano II.

Cada ser possuiria da verdade apenas uma visão parcial, diferente para cada um, verdade mutável, em estado de errância, cujas etapas são feitas de alegrias e de desesperos, de conversões e de renúncias” (Gusdorf, Le Romantisme, p. 495).

Comunicação entre o individual e o universal significa fazer o homem enquanto indivíduo se identificar, transformar-se na Humanidade e transformar a Humanidade na Divindade. Quando o homem se identificar com a humanidade começará uma nova era: a da Humanidade. Haverá então uma nova religião: a religião da Humanidade

É exatamente a doutrina do Modernismo e a dos esotéricos de todos os tempos.

Hermsterhuis ordena a vida espiritual não em função de Cristo, nem mesmo de Deus, mas em função da Divindade, manifestada por intermédio de um “órgão” que atesta em nós a presença do divino. A revelação cristã é deixada de lado; o Platão holandês evoca de preferência a tradição da filosofia grega. Uma revelação sobrenatural ilumina o espaço desde o interior [do homem] o foco da personalidade marcado pelo órgão específico da verdade, se chama coração, sentimento, consciência, princípio de orientação ontológico e axiológico que assegura a autonomia espiritual do sábio. (Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit., Vol I, p. 606).

É impressionante, nesse texto de Gusdorf, a coincidência de terminologia entre Romantismo e Modernismo.

E conclui Gusdorf:

“A doutrina gnóstica da revelação como experiência íntima de uma verdade transformante que conduz à salvação por vias que escapam ao controle do entendimento é um elemento da ontologia romântica” (Gusdorf, op. cit., Vol I, p. 635).

Um dos autores românticos e liberais, protestante de religião, em que as ideias românticas se evidenciam mais claramente como precursoras do Modernismo é Benjamim Constant, mais conhecido por seu papel político do que por sua obra religiosa. Entretanto seu livro De la Religion Considérée dans sa Source, ses Formes et ses Développements é uma obra importante na gênese do Modernismo.

Constant tem afirmações que lembram visivelmente a Gnose que Guénon iria defender sobre as religiões exotéricas e esotéricas:

Até aqui só se examinou o lado exterior da religião. A história do sentimento interior permanece inteiramente a ser concebida e feita. Os dogmas, as crenças, as práticas, as cerimônias, são formas que toma o sentimento religioso e que ele, em seguida, rompe. (…) Descreveu-se o exterior do labirinto: ninguém penetrou-o até o centro, nem o poderia fazer. Todos os que procuravam a origem da religião em circunstâncias estrangeiras ao homem, quer os devotos quer os filósofos. (Benjamin Constant, apud Gusdorf, op. cit. p. 784).

A revelação de Deus ao homem não provém de um Deus existente apenas fora do homem e do universo, de um Deus considerado transcendente. Deus, na realidade, seria também imanente ao homem.

[Benjamin] Constant repudia o processo analítico do século XVIII, que supõe inicialmente termos isolados uns dos outros; há implicação mútua, interioridade recíproca do homem e de Deus desde a origem (…) A causa da religião, afirma Constant, “não está fora de nós; ela está em nós, ela faz parte de nós mesmos. (…) A sociedade. a linguagem, a religião são inerentes ao homem; as formas variam (B. Constant, op. cit., p. 38, apud Gusdorf, p. 785).

Esta imbricação reciproca e ontológica entre Deus e o homem faz com que a revelação divina deva ser considerada como um fenômeno que se realizaria no interior do homem, e não como um fato histórico exterior à subjetividade humana.

Sendo a revelação um fato interior ao espírito humano, causado pela identificação ontológica entre o espírito humano e o divino, a revelação não seria um fato singular, provindo da encarnação do Filho de Deus, como acreditam os católicos. Se a revelação tivesse sido apenas através de Jesus Cristo, ela teria sido um privilégio concedido pela Divindade a um povo, a umas pessoas, com exclusão, pelo menos temporária, de grande parte da humanidade. Para o romantismo, a revelação sendo um fato dependente da própria natureza mais íntima do homem, ela não seria privilégio de ninguém, nem de uma pessoa, nem de um povo, nem uma civilização. Todos os homens, por sua natureza, seriam capazes de receber a revelação interior.

É o que confirma o pensamento romântico de Constant:

Se a revelação fosse um acidente da história, ela se tornaria uma maneira de acaso, benéfico para aqueles aos quais foi dada, mas injustamente recusado a todos os outros. Reconhecer uma dimensão religiosa inerente à realidade humana, é admitir que a revelação é co extensiva ao gênero humano, conforme as constatações dos observadores e viajantes sobre a face da terra.

Difícil de definir com precisão, o sentimento religioso é “a resposta a este grito da alma que ninguém faz calar, a este impulso em direção ao desconhecido, em direção ao infinito, que ninguém pode chega a dominar inteiramente, (…) (Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit., vol I, p. 785).

É esta argumentação que leva os chamados “teólogos da religião” – tais como Panikar, Rahner e Dupuis -, a aceitar todas as “revelações” das religiões de todos os povos, como tendo o mesmo valor divino da revelação cristã.

Haveria, no fundo, uma só revelação, sob várias formas doutrinárias e sob variadas expressões culturais. A “Teologia da Religião” serviria de “Dicionário”, mostrando como o que diz uma religião é traduzível no que diz outra.

Que seria, no fundo, essa única revelação da Divindade existente no interior do homem?

Seria, na verdade, a revelação feita pela Divindade de que ela mesma e o homem constituem uma só e mesma coisa, isto é, que o homem é a própria Divindade. Portanto, a revelação consistiria em revelar ao homem sua própria natureza divina. A Divindade revelaria o mistério do homem ao homem.

Permita-se nos ser repetitivos, para que a ideia romântica e gnóstica de revelação fique mais clara.

De certo modo, quando Deus Se revela ao homem, desde o interior do homem, estaria revelando também o que é o mais profundo do ser humano ao próprio homem. A revelação é, em certo sentido, do homem ao homem. Pela revelação o homem vem a conhecer o que ele é de verdade; pela revelação o homem vem a conhecer o “Mistério do Homem”.

O que é perplexitante é encontrar, hoje, essa mesma doutrina em textos de João Paulo II, que, quando jovem e artista de teatro, sofreu imensa influência do romantismo polonês, ele mesmo efeito do gnóstico romantismo alemão.

“Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime” (João Paulo II, Redemptor Hominis, Nº 8, Paulinas, São Paulo, 1990, p. 23. O itálico é do original).

Esta revelação interior, por intuição que se dá em todo ser humano, já fora experimentada pelo primeiro homem. A transmissão das experiências divinas através da História é o que se chama de “Tradição”. É Tradição Viva, porque vai sendo enriquecida, no decorrer da História, por novas intuições divinas experimentadas pelos homens, e que progressivamente a enriquecem.

O esquema romântico da mobilização da verdade se aplica ao dado revelado, que não é dado em sua integralidade desde a origem (sicut erat in principio et nunc et semper). “A Tradição católica se vê, por um ato de intuição imediata, na identidade de seus estados sucessivos. Germe primitivamente deposto por Deus no seio da Humanidade, ele desenvolve pouco a pouco suas virtualidades. Assim, o catolicismo nos torna “presente” o cristianismo original. Todo o resto é heresia, e se acha fora desta corrente vital que saiu dele.” (Edmond Vermeil, A. Moehller et l’École Catholique de Tubingen, A. Collin, 1913, p. 35. Apud Gusdorf, op. cit., Vol I, p. 712).

Uma tal dinâmica vitalista da verdade evoca os grandes nomes de Herder e de Schelling; a tradição cessa de ser um agregado de tradições. Ela é um princípio de continuidade orgânica. Ela é uma potência espiritual…” (Apud Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit., Vol. I, p. 712).

Como isto é parecido com o que pensa o Modernismo, hoje, e com o que ensinam os esotéricos de todos os matizes!

Curiosamente, o pensamento romântico se reencontrará, hoje, nos teólogos mais avançados da chamada Teologia das Religiões.

O famoso Padre Jacques Dupuis, visado na Declaração Dominus Jesus, afirma que houve uma “Aliança Cósmica” entre Deus e o Homem através das leis impostas pelo Criador ao universo criado, e chega a citar como primeiro santo “pagão” (sic!) dessa suposta “Aliança Cósmica”, Abel!!

As raízes desse pensamento estapafúrdio podem ser encontradas nos românticos alemães.

Veja-se, de novo, este texto de Gusdorf:

[Benjamin] Constant retoma a via seguida por Schleiermacher nos Discours sur la Religion um quarto de século antes. A inspiração pessoal, o sentimento de dependência com relação ao infinito é o ponto de partida do caminho que, no final do percurso, alcançará a revelação escriturística e a Igreja instituída. Os teólogos tinham reconhecido uma revelação natural, fora dos Livros Santos; mas tratava-se então da Grande Obra de Deus na Criação, cujo espetáculo harmonioso conduzia ao Criador. Para Schleiermacher como para Constant, e aliás já antes para o Rousseau do Vigário Saboiano, a revelação natural nos envia para o testemunho interior do sentimento religioso, identificado ao Espírito Santo. “Quanto mais se está convencido, escreve Constant, que a religião nos foi revelada por vias sobrenaturais, mas se deve admitir que tínhamos em nós a capacidade de receber essas comunicações maravilhosas. É essa faculdade que nós denominamos o sentimento religioso (B. Constant, op. cit., nota da p.38, apud Gusdorf, Le Romantisme, vol. I, p. 785).

12. Romantismo e Ecumenismo

Quer em Novalis, quer em Louis Claude de Saint Martin – mestre maçônico do tradicionalista gnóstico Joseph de Maistre – quer em Hemsterhuis se encontra essa tendência defender um ecumenismo irenista já que em todas as religiões, mesmo nas pagãs, haveria uma revelação da Divindade imanente no homem através do sentimento religioso. Tais tendências ecumênicas “se encontram na religião romântica, a busca de uma interconfessionalidade, segundo a qual o domínio cristão não engloba senão uma parte do território religioso” (Gusdorf, p. 610).

O Romantismo alargou e reduziu a velocidade do sentido religioso; ele dissociou a religião em geral e a revelação cristã, que impõe à afirmação do divino uma especificação histórica, um gargalo de estrangulamento. Nenhuma obediência cristã pode pretender deter a exclusividade da afirmação religiosa. Os guardiães da ortodoxia, ultrapassados por um movimento irresistível, se debatem tão bem quanto mal, e antes mal do que bem. A liberdade de religião, aquisição dos novos tempos, não pode ser reposta em discussão (Gusdorf, p. 626. O sublinhado e o negrito são nossos).

Quem poderá negar a coincidência absoluta do pensamento expresso por Gusdorf sobre o Romantismo, nas frases postas em negrito e sublinhadas por nós, e o pensamento dos teólogos que fizeram triunfar o Modernismo, na Teologia do pós-Vaticano II?

13. Romantismo e Igreja Primitiva

Tanto no Romantismo, quanto no Modernismo, se proclamam o desejo de retornar à Igreja primitiva, quanto o de recuperar a unidade perdida do cristianismo por meio de um movimento ecumênico que valorizasse mais o amor do que as crenças e os dogmas. Estes deveriam ser deixados de lado, fazendo-se a união por meio de um diálogo relativista e de uma atividade caridosa, por meio do Amor.

O domínio romântico alemão vê afirmarem-se projetos de alargamento do horizonte confessional. A vontade de retornar a um cristianismo original (Urchristentum) se duplica por uma transferência em relação ao futuro, quando se tornaria possível a reconciliação dos irmãos separados, sem “redition”, nem submissão de um ao outro. O que vai ser chamado, no começo do século XX, o movimento ecumênico, teve precedentes no seio da Alemanha efervescente do século XIX, sob a inspiração das representações teosóficas desenvolvidas por certos iluminados das obediências cristãs. Tal como o médico Jean Charles Passavant (1790-1857), descendente de huguenotes franceses, amigo de Sailer e de Dieppenbrock, Bispo de Breslau, que estudou a história das igrejas cristãs, recorrendo por vezes, para esclarecer a doutrina, às luzes do magnetismo animal. Conforme Passavant, as igrejas reformadas pertencem, tanto quanto o catolicismo, à Igreja verdadeira, cuja unidade superior se situa além da polaridade das confissões atuais. “A separação, que começou no curso dos séculos passados, acentuou as oposições até fazer delas contradições. A reconciliação que se inicia deveria transformar as contradições em oposições, e estas deveriam ser assemelhadas a cores complementares à luz de uma verdade mais alta (Ricarda Huch, Die Romantik, 1931, p. 236, apud Gusdorf, vol., p. 695).

Baader, Görres, Daumer, Passavant estimam que o aprofundamento científico buscado pelos protestantes deve se aliar com a riqueza intrínseca da fé católica. O mito do andrógino permite imaginar a união futura da feminilidade da piedade católica com a varonilidade do saber protestante. Retomando o esquema tradicional do Evangelho Eterno, que Lessing tinha laicizado na sua “Educação do Gênero Humano”, Schelling evoca o advento sucessivo e dialético do catolicismo, Igreja de Pedro, depois do Protestantismo, Igreja de Paulo, na expectativa que se imponha a Igreja de João, reconciliada na unidade (Gusdorf, op. cit., Vol. I p. 695).

14. Separação ente Igreja e Estado: o Estado deveria ser laico

Foi exatamente o que foi repetido nos textos de Novalis, e nos escritos maçônicos de Jules Romain a respeito dos famosos e misteriosos “Homens de Boa Vontade”, expressão que viria a ser usada em profusão, especialmente pelo Papa, que significativamente, quis tomar o nome de João.

Evidentemente essa união ecumênica não poderia admitir que houvesse uma religião oficial, que um Estado se proclamasse católico. Ela exigia a separação da Igreja e do Estado, tal qual a proclamou o liberalismo, e tal qual foi defendida no Vaticano II, cujas doutrinas pastorais levaram os últimos Estados, que estavam unidos à Igreja, a se separarem dela.

Os teólogos modernistas defenderam a separação entre a Igreja e o Estado, desejando que em toda a parte a Igreja Católica perdesse o estatuto de Igreja oficial de um Estado, porque isto contrariaria a liberdade de religião e de consciência. Eles se manifestavam, nos dias do Vaticano II, como favoráveis à ab-rogação de todos os privilégios da Igreja. Queriam uma Igreja pobre e perseguida. Diziam, como o modernista Dom Helder Câmara, o Arcebispo Vermelho de Recife, que queriam uma Igreja das catacumbas. O mesmo pensamento foi expresso por um dos pais do modernismo romântico, Louis Claude de Saint Martin, o teósofo mestre e iniciador do gnóstico Joseph de Maistre:

Reconheci a mão de Deus na supressão do culto na França como resultado da Revolução… As igrejas impuseram aos fiéis um culto exterior, transformado em ritos, cultos e cerimônias que desviam a atenção para aspectos subalternos ou propriamente negativos da vida religiosa. Eu creio que […] foram os padres que retardaram ou perderam o cristianismo, que a Providência, que quer fazer o cristianismo avançar, previamente teve que afastar os padres e que assim se poderia de algum modo assegurar que a era do cristianismo em espírito e em verdade só começa depois que foi abolido o culto sacerdotal; porque, quando Cristo veio, seu tempo não estava senão no milênio de sua infância e ele devia crescer lentamente através de todas os humores corrosivos com os quais seu inimigo devia procurar infectá-lo (Gusdorf, op. cit., Vol. I , pp.609- 610).

15 – Igreja pobre e sem estruturas. Igreja igualitária.

E como esta satisfação com a perseguição se parece com o que defendia o Modernista Dom Helder Câmara nos anos do Vaticano II, quando o Arcebispo Vermelho de Recife assinou o Pacto das catacumbas, defendendo a tese de que a Igreja, para progredir, deve ser perseguida e viver em catacumba… Como acontecia na URSS, ou em Cuba.

É claro que esta desvalorização dos ritos leva a uma busca de um culto desligado das fórmulas dogmáticas, e que tendesse à união de todos os “irmãos separados”.

“Haverá, na primeira metade do século XIX, uma agitação no meio católico, por uma mudança das estruturas eclesiásticas; alguns reclamam a Missa em alemão, o casamento dos padres e o estabelecimento de autoridades sinodais” (Gusdorf, Le Romantisme, ed. cit., vol. I, p. 695).

Será preciso recordar que os Modernistas levantaram essas mesmas bandeiras que acabaram por triunfar após o Vaticano II?

Essa busca da origem da religião no “interior do homem’ foi típica do Romantismo alemão que a herdou de Jacob Boehme e do Pietismo. Os românticos, como Boehme, falavam de um misterioso “centro” do homem, do qual viria a manifestação divina. Esta interiorização da religião no homem tinha como consequência a colocação do “espírito” acima e em oposição à matéria, no sentido em que a Gnose supervalorizava o espírito e desprezava o corpo. Disto resultava um desprezo das cerimônias, dos sacramentos, das estruturas eclesiásticas, e, por fim, até mesmo dos dogmas, preferindo-se o sentimento – o “amor” – acima da Fé.

Hamann, Herder, Jacobi, Schleiermacher, Novalis, Constant, e muitos outros mais, tomaram essa posição.

Enquanto a tradição católica apresentava a revelação como provindo de fora do homem – por isso São Paulo diz que “a Fé vem pelo ouvido” (Rm X, 17) – como uma doação de Deus que ontologicamente é transcendente e exterior ao homem. A revelação é extrínseca ao homem, e ela terminou com a morte do último apóstolo.

Para o Romantismo, ao contrário, e como já vimos, a revelação é intrínseca ao homem, e, portanto, continua sempre na história, enquanto houver homens. Para Benjamin Constant a fonte da revelação se dá no “coração” do homem:

Sim, sem dúvida, há uma revelação, mas esta revelação é universal, é permanente, ela tem sua fonte no coração humano. O homem não precisa senão ouvir-se a si mesmo, ele só precisa escutar a natureza que lhe fala por mil vias para ser invencivelmente levado à religião. Sem dúvida também, os objetos exteriores influem sobre as crenças, mas eles modificam as formas delas, elas não criam o sentimento interior que lhes serve de base (Benjamin Constant, De la Religion, p. 38, apud Gusdorf, op. cit. vol. II, p. 784-785).

É evidente que esta doutrina negava qualquer caráter sobrenatural à religião, transformando-a em fenômeno puramente natural. Portanto, caindo ou no panteísmo, ou na Gnose, de todo modo, fazendo o homem Deus. A revelação seria então a revelação do homem ao homem, pois que permitiria ao homem conhecer sua verdadeira natureza divina.

Um parêntese atualizador

Compare-se esse texto acima com o que dizem o Cardeal Jean Daniélou e o Padre Jacques Dupuis, os quais afirmam que antes da Aliança com Israel, Deus havia instituído uma “Aliança Cósmica”. Como prova dessa “Aliança Cósmica, Dupuis cita o texto de Jeremias XXX, 20-263 que diz:

Se for invalidada a minha aliança com o dia e a minha aliança com a noite, de sorte que não haja dia e noite a seu tempo, também poderá ser invalidada a minha aliança com Davi, meu servo, de sorte que não haja dele um filho que reine no seu trono, e levitas e sacerdotes, ministros meus. Assim como as estrelas do céu não poderão ser contadas, nem ser medida a areia do mar, assim multiplicarei a linhagem de Davi, meu servo, e os levitas, meus ministros. (Cfr. Pe. Jacques Dupuis, Rumo a uma Teologia Cristã do Pluralismo Religioso Paulinas, São Paulo, 1999, p. 55).

Desse texto, que fala apenas que Deus mantém suas promessas, assim como mantém imutáveis as leis da natureza, Daniélou e Dupuis deduzem que houve uma “Aliança Cósmica” de Deus com o mundo análoga a de Deus com Israel e com a Nova Aliança de Cristo com a Igreja.

“Trata-se de uma “aliança cósmica”; mas a permanência que esta promete não se deve a leis naturais, e sim à fidelidade (emet) do Deus vivo. Tal aliança não é parte da história natural, mas de uma história da salvação. A fidelidade de Deus na ordem cósmica é, para Israel, a garantia de uma fidelidade na ordem histórica. É assim que a ordem cósmica será concebida por Paulo, quando fala de uma revelação permanente de Deus através do cosmo endereçada a todas as pessoas. J. Daniélou comenta:

A religião cósmica não é religião natural, no sentido de estar fora da ordem sobrenatural efetiva e concreta. […] É natural apenas porque é por meio de sua ação no cosmo e de seu apelo à consciência, que o Deus único é conhecido. A aliança cósmica já é uma aliança de graça. Só que esta aliança ainda é imperfeita, pois Deus só se revela através do cosmo[…]

“E acrescenta [Daniélou]: “A aliança cósmica já é uma aliança sobrenatural; não é de ordem diversa daquela mosaica ou cristã” (J. Dupuis, op. cit. p. 56).

Desliza-se de uma comparação sobre a fidelidade de Deus para um conceito de ‘’Aliança cósmica”. Daí para a ideia de uma revelação de ordem sobrenatural. Destra para a de uma religião cósmica da natureza que seria sobrenatural, para finalizar dizendo que o próprio Espírito Santo se manifestava nas religiões naturais.

Diz Dupuis:

Em todo caso, as religiões cósmicas – termo com o qual se compreendem todas as religiões do mundo, exceto as três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – são apenas elaborações humanas de um conhecimento de Deus obtido através da ordem da natureza. Como tais eles eram incapazes no passado, e continuam incapazes ainda hoje, de levar à fé salvífica, que pode provir apenas da intervenção gratuita de Deus na vida das pessoas. Em si mesmas, elas não têm poder salvífico; na melhor das hipóteses, representam várias expressões dentro de culturas diferentes, da aspiração da pessoa humana por um Ser Absoluto. (J. Dupuis, op. cit., p. 191).

Mas, depois, fundando-se em textos de João Paulo II, Dupuis vai mais além na questão das “religiões cósmicas”:

Cito alguns desses textos do Papa atual nos quais se baseia Dupuis:

Inicialmente, João Paulo II coloca apenas uma pergunta:

Será que a firme crença dos seguidores das religiões não-cristãs – também ela efeito do Espírito da verdade, agindo além dos confins visíveis do Corpo Místico – não pode como que confundir os cristãos, tão dispostos a duvidar das verdades reveladas por Deus e anunciadas pela Igreja (…) (João Paulo II, Redemptor Hominis, 4/Mar/1979, Nº 6, apud Dupuis, op. cit. p. 243-244).

João Paulo II pergunta se o Espírito Santo não agiria sobre os pagãos, dando-lhes firmeza de crença, só para corrigir os cristãos em sua fraqueza. Mas, ao perguntar sobre o fim visado pelo Espírito Santo, afirma que o Espírito Santo atua efetivamente fora dos limites visíveis do Corpo Místico de Cristo, isto é, fora da Igreja.

Depois, João Paulo II, na mesma encíclica, afirma que “justamente os Padres da Igreja viam nas diversas religiões como que outros reflexos de uma única verdade, como que ‘germens do Verbo’, os quais testemunham que, embora por caminhos diferentes, está contudo voltada para uma mesma direção a mais profunda aspiração do espírito humano, tal como ela se exprime na busca de Deus, e conjuntamente, na busca, mediante a tensão no sentido de Deus, da plena dimensão da humanidade, ou seja, do sentido pleno da vida humana” (João Paulo II, Redemptor Hominis, № 11, apud Dupuis, op. cit. p. 244).

Desses textos emerge gradualmente um único ensinamento: o Espírito Santo está presente e ativo no mundo, nos membros das outras religiões, e nas suas tradições religiosas. A oração autêntica (ainda que dirigida a um Deus desconhecido), os valores e as virtudes humanas, os tesouros de sabedoria ocultos nas tradições religiosas, o verdadeiro diálogo e o autêntico encontro entre seus membros, são igualmente frutos da presença ativa do Espírito. (J. Dupuis, op. cit. p. 245. O negrito é nosso).

Voltando à revelação interior romântica

“Creuzer lembra a etimologia de símbolo e o definiu, na antiga religião grega, como “aquilo que, vindo inopinadamente das profundezas secretas da natureza, impressionasse o olho do homem como um presságio e que se impusesse como uma coisa extraordinária” (Gusdorf 779).

Assim como Deus seria transcendente e, ao mesmo tempo, imanente nas criaturas componentes de nosso universo, assim também o símbolo seria a manifestação do espirito divino, imanente nas coisas, lançando um grito de apelo à partícula divina imanente em nós. O símbolo geraria uma simpatia entre a coisa que ele simboliza e o éon divino aprisionado no fundo de nosso ser, clamando por sua libertação. O símbolo despertaria em nós a divindade adormecida, e, então, seu eco seria o mito que esse despertar produziria.

O mito remete a uma ordem transcendente ao universo existente. Ele é uma voz que desperta a consciência do homem para uma situação original que será, paradoxalmente coincidente com uma felicidade “futura no passado”. Um “Reino” que virá – milenarismo futuro – conjunto e concomitante a um primitivismo que remete ao Éden, portanto à origem dos tempos. Daí o gosto romântico pelo passado, a visão idílica de um estado natural perfeito, fora da sociedade, que no Brasil se expressou pelo indianismo. É por isso que, na arte, se busca a inocência da criança e o primitivismo da humanidade original, imitando-se a arte selvagem. Nisto há uma condenação da ordem racional, que leva a mar as expressões pré-racionais da criança, a irracionalidade dos loucos, e a arte primitiva a-racional do selvagem, as únicas capazes de exprimir puramente – sem a contaminação da razão – os desejos e sentimentos mais profundos da humanidade. No Modernismo teológico, essa manifestação dos sentimentos mais profundos e a-racionais seria uma tentativa da Divindade encarcerada na matéria para auto manifestar-se, a fim de alcançar a libertação, que, para os modernistas, é o termo que substitui o de salvação na Teologia Católica.

No mito, diz Gusdorf, há uma “desimplicação” de uma verdade “implicada” em nossa existência. Não se deve pensar que omito fornece uma ideia à nossa inteligência, como normalmente o fazem os objetos o conhecimento.

O mito permite um encontro iluminante entre algo que vem de fora com algo que aflora de repente, dentro de nós. Haveria o encontro amoroso de uma evidência do exterior com uma in vidência proveniente de nosso interior. E isto seria a “revelação”

Para o Modernista Maurice Blondel, seriam condenáveis quer o “extrinsecismo”, como o “intrinsecismo”, entendendo ele por esses neologismos bárbaros, a revelação de Deus vindo exclusivamente de fora de nós, quer a revelação considerada como se originando exclusivamente de dentro de nós (Cfr. René Virgoulay, Blondel et le Modernisme, Cerf, Paris, 1980, p. 281).

Para Blondel, a ideia de que toda revelação provinha do interior era imanentismo exclusivista que renegava a existência de uma Divindade transcendente. A ideia de um exclusivismo da revelação exterior implicaria na recusa da imanência. Ele inventou, então, outro neologismo bárbaro – os modernistas se lambuzam inventando termos abstrusos e pseudointelectuais – o monoforismo”.

Veja-se como já no Romantismo existiam essas ideias de Blondel:

A consciência religiosa do romantismo desloca a ideia de revelação de fora para dentro, para o interior. A comunicação transcendente realizada por iniciativa de uma autoridade extrínseca não é abolida, mas subordinada à função mítica enquanto substrato da realidade humana. Os formulários religiosos, ritos e mitos, doutrinas, teologias, são referidos a esta origem comum, que permite considerá-las compatíveis entre si. – [Como isto cheira a Guénon e a Olavo de Carvalho!] – O sentido religioso aparece como o denominador comum das afirmações mais opostas, que comunicam e comungam em sua fonte (única), ainda quando elas pareçam se opor entre si no pormenor das doutrinas, desnaturadas pela colocação em forma discursiva operada pelos doutores intelectualistas. A história das religiões não consiste em colocar, lado a lado, a multidão das variedades culturais e intelectuais aparecidas no curso dos séculos, amostras sobre estantes, ou plantas secas num herbário; ela reencontra sua autenticidade humana que as religiões manifestam cada uma a sua maneira.

Uma palavra de Deus só é acessível ao homem quando é formulada em linguagem humana. Não há revelação se Deus fala de Deus a Deus, na linguagem de Deus (Gusdorf, op. cit. p. 782).

Blondel, e Guénon não falaram diferentemente.

Daí o ecumenismo do Vaticano II tal como é visto por aqueles que defendem o “espírito do Concílio”: é preciso compreender cada religião como uma língua diferente, mas cujos significados são correspondentes. Os teólogos que se dizem os intérpretes do “espírito do Concílio” pretenderam estabelecer não só o Dicionário Teológico da Religião Universal, mas, mais ainda, preconizaram a futura instituição de uma Religião Universal – a ORU, Organização das Religiões Unidas – da qual o Para seria apenas o presidente de honra, ou o Secretário Geral, mas sem nenhuma supremacia jurídica.

O símbolo romântico trazia a mesma revelação: uma “e-vidência” proveniente de fora do homem, com uma “in-vidência” proveniente de seu interior. A união dessas duas informações é que permitiria o Conhecimento (Connaîssance) fazendo notar que, em francês, o termo “Connaîssance” é ambíguo, podendo significar “conhecimento”, e também “nascer junto”.

A Revelação, linguagem intuitiva, acesso direto ao divino, estava presente, antes que se desenvolvesse o conhecimento discursivo, no sentimento do sagrado – [Diria um profeta de Higienópolis: na “ideia de sacralidade”, no sacral] – que ligava os homens ao conjunto da criação. A história da revelação é co-extensiva à história da humanidade, sem que o cristianismo possa pretender fixar a origem, ou um corte radical, nesse porvir. Creuzer toma emprestado de seu amigo Görres a epígrafe de sua obra, na qual se acha invocado o devir universal da cultura. “Nenhum princípio mais sagrado deve ser defendido pela História e ela não impôs nenhum outro com mais sangue e mais mortos contra as mesquinharias individuais do que o de seu próprio e constante crescimento sem limites no tempo ilimitado. A religião, ela também, na sua finitude, participa deste crescimento; ela mesma está encerrada no ciclo da migração das almas. Como Fo, tendo passado por 80.000 encarnações antes de atingir Deus, da mesma forma a religião deve conhecer múltiplos renascimentos antes de retornar ao lugar de onde veio. Sobre ela também a morte e o tempo fazem sentir o seu poder. Da mesma forma que Shivá, o destruidor, carrega os crânios de numerosos Brahmas mortos, o mesmo modo também formas religiosas se desfizeram diante do Eterno e suas múmias são conservadas apenas na História (Görres, Mythengeschichte der asiatischen Welt, apud Gusdorf, op. cit. p. 780. O negrito é meu).

Desse texto e dessas ideias do romântico Görres vão nascer a ideia de progresso contínuo, o relativismo historicista, o evolucionismo doutrinário, o nazismo, e, finalmente, o Modernismo teológico.

Perguntar-se-á como o nazismo surgiu dessa ideia do perpétuo progresso histórico e religioso.

De modo muito simples.

Se há um constante progresso na História, e com esse progresso, um avanço contínuo da perfeição humana e religioso, Görres explicava, pelo menos numa fase de sal vida intelectual, que a religião teria nascido do monoteísmo panteísta da Índia. Os arianos teriam sido, então, os patriarcas da religiosidade ocidental, “o novo povo eleito a partir do qual se desenvolveu a cadeia das religiões, até o cristianismo” (Gusdorf, op. cit. p. 780. O negrito é meu.). Não é difícil ver aí os primeiros uivos do nacionalismo ariano nazista.

É de Creuzer que vai nascer a chamada “Ciência das Religiões” que deu origem, ao “tradicionalismo gnóstico do esotérico René Guénon, e, hoje, à teologia da Religião de que fala o Padre Jacques Dupuis, condenado recentemente pela Declaração Dominus Jesus (Cfr. Jacques Dupuis, Rumo a uma Teologia das Religiões, Paulus, São Paulo, 1998).

A perspectiva evolucionista se opõe ao imobilismo religioso fundado sobre o princípio do sicut erat in principio et nunc et semper. A religião acompanha a humanidade em sua marcha, conforme uma pedagogia do gênero humano esboçada por Lessing. “A religião judaica conduziu os hebreus até o momento em que ela conseguiu torná-los capazes de uma religião mais depurada. O cristianismo então substituiu a lei de Moisés. A Reforma colocou o cristianismo de acordo com as luzes de um século posterior. Outras melhoras virão um dia reformar ainda a Reforma (B. Constant op. cit p., 115, apud Gusdorf p. 787).

“A religião, parte integrante do contexto cultural, se acha de novo em jogo a cada renovação da civilização; Deus morre e se transforma, se se pode dizer, cada vez que o ser humano se transforma” (Gusdorf, op. cit. p. 787-788).

Já para o romântico Görres o cristianismo era apenas o cume de todas as religiões reveladas, mas não a única: somente a mais perfeita, e que expressava melhor o que em todas as outras era ensinado de modo menos claro:

Görres, o autor da Mythengeschichte der asiatischen Welt (1810), na qual ele fixa as origens religiosas do Ocidente na Índia, escreve em 1818 ao católico ortodoxo Adam Muller: “A religião, para você, é o cristianismo; para mim, o cristianismo é uma religião e concedo que ela é o cume, o centro e a alma de todas as outras. O culto do mundo primitivo é, para mim, o cristianismo em sua infância; o judaísmo, com os mistérios do paganismo. é a juventude que se experimenta, por caminhos numerosos, muitas vezes excêntricos; o cristianismo propriamente dito, é a maturidade, mas sem conclusão nem fim absoluto. Assim, eu ganho terreno para a frente e para trás, para classificar o que o próprio Deus não deve condenar, tendo-o tolerado com benevolência (Görres a Adam Muller, Gesammelte Briefe, II, p. 559, apud Gusdorf, p. 791).

O modernista Padre Jacques Dupuis não diria diferente.

Mas, o liberal Frédéric Ozanam já havia afirmado a mesma doutrina de um modo condizente como que dirão os modernistas da Nova Teologia que triunfou no Vaticano II, e na Teologia das Religiões.

Em carta escrita em 1831, escreveu Ozanam:

Creio poder assegurar que há uma Providência, e que esta Providência não pôde abandonar absolutamente durante seis mil anos criaturas racionais, naturalmente desejosas da verdade, do bem e do belo, ao gênio do mal e do erro; que, por conseguinte, todas as “crenças” do gênero humano não podem ser extravagâncias, e que houve verdades esparramadas pelo mundo. Essas verdades, trata-se de procurá-las, de separá-las do erro que as envolve; é preciso procurar nas ruínas do mundo antigo a pedra angular sobre a qual se reconstruirá o novo (F. Ozanam, carta a Fortoul, 15/Jun/1831, apud Pierre Moreau, Romantisme français et syncrétisme religieux, cit. por Gusdorf p. 791).

Era já, de certo modo, a doutrina das “sementes do Verbo”, tal qual foi explorada pela Nova Teologia Modernista.

E não se pense que esta doutrina romântica predecessora do Modernismo, rejeite o Tradicionalismo. Não! O Tradicionalismo de Joseph de Maistre, de Lamennais, e de René Guénon também tem relação com o Romantismo tal como foi expresso por Ozanam:

“Há uma religião primitiva, de origem antiga, essencialmente divina, e por isso mesmo essencialmente verdadeira. É esta herança, transmitida desde o alto ao primeiro homem e do primeiro homem a seus descendentes, que eu tenho pressa de procurar. Eu me vou, pois, através das regiões e dos séculos, removendo o pó de todos os túmulos, pesquisando os detritos de todos os templos, exumando todos os mitos, desde os selvagens de Koock até o Egito de Sesótris, desde os hindus de Vishnu até os escandinavos de Odin…” O exame desses materiais desembaraça, para além dos aspectos circunstanciais, “um elemento imutável, universal, primitivo, inexprimível pela História e pela geografia, (…) tanto mais completo e tanto mais puro quanto mais se remonta aos tempos mais antigos.” Esta verdade original e universal, “difundida sobre toda a terra”, em seguida, “se corrompeu, se misturou a todas as fábulas e a todos os erros” (Ozanam, carta citada). “A revelação primitiva, fundamento de uma tradição unitária, será reafirmada pelos sustentadores da ortodoxia católica até o meio do século XIX. Ela é encontrada no Essai sur le Panthéisme dans les Sociétés Modernes (1840), do Abbé Henry Maret, que defende as posições da Igreja contra as ideologias em moda. A história das religiões se confunde com coma história do cristianismo, horizonte de todas as crenças da humanidade” (Gusdorf, p. 792).

Da mentalidade religiosa evolucionista proveio a tese luterana da “igreja perpetuamente a reformar”, e a doutrina romântica da religião continuamente a adaptar-se aos tempos e às culturas. Dessas duas posições vai nascer a doutrina modernista da necessidade de adaptação da Igreja ao pensamento e ao mundo modernos. Daí a doutrina de João XXIII da necessidade de aggiornamento para a religião e para a Igreja.

Os jovens românticos, afirmadores de um renascimento da Revelação, consagram-se à tarefa de um aggiornamento da exigência cristã afim de que ela seja capaz de recuperar o tempo perdido. Trata-se de passar de um cristianismo que deteve suas contas de uma vez para sempre, a um cristianismo aberto, aquele que prevaleceu nos grandes momentos da história cristã. A iniciativa de Lutero, em 1517, é o último exemplo de uma tal abertura; o romantismo alemão reivindica essa herança, assim como o atesta a celebração de Wartburg em 1817. Novos campeões da fé e da cultura devem realizar o gesto de ruptura em proveito de um cristianismo moderno, inaugurando uma nova era. Lutero traduziu a Bíblia para a língua de seu tempo; os campeões da religião devem por sua vez atualizar o Livro santo na língua da cultura contemporânea. (Gusdorf, Du Néant à Dieu, ed. cit., p. 306).

A recusa de aceitar o dogma como expressão definitiva das verdades reveladas, assim como a ideia de evolução sempre mais capaz de traduzir de modo mais perfeito a inefável revelação divina, levam a uma tensão entre o sentimento religiosos – que exige sempre novas formulações mais adaptadas e tendentes à mais perfeita expressão – e as instituições eclesiásticas. A tensão, entre o sentimento divino interior e a cristalização dogmática e institucional exterior, seria perene e inevitável.

Há, no princípio desta perfectibilidade, uma dialética entre inspiração e instituição, justificada pelo primado reconhecido do sentimento sobre a autoridade. “O sentimento religioso nasce da necessidade que o homem experimenta de se colocar em comunicação comas potências invisíveis. A forma nasce da necessidade que ele igualmente experimenta de tornar regulares e permanentes os meios de comunicação que ele crê ter descoberto”. A necessidade de estabilidade gera as instituições eclesiásticas; nascidas da inspiração, elas arriscam tornar rígidas (congelar), a inspiração nos ritos e liturgias do culto, nas profissões de fé e nas teologias dogmáticas. O despotismo clerical gera uma tirania contra a qual o sentimento religioso deve se revoltar, exercendo seu direito de retomada sobre as significações abusivas. A autêntica vida religiosa é o exercício da liberdade espiritual, em nome do direito da consciência de dispor de si mesma. O liberalismo de Constant culmina no tratado De la Religion, que lhe fornece sua justificação última. Percebe-se nele o eco, depois de decorridos séculos, da reivindicação dos reformadores de Wittenberg e de Genebra; Constant, descendente de Huguenotes emigrados, pedirá, em virtude da legislação revolucionária, sua reintegração na nacionalidade francesa (Gusdorf, op. cit., p. 788).

Esse texto de Gusdorf mostra a ligação da religiosidade romântica com a Reforma protestante. Ele serve igualmente para mostrar a ligação doutrinária entre a religião do romantismo – de fundo gnóstico – com o Modernismo do Vaticano II.

No final do século XIX, a Gnose do Romantismo foi perpetuada através do pensamento de Bergson, de Nietzsche, de Blondel, e, mais tarde, continuado pela Fenomenologia de Husserl, de Max Scheller, de quem se abeberou Karol Wojtyla, já encharcado de pensamento romântico pela leitura, estudo e interpretação teatral dos autores românticos poloneses.

Nietzsche será um dos mantenedores do sentido romântico da vida. Dilthey entreteve relações com Husserl, cuja tentativa ele considerava com simpatia; Heidegger interessou-se pela obra de Dilthey. O movimento fenomenológico, em sua abordagem da consciência, fora de todo idealismo redutor, põe em ação certos pressupostos da inteligibilidade romântica. O pensador que desenvolve uma filosofia da vida conforme a inspiração de Schelling, de Frédéric Schlegel e de Dilthey, mesmo guardando uma inteira independência de espírito, é Max Scheler (1874-1928), ao mesmo tempo Naturphilosophie e Kulturphilosophie; seu espaço mental abarca a ordem biológica e a ordem sociológica, e seu pensamento se preocupa em constituir uma ordem de valores a partir de uma análise existencial da realidade humana (Gusdorf, vol. II, p. 356).

E Karol Wojtyla se embebeu profundamente da Fenomenologia de Max Scheler.

16. Kant e a negação do valor do intelecto

Emmanuel Kant nasceu em Koenisberg (atual Kaliningrado) em 1724. Sua mãe era protestante pietista, e teve muita influência em sua formação.

Ele é considerado, por excelência, o filósofo do protestantismo. Permaneceu celibatário, e foi professor durante toda a sua vida, na universidade de Koenisberg.

Em seu sistema filosófico, Kant procurou conciliar o empirismo inglês com o subjetivismo cartesiano.

Para ele, as coisas existem realmente, porém não as podemos conhecer tais quais elas são. Os sentidos e a razão deformariam o real e nos dariam apenas uma imagem torcida da realidade. Portanto, Kant nega completamente a metafísica que pretenderia nos apresentar os seres em si mesmos. Todos os seguidores de Kant adotarão uma postura antimetafísica, separando o intelecto do real inatingível. O intelecto nada apreende do real. A inteligência captaria apenas a imagem que ela se faz do real. Conheceríamos só o fenômeno, isto é, a manifestação das coisas, e jamais as coisas em si mesmas.

Desse modo, não poderá realmente existir uma correspondência entre a ideia do sujeito conhecedor e o objeto conhecido. Para Kant, não existiria a verdade objetiva. No máximo, por verdade se deveria entender uma coerência interna no pensamento de alguém, e jamais uma correspondência com o real.

Verdade é o que é coerente em si mesmo.

Kant ao negar o valor do conhecimento racional, como luterano que ele era, supervalorizou a Fé:

“Eu destruí a razão pra dar lugar à fé”, dirá ele.

Para Kant, não existira uma essência comum aos seres de mesma espécie. O universal não teria valor. Cai-se, assim, num completo individualismo.

Deus, a alma individual, o mundo são ideias da razão especulativa e não do mundo real. É útil imaginar Deus como existente, mas isso não deve levar a concluir que ele seja realmente existente.

Em consequência, para Kant os diversos credos teriam um valor puramente simbólico e jamais se deveria julgar que eles contenham realmente verdades objetivas. Daí vai derivar o evolucionismo antidogmático da heresia modernista.

Não se podendo atingir o real por meio do intelecto, não se pode provar que os fatos apresentados como históricos pela Bíblia tenham realmente ocorrido: Adão e Eva, o pecado original, os milagres de Moisés, a historicidade de Cristo e dos fatos narrados nos Evangelhos, tudo isso, é questionável e, pior, é duvidoso. O Modernismo vai repetir essa negação em sua exegese, negando todos os fatos históricos do Antigo e do Novo testamento. Os teólogos seguidores do Vaticano II não dirão outra coisa.

Essa maneira de interpretar os fatos da Sagrada Escritura será herdada e ensinada por David Friedrich Strauss (1808-1974) na sua Vida de Jesus, que tanta influência terá na exegese de Renan, e na exegese dita católica, a começar na do modernista Alfred Loisy.

Para Strauss, os relatos extraordinários descritos pelos Evangelhos, não teriam sido fatos históricos reais, mas apenas uma elaboração mítica das comunidades cristãs que, pela imaginação, sobre naturalizaram e mitificaram fatos comuns como milagres e como ações sobrenaturais. Os Evangelhos não seriam livros históricos, e sim míticos ou lendários. O mito foi o resultado da fé dos cristãos primitivos, isto é, de seu sentimento religioso.

O prosseguidor dessa heresia romântica de Kant e Strauss foi Ritschl, para quem Cristo, os milagres a revelação em si mesmos, seriam dados metafísicos incognoscíveis para nossa razão.

17. Schelling e a Gnose romântica

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) estudou no seminário de Tubingen, e se tornou pastor protestante. No seminário ligou-se a Hoelderlin e a Hegel, formando com eles um trevo pietista. Estudou, a seguir em Leipzig e em Iena, onde seguiu os cursos de Fichte. Goethe o ajudou a ser nomeado professor em Iena, onde se ligou aos românticos Augusto Schlegel, Tieck e Novalis.

Casou-se com Carolina Schlegel, em 1803, depois que ela se divorciou de Augusto Schlegel.

Ensinou em Wurzburg e Munich ligou-se ao teósofo Franz Von Baader que o aproximou ainda da leitura do gnóstico Jacob Boehme, de Oetinger e Saint Martin. Em 1841 substituiu Hegel na cátedra, em Berlim, e combatendo o hegelianismo.

Schelling foi o filósofo da escola romântica, situando-se entre o subjetivismo absoluto de Fichte e a posição mais racionalista de Hegel. Pode-se dizer com toda certeza que Schelling foi um gnóstico moderno.

Conforme Schelling, o Eu, como princípio da filosofia é o incondicionado do saber humano.

O Eu Absoluto seria substância única, conforme ensinara Spinoza.

Esse Eu abarcaria toda a realidade na sua unidade, e por isso mesmo, ele seria o Uno-Tudo de que falava Spinoza. Nesse Eu Absoluto coincidiriam Necessidade e Liberdade. Portanto, desde o princípio de sua filosofia, Schelling admitia uma dualidade no Absoluto, que o conduzirá facilmente, mais tarde, a aceitar a Gnose de Jacob Boehme.

Essa concepção monista da realidade decorria um problema: como do Absoluto procedeu o relativo? Como do Uno procedeu o múltiplo? Como do Sujeito absoluto procede o objeto? Noutros termos, como do Absoluto infinito, da Divindade, procedeu o Mundo finito? Como se explica a existência do mundo finito?

Inicialmente, Schelling defendeu como única solução possível para esse problema a identidade entre sujeito e objeto, entre infinito e finito, entre Deus e o Mundo. Essa solução era uma extensão do dualismo que ele já admitira no Absoluto, o qual coincidiriam Necessidade e Liberdade, isto é, uma coincidência de opostos, que o levará diretamente à Gnose.

Consequência desse princípio de identificação do Absoluto com o relativo, e do Sujeito com o objeto será a admissão de que a matéria se origina substancialmente do espírito. No fundo, que a matéria é espírito cristalizado, e que o espírito é matéria sublimada, como defendiam Boehme, Oetinger e a Alquimia.

Mas, se isto é assim, então o mundo decorreria de uma evolução divina, e que, posteriormente, o mundo retornaria ao Absoluto espiritual. A Natureza é uma forma assumida pelo espírito e retornará a ele.

O mundo é realização e revelação do Eu Absoluto que é, concomitantemente, natureza e espírito, atividade inconsciente e razão.

Mas revelação não de verdades sobre o Uno-Tudo ao intelecto humano, mas sim revelação como comunicação da própria res divina ao mundo. Haverá repercussões dessa noção gnóstica de revelação na Constituição Dei Verbum do Vaticano II (Cfr. Nosso trabalho “Resposta ao Instituto Paulo VI de Brescia” publicado pela Flos Carmeli Edições: https://www.floscarmeliedicoes.com.br/cartas-sobre-o-concilio-orlando-fedeli).

Daí Schelling admitir uma dualidade de forças opostas na natureza, tal como admitira a dualidade de necessidade e de liberdade no Eu absoluto. Seria a luta dessas duas forças opostas na natureza que causaria a existência dos fenômenos.

“Schelling coloca em Deus, assim como nas criaturas que dele derivam, dois princípios, e além e antes deles, coloca como princípio originário, a indiferença, da qual se servira já antes, para definir a natureza de Deus” (N. Abbagnano, op. cit. Vol V, p. 95).

Schelling relaciona a própria existência dos fenômenos ao conhecimento intuitivo que se tem deles. Daí a própria natureza deve ser um processo de intuição e de conhecimento, e, portanto, não é puro objeto, mas sujeito-objeto.

Em seu livro Sobre a Alma do Mundo, Schelling procura explicar que existe uma continuidade entre o mundo inorgânico e o mundo orgânico, lançando assim os princípios do evolucionismo e do pan-vitalismo contemporâneo. Todo o universo seria um organismo vivo. A vida seria a respiração de toda a natureza. Há uma única vida e m único espírito, dirá Schelling.

A Alma do Mundo seria constituída pelas forças opostas (atração e repulsão), o que, de novo, aproxima o pensamento de Schelling da Alquimia e da Gnose, ideias que terão enorme influência na concepção romântica do mundo e do amor. E não é preciso colocar em destaque como essa concepção dialética do mundo se assemelha – quase se identifica – com a do maniqueísmo gnóstico.

A evolução levaria ao conhecimento.

“Schelling afirma que a natureza, como autoprodução e autodesenvolvimento, é o puro sujeito-objeto, e, como tal, ela aparece e se manifesta na consciência, que é apenas um grau mais alto da subjetividade-objetividade natural”. “Para mim, dirá Schelling, (Werke, I, IV, p. 86), o próprio objetivo é, ao mesmo tempo, ideal e real; estas das coisas jamais estão separadas, mas estão originalmente unidas também na natureza. O ideal-real se torna objetivo somente através da consciência que dele se origina, e na qual o subjetivo se eleva à sua mais alta potência” (Niccola Abbagnano, Storia della Filosofia, vol. V, La Filosofia del Romanticismo, p.85)

Evidentemente, esse sistema de pensamento era gnóstico.

No Apêndice à Introdução às Ideias (1803), e, mais ainda, nos Aforismos (1805-1807), ele, Schelling, reconhece o caráter divino da natureza e o identifica com Deus. Deus é razão, e a razão de Deus se identifica com as ideias de Deus. Mas as ideias de Deus são tudo. Logo Deus é tudo, é a totalidade do vir a ser que se realiza em infinitas formas. “O Absoluto não é apenas um querer a si mesmo, mas também um querer em modos infinitos, logo, em todas as formas, em todos os graus e em todas as potências da realidade. A expressão desse eterno e infinito querer é o mundo” (Schelling, Werke, I, II, p. 187). Apud N. Abbagnano, op.cit. vol V. p. 86).

Saber filosófico pode seguir duas direções, segundo Schelling: uma seria a Filosofia da Natureza, que teria por fim mostrar como a natureza se identifica afinal com o espírito; outra seria a Filosofia Transcendental, que visaria demonstrar como o espírito se resolve na natureza.

Isso porque não há uma natureza que seja simplesmente natureza – pura objetividade – como não existe um espírito que seja apenas espírito – pura subjetividade. Já que o sujeito se identifica com o objeto, a natureza se identifica com o espírito.

Na obra Sistema de Idealismo Transcendental (1800), Schelling parte do Eu, ou autoconsciência absoluta, no qual ele reconhece que existe uma dualidade de forças opostas. Ele distingue o Eu, uma atividade real, que produz o objeto, e uma atividade ideal, que percebe o objeto ouse torna consciente dele, ou melhor que sente o objeto como algo estranho a si como externo a si.

Nesse processo, o Eu ideal e infinito se identifica com o eu finito, num processo continuo e vivo que se produz infinitamente, numa atividade dinâmica eterna e infinita.

Desse modo o Absoluto se constitui como identidade ou indiferença de duas forças:

1) uma, subjetiva, espiritual ou ideal, consciente;

2) outra, objetiva, natural real, inconsciente, que se manifesta no plano da liberdade humana, na história.

Para Schelling, o devir do mundo e da história é a própria revelação da Divindade.

Nessa revelação, se unificam religião e filosofia num conhecimento pleno e salvador que é a própria gnose: nesse conhecimento do absoluto, o homem se conhece como o próprio Absoluto, como Deus, e, exatamente por isso, ele se salva, por conhecer quem ele de fato é: Deus.

A unidade da filosofia com a religião só é possível se há uma consciência imediata do Absoluto. Mas a consciência imediata do Absoluto não existe fora do próprio Absoluto: é o próprio Absoluto no seu auto objetivar-se e no seu auto constituir-se. Tal auto objetivar-se do Absoluto é o processo intemporal de sua revelação, “a verdadeira teogonia transcendental”, isto é, o nascimento de um mundo de ideias que é a condição de todo o conhecimento (Schelling, Werke, I, VI, p. 35, apud N. Abbagnano, op. Cit., vol, V, p.92).

Schelling, afinal, adotou claramente o sistema gnóstico ao admitir que a matéria só poderia ser fruto de uma queda da Divindade.

Deus teria caído no mundo, e depois, pela evolução, haveria um retorno de tudo à Divindade primitiva.

Ele vai dizer que a Divindade sofre, na História, inicialmente sua Ilíada, quando sai de si mesma e se integra ao mundo; depois, sua Odisséia, quando ela retoma o caminho de seu grande retorno ao estado inicial. Haveria em Deus um perpétuo principiar, um advento que não cessaria jamais.

Para Schelling, a revelação se faz na História a qual se concluiria no Reino da Liberdade.

Conforme demonstrou Henri de Lubac, Schelling foi influenciado pelo pensamento de Joaquim de Fiore, e, como esse pensador medieval, apresenta uma divisão tripartite da revelação na História:

1. O tempo da força cega, no qual domina o acaso;

2. O tempo da natureza ou da lei;

3. O tempo da Providência que é o tempo da liberdade para o homem, e o Reino de Deus no mundo. Nesse terceiro tempo, dar-se-ia o advento do Evangelho Absoluto”.

A História seria a epopeia de Deus e, como o Abade Joaquim, Schelling relaciona a História com as três Pessoas divinas.

A trindade de pessoas em Deus era explicada por Schelling como uma heterousia – como uma trindade de substâncias, num sentido triteísta. Essa heterousia é que constituiria a vida divina em si mesma.

Na obra Filosofia da Revelação, Schelling dirá que há, em Deus, uma tríplice fase: a tautosia, a heterousia e a homousia. E falando do pensamento de Jean Philoponos, de Joaquim de Fiore e de Gilberto de la Porrée, diz Schelling: No esquema triádico, “tautosia-heterousia – homousia”, querendo expor o mistério da Trindade, sem dúvida, eles eliminaram depressa demais o primeiro momento, o da “tautosia”, da unidade substancial prévia; mas eles tiveram razão em estabelecer uma diferença substancial entre as três pessoas… Sente-se aqui que através desses três teólogos do passado, Schelling faz sua própria apologia” (Pe. Henri de Lubac, op. cit., p. 386).

Admitindo a diferença substancial das três pessoas de Deus, Schelling se torna um herege explícito, caindo no triteísmo.

Schelling liga o devir divino à cosmogonia e à História, formando um círculo que, começando na Divindade, cai no mundo, produz uma antropogenia, que se desenvolve na História, para, enfim, retornar a Divindade. É evidente nesse processo, a repetição do esquema gnóstico da queda ad Divindade no mundo, e de seu retorno ao ponto original – o Grand Retour dos esotéricos, por uma libertação das partículas divinas aprisionadas na matéria universal.

Apesar de suas negativas, Schelling, muitas vezes, parece ligar de modo tão estreito esses dois devires, o divino e o cósmico, que se tem dificuldade para não vê-los em estrita analogia e dependência recíproca. Parece que há, em Deus, uma unidade inicialmente confusa, um sabelianismo primordial, e que o vir a ser criador afeta Deus revelando-o progressivamente a ele mesmo: o Filho não seria enfim plenamente Filho senão no termo final da criação, quando o Espírito seria plenamente manifestado. Em suma, a Trindade seria atualizada pela história do mundo. Ora, essa passagem gradual de um sabelianismo a um quase triteísmo que teria já caracterizado, segundo alguns intérpretes, a doutrina de Joaquim de Fiore (Padre Henri de Lubac, A Posteridade Spirituelle de Joachim de Fiore, Ed. Lethielleux, Paris, 1978, pp. 379-380).

Para Schelling, Deus não é ser necessário e real, mas sim “eterna liberdade”.

Do mesmo modo a verdadeira essência do homem seria a liberdade transbordante que constituiria o seu EU verdadeiro.

No homem, para Schelling, tal qual pensava o Maniqueísmo, haveria toda a força do princípio obscuro em luta contra toda a força do princípio da luz. Para Schelling, como para o maniqueísmo e o romantismo, o mal não seria simples privação de ser ou de ordem, mas o mal seria algo substancial: “Nós não temos que combater apenas a carne e o sangue, mas também um Mal que está em nós e fora de nós, um Mal que é espírito”. (Schelling, Recherches philosophiques sur la Nature de la Liberte humaine”, 1809, apud H. de Lubac, op cit. P. 381).

Schelling, repetindo a Gnose, a Cabala e Boehme, dirá que a Divindade seria uma Liberdade sem norma uma “vontade exuberante” da qual o Mal seria um elemento constitutivo. Noutras palavras, como a Cabala, Schelling admite que o Mal tem raiz na própria Divindade.

Repetindo o esquema da Gnose, Schelling afirma que o cosmos é apenas “a expansão do coração de Deus”

No livro As Idades do Mundo, Schelling apresenta um esquema tripartido do relacionamento Divindade, Mundo e História.

O panteísmo corresponde ao reino do Pai, nesse momento doloroso e angustiado em que Deus não é ainda senão “o Primeiro Existente”, no qual ele permanece engajado e como prisioneiro em seu ser, em sua natureza. À geração do Filho corresponde, em seguida, na ordem das ideias, o aparecimento do dualismo; o panteísmo despojado de sal exclusividade e colocado no passado, se torna simples realismo, e a identidade se opõe a ele como um princípio libertador e luminoso. Mas esta oposição não deve ir até uma separação completa. No Absoluto, o Filho não procura eliminar o Pai, mas ao contrário a libertá-lo, a expandi-lo, a elevá-lo à consciência até o momento em que se estabelece entre eles um conhecimento perfeito: o Espírito (Apud P. Henri de Lubac, op cit., pp. 384-385).

Paralelamente ao método trinitário adotado por Joaquim de Fiore, Schelling pensa o processo histórico, relacionando-o com os três apóstolos Pedro, Paulo e João, num sistema de Filosofia da História que fará carreira, até hoje, em certos círculos esotéricos e modernistas.

A Pedro corresponderia a Idade Média. A Paulo, corresponderia a época da Reforma. A João, Apóstolo do Amor, corresponderia a Igreja do futuro, ou do Amor, quando a lei seria abolida, instituindo-se o reino de Deus na terra.

Evidentemente, essa divisão da História, mesmo que Schelling não conhecesse seu correspondente judaico, se relaciona com as divisões das História adotadas no livro Temunah (Cfr. Gerschom Scholem, A Mística Judaica – Major Trends in Jewish Mysticism – ed. Perspectiva, São Paulo, 1972, p. 181).

Joaquim de Fiore causará essa expectativa messiânica, e ela repercutira profundamente no movimento dos espirituais franciscanos e dos Pseudo Apóstolos Dolcinianos. Ela se manteve viva através da História.

A expectativa de um Reino de Deus na terra, de uma época em reinará a concórdia universal, a de uma Civilização do Amor, de que tanto se fala hoje, foi uma das características de todo o Romantismo. Ela será herdada pelo Nazismo, que pensará fundar um Reino de Mil Anos, o Terceiro Reich – ou o Reino do Espírito santo do Abade Gioachino – e pelo Comunismo, assim como por muitos movimentos messiânicos atuais que aguardam uma Nova Era, ou uma Civilização do Amor. Na TFP se aguardava um Reino de Maria com características messiânicas, Reino em que haveria até mesmo uma transformação da natureza humana, com a reprodução se fazendo por via da palavra humana, e não mais sexualmente, delírio retirado das visões românticas da pseudo-vidente Ana Katharina Emmerich (para aprofundar-se nesse tema recomendamos a leitura da tese de Doutorado do Prof. Orlando Fedeli publicada pela Flos Carmeli Edições. Conf. https://www.floscarmeliedicoes.com.br/elementos-esotericos-anna-katharina-emmerick).

Para Schelling, o projeto divino se desenvolve na História em três etapas:

1. Paganismo, época em que teria existido um conhecimento primordial de Deus, expresso obscuramente nos mitos. Dessa época seria a famosa tradição secreta primeva, ligada à cabala, na qual os tradicionalistas e esotéricos dizem inspirar-se. Essa concepção acaba por valorizar de certa forma o paganismo, no qual alguns procuram, hoje, encontrar as “sementes do Verbo”.

2. O Antigo Testamento, época da Lei e da sinagoga.

3. O Novo Testamento, que desembocará no Reino do Espírito.

O Padre de Lubac mostra ainda que Schelling reconheceu no Evangelho de São Marcos o eco de São Pedro, o Apóstolo do pai. Em São Lucas, ele viu o Apóstolo do Filho. E, finalmente, em São João, Ele viu o Apóstolo do Amor, isto é, do Espírito Santo.

Em São Pedro, Schelling identifica o princípio de Autoridade, ou da Igreja Católica. Esta seria a tese.

Em São Paulo, Schelling identificaria o princípio de Liberdade próprio ao protestantismo. Esta seria a antítese.

Finalmente, em São João, ele identificaria a futura Igreja Espiritual Universal do Espírito Santo, na qual todas as igrejas ecumenicamente se unificariam, numa síntese final. (Cfr. P. H. de Lubac, op. cit. vol. I, pp 388-389).

No catolicismo medieval haveria uma unidade exterior, material apenas. No protestantismo, haveria uma unidade interior, espiritual.

Na futura igreja espiritual, universal, síntese ecumênica das duas anteriores, como a síntese une a tese e a antítese, dar-se ia a unidade perfeita no amor.

“João não tem nem a vivacidade nem a força fundadora de Pedro, ele não tem nem o caráter impetuoso de Paulo, nem seu gênio fulgurante”, mas, “de Pedro, ele tem a simplicidade, de Paulo, a acuidade dialética”. Ele se manteve inicialmente em silêncio, mas ele deve reconciliar sublimando-os o legalismo católico e a graça protestante, em seu “espírito celeste e doce”. Ele é o Apóstolo bem-amado de Cristo, o anunciador do Espírito santo. A Igreja de João não é a Igreja grega; é a Igreja “sempre ainda a chegar”. Ela será “a segunda, a Nova Jerusalém”, que o Vidente do Apocalipse contemplou descendo do céu. Ela reunirá todos os cristãos hoje separados, ela acolherá em seu seio os judeus e os pagãos; ela subsistirá em si mesma, sem contrário e sem limite, sem autoridade exterior de qualquer tipo que seja, cada um se juntará a ela livremente; será a única religião verdadeiramente pública, a religião da raça humana, possuindo ela o mais eminente saber” (Padre Henri de Lubac, La Postérité Spirituelle de Joachim de Fiore, vol. I, pp. 389-390).

Como ao ver nessa Igreja de João, nessa Igreja do Espírito, objetivo dos hereges modernistas que desejam construir:

1. Uma Igreja igualitária, sem autoridade Papal, colegial, eliminando o poder petrino.

2. Uma Igreja ecumênica, que reúna todas as religiões. Nessa Igreja Universal estriam juntos, sem renegar suas crenças, os católicos, os protestantes, os cismáticos, os judeus, os maometanos, os pagãos, e mesmo os famosos “Homens de Boa Vontade”.

3. Uma igreja sem dogmas.

4. Uma igreja espiritual e pobre, sem propriedades e sem estrutura.

5. Uma igreja que se identifique com a humanidade, como um mistério da unidade do gênero humano.

Apesar das divergências acidentais entre Kant, Fichte, Schelling e Hegel, é preciso reconhecer, nesses filósofos do Idealismo alemão, uma certa unidade, que provem de posicionamentos comuns a todos eles:

a) Sua posição anti-metafísica;

b) Sua negação da capacidade da inteligência humana de conhecer o real;

c) Sua negação dos princípios de identidade e de contradição;

d) A aceitação do dualismo metafísico e da dialética;

e) Seu caráter gnóstico.

Por isso muita razão tem Abbagnano em dizer que, esses filósofos do idealismo alemão formam uma verdadeira família de pensamento, cujo princípio unificador é o princípio próprio do Romantismo: o reconhecimento do infinito manifestando-se na ordem progressiva e necessária da natureza e da História. (Cfr. N. Abbagnano, op. cit., vol.V, p. 98).

18. Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834)

Schleiermacher foi o primeiro teólogo do Romantismo e um dos precursores do Modernismo. Ele era de família pietista, e pertenceu e foi educado num grupo dos irmãos morávios. Essas origens explicam sua indiferença dogmática e sua redução da Fé a um mero sentimento do coração.

Entrou na Universidade de Halle. Foi pastor protestante em Berlim

Estudou Spinoza e Kant que acabaram por destruir nele todo cristianismo verdadeiro.

Ligou-se ao primeiro grupo dos autores românticos, constituído pelos irmãos Schlegel, e colaborou no Athaeneum.

Em 1799, publicou sua primeira obra Discursos sobre a Religião. A seguir publicou Monólogos. Em 1800 ainda, publicou Cartas Confidenciais nas quais explica a teoria exposta por Schlegel no romance Lucinda, segundo o qual haveria uma unidade o elemento espiritual divino e o sentimento humano no amor. É claro que a ideia só podia favorecer amores sentimentais de todo o tipo, até adulterinos. Schleiermacher teve uma paixão platônica para com a esposa de um seu amigo. Em 1803, ele publicou a obra Crítica da Doutrina Moral. Tornou-se professor em Halle, e depois em Berlim.

Em 1822 publicou sua principal obra A Fé Cristã. Teve várias obras publicadas postumamente.

Seguindo Kant, Schleiermacher considerava que o homem era incapaz de aceder ao conhecimento das coisas.

Para ele, a realidade última seria a identidade do Espírito e da Natureza, no universo ou Deus.

“Não haveria Deus sem o Mundo, nem o Mundo sem Deus” (Schleiermacher, Werke, ed. Braun e Bauer, Leipzig, 1911-1913, 4 vol., vol. III p, 81. Apud F Copleston, a History of Pholosophy, Modern Philosophy, Image Books, New York,1965, Part I, vol VII, Fichte to Hegel, p. 189).

Desta forma, Schleiermacher caía ou na Gnose, ou o panteísmo. Ver-se-á logo que ele foi um gnóstico.

Essa identidade não poderia ser alcançada pela inteligência, mas somente pelo sentimento, ligado à autoconsciência, à uma intuição-sentimento de dependência, que seria a própria essência da religião. A religião seria sentimento e nunca pensamento.

Para ele a religião era absolutamente separada da Filosofia e da moral.

A essência da religião não seria nem o pensamento, nem a ação, mas sim apenas na intuição e no sentimento. A religião intui o universo e o divino através do sentimento. A religião via e visava apenas intuir o infinito no finito, como diziam os românticos, entendendo que havia algo da própria substância divina oculta e aprisionada no finito. Religião era então definida por Schleiermacher como o sentimento do infinito.

Daí Schleiermacher conceber a religião mais com algo relacionado com o coração do que como intelecto, mais uma questão de “fé” do que de conhecimento. Por isso, exatamente como dirão mais tarde os Modernistas, os dogmas seriam mais símbolos do que verdades intelectivas. A religião ao seria nem uma crença em supostas verdades, nem um código moral fundamentado nessas crenças. É só um sentimento do Infinito do qual o homem se sente dependente e com ele relacionado, mas não inteletivamente.

Essa “presença” do infinito no finito, da Divindade no mundo, fazia com que toda a História fosse vista como a ação de Deus. Essa seria uma religião viva. A concepção da religião com fundamento na metafísica era uma tentativa frustra porque a inteligência e a metafísica eram incapazes de intuir o infinito no finito. Só o sentimento interior do homem revelaria o infinito presente no homem e em cada coisa. As coisas individuais, a humanidade, a religião são manifestações de um tudo único que seria a própria Divindade. A humanidade seria apenas uma etapa intermédia entre o indivíduo e o infinito divino.

Toda e qualquer religião acena para um infinito que está além da individualidade e além do mundo, através do sentimento interior de cada indivíduo. Mas esse sentimento seria inexprimível em linguagem racional. Daí o romantismo pretender exprimir vagamente o infinito e o sentimento interior causado pela Divindade aprisionada na natureza.

Daí os fatos históricos e mesmo os milagres enquanto fatos, não terem nenhuma importância e nada provarem. Eles apenas são acenos para o infinito como qualquer outro fato. Do ponto de vista da religião tudo é milagre. Tudo é revelação. E essa doutrina vai repercutir diretamente no Modernismo de Maurice Blondel e dos modernistas até hoje.

Para Schleiermacher, Deus não seria substância ou ser imóvel, ato puro. Deus seria, sim, Vida infinita que se revelaria necessariamente no mundo. (Coplestone, op cit vol. VII, p. 190)

“Deus, na religião, não é tudo, mas apenas parte. O universo é, na religião, mais do que Deus” (Schleiermacher, Redden, II, p. 86, apud Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, TEA, Milano,1993, vol. V, p.35).

Percebe-se, nessa frase, a distinção gnóstica entre Divindade e Deus criador.

A própria ideia de imortalidade da alma seria uma mera aspiração de fusão do homem, enquanto parte finita, no todo infinito da divindade.

“Tornar-se uma coisa só com o infinito, mesmo estando em meio ao finito, ser eterno em um momento do tempo, esta é a imortalidade da religião” (Schleiermacher, Redden, II, p. 86, apud Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, TEA, Milano,1993, vol. V, p.36).

A revelação da Divindade seria uma experiência interior, um sentimento inefável, impossível de ser traduzido em palavras. Daí a relativização dos dogmas e dos credos. Toda revelação dar-se-ia no sentimento do coração, no interior de cada homem.

A revelação revelaria que a derradeira realidade de cada homem seria a própria divindade, a revelação verdadeira consistiria no homem ter conhecimento do mistério do homem.’

Como a percepção do infinito, em cada homem, é bem imperfeita. Daí nasce uma tendência a relacionar o que se sente pessoalmente com o que os outros sentem, para melhor alcançar a Divindade. Assim nascem as religiões organizadas, com sua hierarquia eclesiástica, que busca exprimir o sentimento religioso num credo com palavras inteligíveis, coisa impossível de realizar. A infinitude da religião explica a multiplicidade de igrejas, visto que nenhuma igreja concreta, particular, finita pode exprimir o infinito da Divindade.

A religião infinita não pode existir senão enquanto todas as infinitas intuições religiosas sejam reais, e reais exatamente na sua diversidade na sua independência recíproca. Cada indivíduo tem a sua religião, e esta pode ser mais ou menos reconhecida e ser encontrada nas religiões já estabelecidas. Mas ainda que permaneça obscura a religião de um indivíduo, ela é sempre um elemento da infinita religiosidade universal (N. Abbagnano, op. cit. p. 36).

É impossível não perceber nessa formulação a doutrina do ecumenismo do Modernismo e do Vaticano II.

Assim como o modernismo admitia que a religião nascia de um sentimento interior, e desse modo, toda revelação, de qualquer religião que fosse, seria verdadeira, assim também dizia um dos mestres do Modernismo, o gnóstico romântico Schleiermacher.

Sobre o seu conceito de uma religião ecumênica, que estaria acima de todas as igrejas organizadas, ou seja, das religiões positivas, haveria uma Igreja espiritual, invisível, que seria constituída por elementos de todas as revelações parciais. E a essa Igreja invisível pertenceriam os iniciados nesse conceito gnóstico de religião ecumênica.

É o que confirma o seguinte texto de Abbagnano:

Todas as manifestações individuações religiosas se justificam igualmente, porque todas exprimem o sentimento do infinito e constituem, em seu conjunto, a religião infinita. Mas, enquanto para Hegel o infinito é razão, e absorve e anula, pois, a individualidade, para Schleiermacher o infinito é sentimento, e portanto ele exalta a individualidade. O Romantismo estava destinado a oscilar entre a negação da individualidade e a sua exalação, ignorando o equilíbrio da fundamentação da própria individualidade (N. Abbagnano, Storia della Filosofia, vol. V, La Filosofia del Romanticismo, Ed. TEA, Milano, 1993, p. 36).

É bem interessante comparar este conceito de Schleiermacher de Religião e de Igreja espiritual, com o conceito de Igreja de Cristo, do Vaticano II, tal como foi apresentado num estudo pela Fraternidade São Pio X, – (organização a que nos opusemos, denunciando seu cisma pela instituição de Tribunais com pretensos poderes papais), – trabalho enviado a todos os Cardeais, com o título Do Ecumenismo à Apostasia Silenciosa – 25 anos de Pontificado, Écône, Janeiro de 2004.

Uma religião valeria pelo sentimento que a gerou, e não pelas verdades que ela pretende possuir. Nenhuma religião teria o monopólio da verdade, que aliás, seria algo secundário se comparado com o amor.

Dever-se-ia esperar um mundo regenerado – um Vadutz milenarista – que seria a Civilização do Amor, sem guerras, sem males, sem pobreza, um verdadeiro retorno ao Éden, uma recuperação da inocência primeva, como pretendia e profetizava Plínio de Oliveira, no seu futuro, mil vezes anunciado e nunca chegado, Reino de Maria.

Assim como o Vaticano II, Schleiermacher admitia que era preciso reunir todas as confissões religiosas acima de suas divisões de crença, porque as crenças, sendo produtos da inteligência, deveriam ser postas de lado, buscando a união o sentimento religioso, no amor. A união de todas as religiões se faria buscando o que as une – o amor, a caridade – e deixado entre parênteses o que as divide: o credo e os dogmas.

Schleiermacher distinguia três tipos de religião:

A religião mais primitiva, que concebia o mundo como um caos, e a divindade ou sob a forma pessoal de um fetiche, ou sob a forma impessoal de um destino cego.

Aquela em que se divinizavam as forças da natureza, dando origem ao politeísmo (greco-romano).

Na terceira forma de religião, a Divindade é concebida como unidade e totalidade do múltiplo, e a religião se torna ou monoteísta ou panteísta.

Segundo Schleiermacher, o cristianismo é a forma mais pura de religião.

Entretanto, ele não afirma que Jesus é Deus. Para esse teólogo do sentimento romântico e ancestral do Modernismo, a questão de saber se Jesus é Deus é absolutamente sem sentido. A Divindade de Jesus dependeria da consciência que ele tinha de ser Deus. Tese que prepara Loisy.

Para Schleiermacher, Jesus é o mediador que realiza a conciliação do finito com o infinito. A unidade da natureza divina com a humana em Cristo seria a própria unidade que a religião realiza de toda a humanidade e de todo o universo finito com o infinito da Divindade. Maurice Blondel com a sua doutrina da Cristificação, e Teilhard de Chardin, com a sua doutrina do Cristo Ômega não ensinarão uma Gnose diferente.

Para Schleiermacher, natural e sobrenatural seriam duas faces da mesma realidade. Seriam coisas praticamente indistintas. Daí os românticos misturarem, em suas narrativas, a natureza e a graça. Anna Katharina Emmerich falará de chuvas que traziam graças, fazendo da graça divina algo mágico, que teria manifestações ou comunicações físicas.

Blondel e o Padre Henri de Lubach, entre os Modernistas, a TFP entre os novos tradicionalistas repetirão essa indistinção entre natural e sobrenatural. Veremos isso, quando, um dia, publicarmos e analisarmos os românticos e delirantes textos da TFP.

19. Wilhelm Dilthey (1833-1911)

Dilthey nasceu em Biebriche am Rhein (Nassau) e estudou em Basiléia, Kiel, Breslau e Berlim.

Sua primeira obra, escrita ainda em sua juventude, foi Preisschrift uber die Hermeneutik Schleiermachers (1860).

Sua obra inacabada mais importante foi Das Problem der Religion.

Todo o problema de Dilthey consistiu na tentativa de conciliar a relatividade histórica mutável de cada religião com o que cada religião tem de absoluto.

Para Dilthey, tudo é história. Ele defende o historicismo, isto é, que cada fenômeno só é verdadeiro em determinadas circunstâncias históricas concretas, e para determinado tempo.

Como, então, afirmar que haveria um valor absoluto em cada religião que transcendia o tempo?

Dilthey inspirou-se profundamente, e quase que exclusivamente, em Schleiermacher, seu grande mestre. Tornou-se amigo íntimo de L. Jonas, genro de Schleiermacher e guardião de seu legado filosófico.

Schleiermacher teria descoberto, segundo Dilthey, que “a essência da religião, aquele elemento constante que se exprime na necessária e providencial pluralidade de religiões” (R. Gibellini. op. cit. p. 38).

Os atuais teólogos do pluralismo religioso não diriam de outro modo. Veja-se, por exemplo, o que escreveu o Padre Jacques Dupuis, que instituiu uma religiosidade cristã hinduista, numa capela “ashram”, na Índia, depois foi nomeado professor na Universidade Gregoriana, em Roma, e finalmente, teve suas teses repreendidas e condenadas pela Declaração Dominus Iesus.

O romântico Schleiermacher pretendia que a religião fosse, de um lado, uma experiência religiosa única e íntima, uma experiência pessoal, e, ao mesmo tempo, que essa experiência pessoal fosse manifestada numa enorme pluralidade de expressões religiosas.

Dilthey partilhava dessa mesma posição:

Também Dilthey partilha esse nexo indissolúvel de unicidade do Erlebnis e de pluralidade das Objektivationen: “A religião é um conjunto psíquico, que, como a filosofia, a ciência e a arte, constitui um elemento dos indivíduos e objetiva-se nos modos mais diversos em seus produtos. assim, esse conjunto é nos dado duplamente: como experiência religiosa e como sua objetivação. A experiência permanece sempre subjetiva: só a inteligência das criações religiosas baseadas na experiência retrospectiva torna possível um conhecimento objetivo da religião. É por isso que o procedimento metódico para a determinação da essência da religião deve ater-se às suas criações. A religião existe, na verdade, em formas variadas, cada uma das quais representando um conjunto concreto particular. Cada Uma dessas religiões tem uma história, e todas essas criações históricas podem ser submetidas ao método comparativo, par captar a essência da religião, comum a elas (R. Gibellini, op. cit. p. 39).

Para Dilthey, como para Schleiermacher, “a religião (…) é uma ‘concepção do mundo’, ou seja, um conjunto coerente de sentimentos e de ideias sobre o sentido e sobre o valor da vida” (R. Gibellini, op. cit., p. 40).

“A religião… é a relação viva do homem com o Invisível, que implica a participação integral da pessoa; é uma relação primariamente interior, a experiência de uma “presença” [Como isso parece a linguagem de Monsenhor Giussani!] – e de uma “dependência”: “A influência do Invisível (Unsichtbares) é a categoria fundamental da vida religiosa elementar” (W. Dilthey, Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen, apud R Gibellini, op cit. p.40).

Schleiermacher não considerava que a essência da religião estivesse nem nos dogmas, isto é, naquilo que se consideram as verdades da religião, nem nos ritos ou cerimônias, mas sim na relação direta do homem com a Divindade. Os Modernistas repetirão essa mesma doutrina, que será condenada na encíclica Pascendi, e que, hoje, se ensina quase que por toda parte.

Veja-se a coincidência do pensamento de Dilthey com o dos modernistas:

Dilthey não rejeita nem o intimismo nem o sentimentalismo de Schleiermacher – de preferência os supera (…) A própria teologia, que é a extensão natural da religião na humanidade racional, enquanto busca, na medida do possível, racionalizar uma experiência originariamente não racional, constitui, por certo, o ponto de passagem da religião para a filosofia; mas deve continuamente deter-se no seu processo de clarificação intelectual e reencontrar a sua força no dado fundamental, obscuro e dinâmico, da experiência religiosa, que é a relação vital com o Uno Todo, mediante a oração e o sacrifício (R. Gibellini, op. cit., p. 41).

Assim como os Modernistas dirão que o dogma jamais explicita conveniente e completamente a experiência religiosa interior, assim também o dirá Dilthey, como explica Gibellini:

Nessas intuições do mundo, sempre se conserva um núcleo obscuro, especificamente religioso, que o trabalho conceitual dos teólogos jamais é capaz de explicar e de justificar. Jamais pode ser superada a unilateralidade de uma experiência que brota da relação de oração, de solicitação, de sacrifício de si mesmo com seres supremos e que das relações da alma com eles consegue captar os seus predicados. daqui nasce uma relação pela qual a intuição religiosa do mundo é, sim, a preparação da instituição metafísica, mas não pode jamais resolver-se completamente nesta última (R. Gibellini, op. cit., p. 41).

De Schleiermacher, portanto, Dilthey deriva e conserva a convicção do caráter originário e originalmente sentimental da religião, inconfundível com qualquer outra experiência: “A religião deve ser uma postura especial diante do mundo, deve ter sua própria legítima origem, ou então é uma mistura impura, uma violação da crítica da esfera consciencial da moral e da ciência. Existe uma experiência religiosa, que age na vida psíquica de maneira legítima, autônoma, originária e indestrutível: é essa experiência vivida a origem de todos os dogmas, cerimônias e organizações da vida religiosa comunitária. Essa foi a grande descoberta de Schleiermacher nos ‘Discursos sobre a Religião'” (R. Gibellini, op. cit., p. 42).

Se de Schleiermacher Dilthey herdou a ideia da experiência religiosa pessoal com a Divindade, de Ferdinand Christian Baur, Dilthey adotou a sua ideia de historicidade de todo fenômeno espiritual e de sal incompreensibilidade se examinado fora de sua condição histórica.

Como os Modernistas, mais tarde, Dilthey considerará que a fé como experiência religiosa original, é superior ao dogma que a expressa, aliás, imperfeitamente.

A atenção do historiador pelas objetivações da religião não exclui a reivindicação da prioridade da fé sobre o dogma (Schleiermacher), embora seja reconhecida a necessidade de uma tradução histórica da fé no dogma historicamente condicionado (Baur). O adversário comum, aliás, tanto de Schleiermacher-Baur quanto de Dilthey, é a ortodoxia tradicional, surda à consciência histórica. O dogma não esgota a religião, mas apenas exprime de modo cifrado o sentir religioso de certa época, o qual é um elemento de um todo mais vasto, que é a história das religiões, na qual diversa e sucessivamente se encarna o único e perene Erlebnis da religio.” Eis o que escreverá Dilthey a este respeito, em dezembro de 1892, ao Conde Yorck:

‘Todos os dogmas devem ser levados ao seu universal valor de vida para cada vitalidade humana. Eles foram concebidos numa delimitação historicamente fundada. Libertos ela, são naturalmente a consciência da natureza transcendental e suprarracional da historicidade em geral. Nessa proposição, uno-me à tendência universal do que caracterizo como teísmo universal, teologia transcendental. Rejeito, porém, ao mesmo tempo, a concepção intelectual do dogma. Ela predomina tanto na interpretação especulativa de Hegel e Baur quanto na luta de Ritschl e Harnack’; para que refletem, seja qual for o gênero a que pertencem, a partir da profundeza do espírito, tudo o que está contido nesses poderosos símbolos é envolto por uma relação transcendental, histórica, prescindindo totalmente da particularidade teológica. (Carteio entre Paul Yorck von Wartenburg e W. Dilthey, 1877- 1897, p. 341, apud R. Gibellini, op. cit., p. 43).

Em outra carta de Dilthey ao Conde de Yorck em setembro de 1897, se pode ler o seguinte:

No ponto de partida, estou de acordo com Schleiermacher. Também a visão do mundo só pode ser desenvolvida a partir da análise do sujeito em suas relações com o que o influencie e ao qual reage. Não se pode ter a natureza em si e dela aprender o que seriam e o que significariam o mundo e a vida. É preciso, pelo contrário, basear-se no homem histórico como ponto de partida. Ora, a sua concepção atemporal e a-histórica das formas de vida ignora tudo isso. Também quanto ao ulterior ponto central estamos de acordo com ele, porque o estamos com todos os filósofos místicos, historiadores e heroicos. É preciso partir da vida. Isso não quer dizer que ela deva ser analisada, mas que é preciso revivê-la em todas as suas formas e que é preciso tirar as consequências internas que existam nela. A filosofia é uma ação que leva a sério e pensa a vida, isto é, o sujeito nas suas relações como vitalidade. Este foi o ponto forte de sua personalidade: ele sabia que o homem quer pôr em ação o que existe em nós, a relação com algo que se deve entender como transcendente na simbolização e nas sumas figuras, quer reviver a experiência vivida (hermenêutica). (Dilthey – Yorck, Carteio, p. 353, apud R. Gibbelini, op. cit., p. 44).

Gibellini lembra que, no desenvolvimento da filosofia da religião, autores como Otto, Scheler, van der Leeuw, Guardini, Eliade e Wachy, aplicaram o método fenomenológico para resgatar a experiência religiosa. (Cfr. R. Gibellini., op. cit. p. 48).

20. Max Scheller (1874-1928)

Max Scheller foi um filósofo fenomenologista, preocupado especialmente com a filosofia dos valores. Conheceu Husserl, na Universidade de Iena, mas não foi seu aluno. Para alguns comentadores, por exemplo, para Nicola Abbagnano (Storia della Filosofia, TEA, Milano, 1995 -1999, vol VI, p. 453) ele deve ser classificado como um filósofo fenomenologista, embora Frederick Coppleston, S. J. (A History of Philosophy, Image Books, New York, 1994, Vol. IX, p. 293), não o tenha por tal. De qualquer modo, ele pelo menos adotou o método fenomenológico de Husserl, e como a adoção de um método supõe a admissão de seus princípios, fica difícil negar que Scheler seja um filósofo da escola fenomenológica.

Escreveu Scheler:

A fenomenologia não é o nome de uma nova ciência, nem uma palavra de substituição para filosofia, mas uma postura espiritual, como que se recebe algo para ver ou para viver, algo que sem ela permaneceria oculto, um dirigir-se para aqueles “fatos puros” que o homem em geral, e mesmo o cientista, não sabe captar (Max Scheler, Phänomenologie und Erkentntnistheorie, in Schriften aus dem Nachlass. Aos cuidados de M. S. Frings – Munchen, 1957, p. 381, apud Anna Escher di Stefano, Max Scheler, a Dimensão Fenomenológica do Sagrado, in Dio nella Filosofia del Sécolo XX, Ed Queriniana, Brescia, 1993, organ. por Giorgio Penzo e Rosino Gibellini, trad., Ed Loyola, São Paulo, 1998, p. 161).

Não há dúvida, então, sobre a liceidade da classificação de Scheler como filósofo de fundamentação fenomenológica, embora ele tenha discrepâncias e diferenças com relação ao pensamento. de Husserl.

Max Scheler influiu muito no pensamento de Hartmann, de Heidegger, de Edith Stein, e, ainda, em Karol Wojtyla, o atual Papa João Paulo II.

O pensamento de Scheler, segundo ressaltam comumente seus comentadores, variou muito, durante sua vida.

Quanto à metafísica e à religião, Anna Escher Di Stefano, no trabalho acima citado, distingue três fases, no pensamento de Scheler:

1ª Fase: O problema de Deus pertenceria exclusivamente ao campo da religião, nada tendo a ver com a filosofia. A Metafísica, nessa questão, levaria apenas a mitos. Percebe-se nisto a influência de Husserl, para quem as provas da existência de Deus de São Tomás e de Aristóteles nada provariam, de fato. O que foi tese condenada pelo Concílio Vaticano I. Para Scheler, entretanto, contra Husserl, seria possível conhecer Deus apenas como Ens a se, absoluto e santo. É o período em que Scheler escreve Formalismus, Absolutsphäre, Vom Umsturtz der werte.

2ª Fase: Do livro Vom Wesen der Philosophie até o livro Probleme der Religion. Nessa fase, para Scheler, religião e metafísica seriam duas vias diversas para se chegar ao Ens a se.

3ª Fase: Inclui as obras Die Stellung des Menschen im Kosmos, Philosophische Weltanschauung, Die Formen des Wissens und die Bildung. Nesta terceira e última fase, a religião é que fala de mitos. Só a Metafísica seria competente para falar do Absoluto.

Sua obra mais importante foi publicada em 1923, e intitulou-se Essência e Forma da Simpatia.

Nessa obra, segundo afirma Abbagnano, ele fala de uma “fusão emotiva do homem com o cosmos vivente” (Max Scheler, Essência e Forma da Simpatia, pp.168ss), através do amor sexual (N. Abbagnano, op. cit. p. vol. VI, p.460).

Houve, portanto, uma reviravolta do pensamento de Scheler, sobre a religião.

Para Scheler, seria impossível haver que o homem tivesse qualquer possibilidade de conhecer algo sobre o Absoluto e a salvação, se não existisse, antes alguma coisa no próprio homem, que possibilitasse isso.

O homem, seja qual for o grau de desenvolvimento religioso em que se encontre, contempla uma região do ser e do valor radicalmente distinto de todo o resto do mundo da experiência. Esse é o axioma fundamental da originariedade da experiência religiosa. Todas as questões que se referem à religião natural, bem como todas as questões acerca da religião verdadeira ou falsa, portanto também todos os problemas acerca da sua justificação, pressupõem esse axioma (Anna Escher Stefano, op. cit. P. 169).

Percebe-se bem nesse posicionamento, a forte dose de Modernismo que afetava o pensamento de Scheler.

Inicialmente, Scheler havia condenado o panteísmo como “uma concepção muito primitiva, que joga de modo superficial com analogias sensoriais” (Apud Anna Escher Di Stefano, op. cit. p. 170).

Essa autora mostra, porém, que Scheler adotará a posição que criticara anteriormente no panteísmo:

O mundo extra espiritual não excluiria que antes e fora e fora dessa força super potente (portanto, não necessariamente onipotente e infinita) haja também um segundo princípio fundamental igualmente originário como fundamento do mundo (uma energia cega ou uma matéria eternamente e em igual originariedade coexistente com Deus); e assim o dualismo (como era ensinado pela antiga religião dos persas e pelo maniqueísmo) não estaria excluído; pelo contrário, seria verossímil (Max Scheler, Probleme der Religion, op cit p. 192, apud Anna Escher Di Stefano, op. cit. p. 170).

Scheler admitia, pois, a verossimilhança do Maniqueísmo. É o que se pode chamar de “falar claro”!

O que espanta, é que apesar dessas afirmações claramente heréticas, haja quem pretenda admitir algo do pensamento desse filósofo.

Outrora os “domini canes” ladravam ao primeiro sinal de ataque à ortodoxia. Agora, parece que só há “cães mudos”, como diz a Sagrada Escritura…

No final de sua vida, Scheler defenderá uma doutrina claramente Modernista e gnóstica;

De qualquer forma, no último Scheler, a relação do homem com o divino sofre uma reviravolta: o ser primeiro interioriza-se no homem no ato mesmo em que o homem se funda nele. O lugar, portanto, da autorrealização do ser, ou seja, da unidade de impulso e espírito vem a ser o homem, o eu, o coração do homem. Homem e Deus são correlativos: o homem não pode realizar o seu destino sem participar dos dois atributos do ente supremo e sem ser imanente a ele. Mas nem mesmo o Ens a se pode realizar o seu próprio destino sem a cooperação do homem. O espírito e o impulso, os dois atributos do ser, não são completos em si, independentemente de sua mútua penetração; eles se desenvolvem justamente manifestando-se na história do espírito humano e na evolução da vida universal (Die Stellung des Menschen im Kosmos, in Späte Schriften , Bern, 1955, p. 84, apud Anna Escher Di Stefano, op. cit., p. 172.O negrito é meu).

O “coração humano”, o eu, como ponto de realização do ser, estas são fórmulas típicas da Gnose romântica, que Scheler repete, e que terão grande difusão em nossos dias.

“O homem, que, em Wesen und Formen der Sympatie, fora definido como “ideia eterna de Deus”, torna-se agora “o único lugar em que e pelo que o ser originário se auto compreende e se auto – reconhece”; não só isso, mas também “o ser em cuja livre decisão Deus pode agir e tornar sagrada a sua essência simples” (Philosophische Weltanschauung, in Späte Schriften, op. cit, p. 84, apud Anna Escher Di Stefano, op. cit. , p. 172- 173).

Para Scheler, “Só o empenho da própria pessoa abre a possibilidade de ‘conhecer’ o ser do Ens a se (das Sein des Durch-sich-seienden)” (Die Stellung des Mewnschen im der Kosmos, p. 71 apud Anna E. Di Stefano, op. cit.p. 173.).

Comentando essa frase, diz Anna E. Di Stefano:

“Portanto, é sempre a metafísica que detém a resposta ao apelo do homem, contanto, porém que por metafísica entenda-se a esfera de ser absoluto como constitutiva da essência mesma do homem, bem como autoconsciência ou a consciência do mundo” (Anna E. Di Stefano, op. cit., p. 173).

Essa tese de Scheler acima citada, e o comentário que dela faz Di Stefano, colocam Scheler como gnóstico e pelagiano, pois que ele identifica algo da essência do homem ao próprio Ens a se, assim como confunde natural e sobrenatural.

Talvez se duvide de nossa afirmação de que há um caráter gnóstico no pensamento de Scheler. Para esclarecer este ponto faremos uma longa citação de Anna Escher Di Stefano. Colocaremos, em negrito, nas citações, as palavras que tornam mais explícita a Gnose de Scheler, e intercalaremos às citações, entre colchetes, os nossos próprios comentários:

“A relação com o divino sofre, assim, uma reviravolta: Deus não mais existe para o homem, para apoiá-lo, mas o homem existe para Deus; é o lugar do seu fazer-se concreto sobre a Terra. A norma, o valor não são mais colocados em Deus, mas no próprio eu, na consciência da sua colocação no cosmos.’

“A nova posição de Deus leva, pois, a uma nova concepção de mundo. O mundo torna-se a história de Deus, o espaço onde se manifesta a sua racionalidade e irracionalidade. O Deus onisciente, onipotente, infinitamente bom do teísmo está no final do devir divino, mas no início da história do mundo. Ele constitui um fim ideal, que, como vimos, é alcançado quando o mundo se torna o corpo de Deus”.

[Nossos negritos frisam a coincidência do pensamento de Scheler com o da Gnose romântica]

“À doutrina teísta de um Deus, que falsamente atribui a Deus potência criadora e procura justificar o bem e o mal com o “mito” do pecado original, Scheler contrapõe m Deus que não é onipotente e pacífico, mas sofre, ama e tem piedade, um Deus que é imperfeito e busca, através da história do mundo, completar seu próprio ser.”

“O homem vem, assim, a ser divinizado, ao custo da humanização de Deus e, portanto, da rejeição de um salvador estranho à vida humana, de uma igreja propiciadora de graça. O fim da história não é uma vida além do mundo, mas é a história mesma enquanto divinização do homem, a cujo serviço está toda a civilização, toda a cultura, todo Estado, toda Igreja”

[Será preciso mostrar o que é evidente nesse parágrafo? Que Scheler, rejeitando o Salvador e a Igreja, coloca sua fé no homem que se divinizará na História, e para cuja divinização trabalham, e devem trabalhar, culturas, Estados e Igrejas, exatamente como, hoje, se proclama na preparação e construção da Nova Ordem do Mundo – a Novus Ordo Saeculorum – que se espera atualizar-se, logo mais, no Terceiro Milênio, pela globalização, pela República Universal, e pela “O R.U.” (Organização das Religiões Unidas), da qual o Papa seria o presidente… honorário…?]

“Do teomorfismo do homem passamos ao antropomorfismo de Deus: o homem é a medida do mundo e da divindade. À pergunta: por que existe o ser e não antes o nada, o último Scheler responde: para que o homem se torne Deus. Não mais o ser, mas o homem é o núcleo da metafísica”.

[Constitui-se, assim, graças ao pensamento de Scheler um novo Deus: o homem. E tudo – Igreja e Estado – só devem visar o culto do homem… E esse novo culto, essa nova religião encontrou eco nos lugares mais inesperados, e na palavra de pessoas, as quais, nunca se supunha, pudessem adotar o culto do Homem, renegando o culto de Deus altíssimo e transcendente, daquele Deus que cantavam os serafins dizendo: Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus dos exércitos”].

“Ou seja, Scheler, esquecido das críticas que dirigira alguns anos antes ao panteísmo, não só admite um duplo princípio originário, mas além disso atribui ao impulso uma potência maior do que a atribuída ao espírito”.

“No momento em que o homem e Deus tornam-se, ao mesmo tempo, a norma e o fundamento do processo cósmico, o problema do “sistema de conformidade” (Konformitätssystem) perde sua razão de ser, para ceder o lugar àquela posição gnóstica, rechaçada por Scheler no seu período teísta”.

[Evidentemente, aqui a comentadora de Scheler, Anna Escher Di Stefano, comete o equívoco comum de confundir Panteísmo e Gnose. Scheler continuou condenado o panteísmo, mesmo quando explicitou a Gnose que estava embutida, desde o princípio, em sua doutrina].

(Todas estas frases citadas acima, entre aspas, foram retiradas do texto de Anna Escher Di Stefano, op. cit, p. 172).

É claro que a reviravolta, ou melhor, a explicitação da Gnose de Scheler, provocou uma mudança de perspectiva em sua explicação do surgimento da religião.

A primeira fonte do saber religioso – segundo Scheler – não são sempre e em toda parte, como durante muito tempo se pensou, o animismo e o culto dos antepassados, e ainda menos as inferências metafísicas da razão, mas um contato-de-experiências entre aqueles que o grupo considera pessoas excelentes e o sagrado (Anna E. Di Stefano, op. cit., p. 173).

Não cremos que seja necessário salientar a coincidência da “experiência religiosa” exposta por Scheler e a “experiência religiosa” modernista, como fonte da revelação e da religião…

Quem tiver olhos para ver que veja. Quem tiver ouvidos para entender, que entenda.

Para Scheler, as fontes das ideias do sagrado surgem de um contexto muito heterogêneo:

1. das tradições dos grupos familiares predominantes, das gentes, e das tribos;

2. das intuições dos “homines religiosi”, carismáticos, intuições que se exprimem em fatos, doutrinas, instituições ou que são simplesmente transmitidas e registradas nos chamados livros sagrados

3. do exercício das práticas rituais e culturais, como fontes da experiência religiosa do exercício das práticas rituais e culturais, como fontes da experiência religiosa

4. das ideias metafísicas acerca de Deus e do problema da salvação. (Anna E. Di Stefano, op. cit., p. 175).

Como resultado de toda essa elocubração “a pessoa divina, de “pessoa das pessoas”, de “a única pessoa perfeita e pura”, de pessoa-amor absoluta”, passa a ser espírito impessoal, e a pessoa humana transforma-se em “auto concentração individual e única do espirito divino”. O homem apresentado em Wesen und Formen der Sympathie como “ideia eterna de Deus”, torna-se um microtheós, cujo dilaceramento não depende da oposição ontológica entre corpo e alma, mas da oposição entre vida e espírito, própria também do princípio de todas as coisas” (Anna E. Di Stefano, op. cit., p. 176).

“O homem de Scheler busca Deus, não importa se um Deus-pessoa ou um Deus situado no próprio coração do mundo e do eu” (Stefano Anna Escher Di, op. cit., p. 177).

Toda esta exposição do pensamento de Scheler, fundamentado no comentário de Anna Escher Di Stefano, torna claro o que diz Nicola Abbagnano sobre a doutrina de Scheler, no livro Wesen und Formen der Sympathie, de que é possível “uma fusão emotiva do homem com o cosmos vivente, que se verificaria no ato do amor sexual” (Nicola Abbagnano, Op. cit. vol. VI, p. 460).

Aliás, também essa doutrina da realização da união do homem com a divindade através do amor sexual foi típica dos autores românticos: Frederico Schlegel e Clemens Brentano falaram disso.

No pensamento de Scheler, nada há de cristão:

1. O universo não é vivente;

2. Não é possível uma fusão do homem com o cosmos. Tal fusão parece ter uma clara influência do pensamento gnóstico do Romantismo;

3. Que se pretenda alcançar essa fusão através do amor sexual, piora ainda mais o caso.

Scheller trata ainda da possibilidade de “uma união mística entre a essência da pessoa espiritual, e a ideia desta essência, tal qual repousa em Deus” (Cfr. Nicola Abbagnano, op. cit, vol. VI, p. 460)

Conforme Abbagnano, “Scheller acentuou o conceito de solidariedade entre todos os seres vivos, até chegar a uma solidariedade universal, que incluísse juntamente o mundo e o próprio Deus” (Philosofische Weltanschauung, 1929, p. 71, apud Nicola Abbagnano, op. cit., vol VI. p. 460. O negrito é meu).

Por isso, por meio dessa solidariedade, a história – e este é um pensamento típico da Gnose romântica – a história humana seria uma manifestação do próprio devir de Deus. Deus se realizaria na História, ideia claramente gnóstica e romântica. (Cfr. Nicola Abbagnano, op. cit, vol. VI, p. 460).

Convém ainda lembrar que, para Scheller o conhecimento humano contribui para a realização mais alta da alma humana, ajudando sua solidariedade com os outros e coma Divindade. Pelo conhecimento humano, as próprias coisas, se solidarizariam com a Divindade, coisa que, por si, jamais poderiam fazer. Através também do conhecimento, o homem poderia dominar o mundo 9Cfr. Nicola Abbagnano, op. cit. vol. VI p. 461).

Convém chamar a atenção sobre o termo solidariedade, para lembrar o valor quase mágico que essa palavra adquiriu em nossa época.

Scheller é, assim, um defensor de ideias nitidamente românticas.

Por tudo isso, Max Scheller não pode ser tido como um filósofo realmente cristão.

Conclusão

Quando estudamos as origens do Romantismo, que ele se identifica com a Gnose. Vimos ainda que, conforme explicou Ladislao Mittner, a Gnose é como um rio cársico que aparece e desaparece na história.

Octávio Paz, em seu livro Signos em Rotação, afirma:

Não é necessário seguir os episódios da sinuosa e subterrânea marcha do movimento poético do século passado [século XIX], oscilante sempre entre os dois pólos da Revolução e Religião. Cada adesão termina em ruptura; cada conversão, em escândalo. Monnerot comparou a história da poesia moderna com a das seitas gnósticas e com os adeptos da religião oculta. Isto é verdade nos dois sentidos. É inegável a influência do gnosticismo e da filosofia hermética em poetas como Nerval, Ugo, Mallarmé, para não falar de poetas deste século: Yeats, George, Rilke, Breton. Por outro lado, cada poeta cria em torno de si pequenos círculos de iniciados, de modo que sem exagero pode-se falar de uma sociedade secreta da poesia. A influência desses grupos tem sido imensa e logrou transformar a sensibilidade de nossa época. Desse ponto de vista não é falso afirmar que a poesia moderna se encarnou na história, não à plena luz, mas como um mistério noturno e um rito clandestino. Uma atmosfera de conspiração e de cerimônia subterrânea rodeia o culto da poesia (Octávio Paz, Signos em Rotação, edit. Perspectiva, São Paulo, 1996, p. 84).

Essa declaração espetacular de Octávio Paz confessando uma conspiração secreta e gnóstica no mundo Arte deve ser registrada com tanto maior relevo quanto é insuspeito seu autor, prêmio Nobel de literatura. Ninguém pode acusar Octávio Paz de ser um maníaco da teoria da conspiração

O que ele afirma sobre a poesia e arte dominadas por uma conspiração subterrânea e gnóstica pode ser transposto para ao campo da Religião e da Filosofia?

Para quem compreende a relação entre Arte e Filosofia, para quem compreende que uma escola de arte é má transposição de uma cosmovisão em símbolos, não há dúvida que a resposta só pode ser uma.

A unidade da Gnose do Romantismo com a Gnose do Modernismo exige que se considere que houve também no campo da Filosofia, da Teologia e da Religião uma conspiração que conseguiu impor as doutrinas da Gnose ao mundo contemporâneo. Essa vitória das ideias gnósticas sobre a religião, condenadas por São Pio X no início do século XX com o Decreto Lamentabili e com a encíclica Pascendi, vieram a triunfar, no Vaticano II, através da ação dos homens da Nova Teologia, apoiados pelas determinações de João XXIII e de Paulo VI.

São Paulo, março de 2004

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