1671- Modernismo e Magistério

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Orlando Fedeli

Modernismo e Magistério

 

  • Localização: Covilhã – Portugal

Amigos da Montfort*,
Salvé Maria.

Em primeiro congratulo-me pelo vosso trabalho. Que Deus nos ajude a todos.

Tenho falado com vários padres e alguns professores universitários até bastante reconhecidos em Portugal. Contudo, as respostas às perguntas que lhes lanço não são satisfatórias. Por vezes quanto “melhor” e mais acabadamente respondem mais evidente é a falta de bases da argumentação. Ou seja, é muito frequente haver uma bem acabada conclusão, fortemente sustentada, mas que parte de premissas muito débeis, ou até mesmo erradas. Um gigante com pés de barro.

Naturalmente que me fere ver pessoas com as quais cresci, ou de quem sou amigo, apostarem tão fortemente nos fins pré feitos e não querendo sequer por em causa os princípios. Teremos quase que abandonar essas pessoas? Não sei sinceramente, contudo começo eu a ser olhado com desconfiança e até com desprezo. Enfim… nalguns casos a coisa é ainda mais grave.

Antes de colocar algumas perguntas queria dar a conhecer o ponto de toda a minha preocupação face ao Missal de Paulo VI.

Fui seminarista desde os meus 11 anos e no seminário continuei sinceramente e durante vários anos. Lembro-me de ter 12 anos e o nosso director espiritual, numa aula, explicar que a Hóstia consagrada esconde sob a sua aparência de pão verdadeiramente o corpo de Cristo. Evidentemente que fiquei muito admirado, não duvidei, e penso que fiz alguma pergunta no sentido de tentar compreender melhor. Sei que entendi tudo ao mesmo tempo que reconhecia haver um grande milagre, para lá da razão e não contra a razão.

Na Missa olhava o momento da consagração como momento do grande milagre e era uma revolução para mim saber que o pão era a aparência (segundo valor) de uma realidade (primeiro valor).

O momento de choque foi a “circunstância”: havia padres que definitivamente, na consagração, estavam simplesmente reverentes, ou nem isso; a sala de visitas era mais bonita que uma das capelas; a velocidade com que se fazia a consagração e a elevação era tal que dificultava qualquer tentativa de concentração nossa naquele momento com aquela realidade mais exigente. Ou seja, a aparência não levava ninguém à realidade do sacrifício da Missa.

Fazia-me muita confusão olhar a cara do padre, e toda a circunstância, e concluir: “ele não acredita”.

Toda esta nova problemática, era de ano para ano mais agravada, e também eu acabei por ficar baralhado e adormecido naquela corrente. Surgiram mais tarde as novidades litúrgicas com a entrada de novos padres no seminário. Fragilizado o Santo Sacrifício, que na Missa era cada vez mais um mero vestígio, foi aparecendo o vazio e a necessidade de dar mais sentido a uma forma cada vez mais distante do sagrado. Contudo, como é próprio do erro, em vez de ser reflectida a falha e a culpa, optou-se antes por atribuir a culpa aos outros. Mas como os outros eram pares entre si, a culpa foi mandada para quem não se queixa: o rito. Foi lentamente surgindo então a humanização do rito sustentada por brechas da teologia conciliar. As brechas tornaram-se regra e o contexto que as faria reconhece como erros foi abafado e relativizado. Que festa!!!

Hoje quando ouço dizer que “é preciso atrair os jovens para a Eucaristia”, querendo significar que é preciso atrair jovens através das doutrinas não católicas da sociedade de consumo e de hábitos nascidos do monopólio liberal capitalista, eu fico pálido. Pois são os próprios padres, meus antigos colegas de seminário, que demonstram afinal nunca terem sido tocados pela verdade do Santo Sacrifício da Missa, restando-lhes explorar a dimensão aparente.

Efectivamente, parece-me haver duas dimensões, o “aparente” e o “verdadeiro”, em que o aparente deve estar completamente submetido ao verdadeiro, e é a Verdade que justifica e dá sentido a todo o resto. Contudo, se assim for, e desculpem a minha ignorância de modernista arrependido, estarão os padres a tornar cada vez mais complexa esta “dimensão aparente”, na medida em que ela se afasta da Verdade e na medida em que necessitam cada vez mais de jogos “teológicos” para sustentar como legítima uma direcção que acaba por ser oposta e contraditória.

Neste panorama, no erro em que mergulham, super-dogmatizando o CVII (e muitos usam o CVII apenas para defenderem-se das exigências do Bem), resta-lhes procurar esforçadamente o humano como se fosse sagrado. Por sua vez, fruto das mutilações e das inoperâncias pós conciliares, muitos já negam os conceitos “sagrado” e “profano” dizendo que essas são virtualidades que estão presente na totalidade que é o homem e, portanto, o humano é sagrado. Pois não seria de esperar outro resultado.

Os santos são e não são e pode ser ou não, assim muitos afirmam. Pois visto que certo é somente o CVII, a Igreja primitiva e a Bíblia, tudo o resto é posto em causa. Enfim …..

Muito haveria a dizer e, como a carta já vai demorada, passo a por as minhas dúvidas.

Notei que, principalmente nos doutores da “alta” teologia em Portugal, há bases comuns onde assenta todo o discurso. E é nessas bases que tenho ainda dúvidas:

1 – A noção de “ordinário” e “extraordinário” é apresentada de forma diferente. Pois invertendo estas noções parece ser possível uma falsa legitimação do “espírito do concílio” e uma ridicularização de quase toda a história da Igreja. Portanto, gostaria de saber se há algum documento que fixe aqueles conceitos. Se realmente houver uma base documental forte penso que boa parte dos problemas ficam resolvidos, pelo menos no discurso intelectual;

2 – Os Concílios são promulgados infalivelmente em partes ou na sua totalidade?

3 – Os bispos, no seu conjunto, têm poder infalível?

4 – Se o Missais, o de Paulo VI e o do beato João XXIII, são formas (expressões) do mesmo Rito Romano, podemos dizer que o Rito Romano, tendo sido codificado, é efetivamente o Missal de São Pio V, devendo nós deixar em confronto aquelas duas formas e abraçando o Missal de São Pio V?

Um amigo teólogo modernista progressista, professor de teologia, depois de uma conversa com ele, quando eu referi que parecia até haverem duas igrejas, ele, depois de uma pausa, respondeu: “uhmm…já há, já há …”

Peço desculpas por não saber melhor exprimir-me quando referi “aparente” e “verdadeiro”. Contudo se isso não for ainda certo agradeço que me corrija.

Encontrei recentemente um antigo amigo que costuma assistir à Missa na F.S.S.P.X., graças a Deus. Como eu só tive educação modernista ainda só conheço a forma ordinária do Rito Romano, contudo, neste mês de Outubro, estou a organizar-me para ir assistir a primeira Missa de sempre, da minha vida.

Agradeço a disponibilidade e o trabalho de responderem à minha carta.

A Deus,
—————————
Muito prezado,
Salve Maria.

Perdoe-me o tardar tanto para responder sua muito bela carta.
Ela me impressionou muito bem, não só pelo belo estilo que o honra, como pelos pensamentos corretos que me envia.
O relato de sua vida mostra a crescente força do modernismo nos meios religiosos em que você vivia.
Como se deixou um menino de 11 anos entrar no seminário sem nunca lhe ter dito o que era de fato a Sagrada Hóstia? Foi só aos doze anos, quando você já estava no seminário há um ano, que lhe disseram que Cristo estava realmente presente na Sagrada Hóstia com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade. E você queria ser Padre sem saber o que era ser sacerdote, sacrificador do Cordeiro de Deus. E, à medida em que o Concílio se abria ao mundo, o inimigo de Deus — Lúcifer — entrava nos seminário, pois que foi escrito: “Adúlteros, não sabeis que a amizade deste mundo é inimiga de Deus? Portanto, todo aquele que quiser ser amigo deste século, constitui-se inimigo de Deus” (São Tiago, I, 4). E João XXIII quis que a Igreja se abrisse ao mundo de hoje, adaptando a doutrina católica ao pensamento do mundo moderno…
Resultado; a fumaça de Satanás entrou no Templo de Deus. Entrou nos seminários, e nos documentos eclesiais.
Dialogou-se com o mundo. Dialogou-se com os comunistas e com todos os hereges e heresias de todo tipo e quilate, em nome do ecumenismo e do amor.
E berraram ameaças e excomunhões contra quem permanecia fiel.
O Concílio Vaticano II declarou que ninguém poderia sofrer qualquer coação por suas idéias religiosas. E João Paulo II, contraditoriamente, excomungou Dom Lefebvre…
Contradição.
Se ninguém pode ser coagido, ou condenado, por suas ideias religiosas, Dom Lefebvre não podia ser condenado.
Se o Concílio Vaticano II estava certo, Dom Lefebvre não podia ter sido excomungado.
Se Dom Lefebvre mereceu ser condenado, então o Concílio estava errado.
Mas então Dom Lefebvre estava certo.
De nenhum modo, Dom Lefebvre podia ser condenado. De todo modo, o Vaticano II estava errado.
Essa doutrina do Vaticano II levou milhares de Padres a perderem a Fé e a abandonarem a vida sacerdotal. Parece até que chegamos à Grande Apostasia predita por São Paulo…
Daí você ter visto a descrença, a falta de fé, estampadas na cara e na postura dos padres modernos, concluindo, ao vê-los na Consagração: “ele não acredita”.
O processo de humanização da liturgia, que você tão bem descreve em seu seminário, foi, em ponto pequeno, o que aconteceu em toda a Igreja, em ponto grande. Hoje, reina a anarquia litúrgica em toda a parte. Não há duas paróquias com a mesma Missa. Que festa! Que destruição! E feita alegremente. Em nome do amor ao homem. O homem, a quem Paulo VI fez a Igreja servir.
E você tem razão também ao observar que os padres moderninhos seguidores do Concílio Vaticano II, seguidores do mundo moderno e de sua mentira, colocam a aparência acima do real.
Eles são seguidores de fábulas. Já não creem na Verdade, tem opiniões. Até que cheguem à conclusão fatal de seu sofisma, de que nada, então, é verdade, pois que não há ser. E então nada é verdadeiro. Tudo é ilusão e engano.

O Mundo Moderno começou com Descartes partindo da dúvida e negando toda a certeza. Com o idealismo alemão se constituiu a opinião — o palpite – a aparência fenomenológica, como a única possibilidade criteriológica. E daí, logo se chegou à negação do ser e da verdade. E João XXIII convidou o Concílio a se abrir ao pensamento moderno, isto é, ao delírio moderno. Resultado disso foi o misterioso processo de auto-demolição da Igreja de que falou Paulo VI.
O Renascimento fez triunfar o antropocentrismo na arte e na filosofia. A Revolução Francesa fez do homem o CIDADÃO. A Revolução marxista fez dele o proletário. O Concílio Vaticano II declarou que no homem havia uma semente divina. Triunfou a idolatria do HOMEM. Paulo VI declarou a Igreja a seu serviço. Foi entronizado na Igreja um ídolo: o Homem.
É de surpreender que tenham tirado a Sagrada Hóstia do centro do altar relegando Deus para uma caixinha, numa saleta ao lado do santuário?

Respondo, agora, às suas perguntas

1a. pergunta:

Você me coloca uma primeira pergunta sobre os conceitos de ordinário e extraordinário. Evidentemente sua pergunta se refere ao rito ordinário (a Nova Missa) e à forma extraordinária (a Missa de sempre).
Bento XVI em seu Motu próprio disse que a Missa de sempre nunca foi revogada. E ainda há pouco, noticiou-se que Mons. Fellay após manifestar júbilo pelo Motu Próprio, declarou porém que não está de acordo com o princípio de que haja um rito com duas formas de missa.
De fato, poder-se-ia perguntar: pode existir um rito com duas Missas diferentes? Mais ainda, com duas teologias opostas, contrárias?
Não sou especialista em Liturgia, e não conheço a solução do problema que levanto. Por isso, só pergunto: pode existir um rito com duas Missas?
Tradicionalistas e Modernistas falam contra o biritualismo.
Biritualismo?
Como biritualismo?
Na Igreja, há poli ritualismo. Existem o rito romano, o bizantino, o melquita, o bracarense, o ambrosiano, etc.
Que significa condenar o biritualismo, ao falar das duas missas no rito romano?
Talvez se queira dizer que não é possível haver duas missas num só rito…
Será isso?
Como não podem existir duas Constituições, ao mesmo tempo, num país. Caso se faça uma Nova Constituição, deve-se revogar a constituição anterior, para que a nova entre em vigor. Assim como dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, assim também é impossível haver duas Constituições, concomitantes, num mesmo país.
Da mesma forma, pergunto: pode haver duas Missas num rito?
Podem co-existir duas Missas diversas no rito romano?
Só estou perguntando.
Se não podem existir, concomitantemente, duas Missas num só rito, isso coloca questões extremamente graves.
Bento XVI declarou, no Motu Proprio Summorum Pontificum, que a Missa de sempre nunca foi revogada.
Mas então teria sido lícito a Paulo VI introduzir uma Nova Missa, sem revogar a anterior?
Se é possível haver duas Missas diferentes num mesmo rito, então minha pergunta deixa de ter qualquer importância.
Mas, se a resposta à minha pergunta é que em cada rito só pode haver uma Missa, A NOVA MISSA DE PAULO VI NUNCA TERIA SIDO LEGAL, PORQUE A MISSA GREGORIANA NUNCA FOI REVOGADA. E NÃO CABERIA LUGAR PARA UMA NOVA MISSA.
Com a palavra os especialistas em Liturgia.
Eu só coloco o problema, sem dar opinião, e sem nada sentenciar, que não me cabe fazê-lo, e porque não conheço essa matéria.

2a. pergunta:

Num Concílio, somente são infalíveis as decisões que o papa declarar como tais. O Papa pode declarar todos os textos de um Concílio infalíveis, ou só certas partes, ou decisões. Houve exemplos disso tudo, no passado da Igreja.
No Vaticano II, nada foi declarado ex cathedra, infalível. Nada desse Concílio pastoral exige então adesão de Fé divina e católica. Aliás, ainda quando o atual Papa era o Cardeal Ratzinger ele declarou que o Concílio Vaticano II não era infalível.
É então que entra a questão se o Vaticano II foi infalível por ser Magistério Ordinário Universal, que é o problema posto por sua terceira pergunta.

3a. pergunta:

“Os bispos, no seu conjunto, têm poder infalível?”

Sim. Os Bispos, ensinando em conjunto, e com o Papa, não contradizendo o que a Igreja sempre ensinou, dando um ensinamento definitivo, ensinam infalivelmente. É o que se chama Magistério Ordinário Universal que é infalível, sim.
O Vaticano II não se enquadra nesse caso, porque não ensinou nada definitivamente e não repetiu o que a Igreja sempre ensinou, pelo contrário: contradisse o magistério anterior. Além disso, ele pretendeu ser apenas pastoral, isto é, dar conselhos pastorais, de como se deveriam conduzir as ovelhas. Então, propriamente, ele nem foi magisterial.
O Magistério que ganha autoridade pela repetição, citado pelo Cardeal Journet, quando trata desse tema, é o Magistério Prudencial, onde a Igreja pode, ou não, engajar sua plena autoridade infalível. Exemplo disso, são os documentos das congregações romanas. Magistério Prudencial não é Magistério Ordinário Universal, pois este é sempre infalível, e o Magistério prudencial só é infalível quando a Igreja declara engajar nele sua plena autoridade. Caso contrário, não é infalível (Cfr. Cardeal Charles Journet, L ´Église du Verbe Incarné, Desclée de Brouwer, 1955, volume I,, p. 457)

4a. pergunta:

Você me pergunta

“Se o Missais, o de Paulo VI e o do beato João XXIII, são formas (expressões) do mesmo Rito Romano, podemos dizer que o Rito Romano, tendo sido codificado, é efetivamente o Missal de São Pio V, devendo nós deixar em confronto aquelas duas formas e abraçando o Missal de São Pio V?”

Resposta: Afirmativa quanto ao Missal de São Pio V. Mas, o Missal de 1962 de João XXIII também é legítima expressão do rito Romano, pois não mudou nada essencial no Missal de São Pio V.

Escreva-me sempre.
Um abraço.

In Corde Jesu, semper,
Orlando Fedeli

*O professor Orlando Fedeli foi presidente da Associação cultural Montfort de 1983 a 2010.

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