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Conspiração na História: exemplos do Antigo Testamento

Orlando Fedeli

 

CONSPIRAÇÃO NA HISTÓRIA: EXEMPLOS DO ANTIGO TESTAMENTO

 

A tese conspirativa da História é rejeitada pelos liberais, pois é incompatível com sua crença na bondade natural do homem. De outro lado, ela é exposta de modo ridículo por certa literatura antimaçônica, que em tudo vê ações secretas, conciliábulos, maquinações fantasmagóricas, intrigas rocambolescas e que imagina simbologias cabalísticas misteriosas nas coisas mais simples. Foi a cosmovisão conspirativa que Umberto Eco caricaturou na obra Il Pendolo de Foucault.

Trata-se de duas posições antagônicas. Uma nega qualquer conspirações, porque o homem é bom e a conspiração pressupõe maquiavelismo e maldade inexistentes. Outra em tudo vê o mal, vislumbrando o maçom embuçado, o judeu marrano e revolucionário, o terrorista atrás de cada esquina da História. Ambas pecam por excesso. E se de fato existe uma conspiração na História, tanto o liberalismo ingênuo, quanto o imaginativo antimaçonismo direitista ajudam a ocultá-la: o primeiro pela sua tola negação; o segundo pelo excesso caricato.

Conspirar vem do latim conspirare, que significa literalmente aspirar com outros, aspirar coletivamente, isto é, trabalhar junto com outros para obter um fim.

Sendo o homem um ser racional e social, é natural que ele procure se associar a outros para alcançar finalidades que, sozinho, não pode atingir. Literalmente, o homem está sempre conspirando. Quando ele organiza uma festa ou um jogo com amigos, ele aspirou junto, conspirou. Quando se inscreve num curso ou organiza uma firma com sócios, ele conspirou, isto é, aspirou junto com outros alcançar o saber ou o lucro.

Se um grupo de bandidos organiza um assalto, um sequestro, uma revolução, eles também estão conspirando. Nestes casos, em que se visam fins ilícitos, é claro que a conspiração tem que ser secreta. Ninguém organiza pública e abertamente um cartel como o de Medellin. Mascara-se uma associação criminosa com fins publicamente inocentes. Quer a associações com objetivos criminosos secretos, quer a sociedades secretas, a ambas cabe, em sentido próprio, o termo conspiração.

Entretanto, o homem comum tem dificuldade para crer em conspirações. É custoso para a inocência e a honestidade imaginar a malícia e o crime. Elas tendem a verem em tudo correção e liceidade. Acresça-se a isso o romantismo sentimental, a influência das ideias liberais sobre a bondade do homem, a dificuldade ou incapacidade da maioria das pessoas em arquitetar planos a longo prazo e a crença na inexistência ou na aposentadoria do demônio, e se compreenderá como hoje é difícil mostrar que na História — desde os primeiros tempos — há uma enorme conspiração diabólica para perder as almas.

O que torna explicável a História é a luta entre duas conspirações, a conspiração de Deus e a do demônio. Para salvar as almas, Deus organizou a divina “conspiração” da Igreja. Para perdê-las, o demônio organiza aquilo que o Papa São Gregório Magno chamou nos Morales de Anti-Igreja. É o que Santo Agostinho descreveu com maestria na De Civitate Dei:

“Dois amores deram nascimento a duas cidades: a cidade terrestre procede do amor de si até ao desprezo de Deus; a cidade celeste procede do amor de Deus levado até ao desprezo de si”. (De Civitate Dei, lib. XIV, c. 28).

Essa mesma ideia é descrita por Santo Inácio como a batalha das duas bandeiras, a de Cristo contra a do demônio. É a luta que o Evangelho de São João afirma existir entre os filhos da luz e os filhos das trevas, e que fora anunciado no Gênesis pelo próprio Deus quando disse: “Porei inimizade entre ti (a serpente) e a mulher, entre a tua raça e a dela, e ela mesma te esmagará a cabeça.” (Gn 3,15).

Deus, infinitamente sábio, usa alguns homens para salvar outros. Também o demônio, astutamente, procura usar homens para perder outros. Deus organizou a Igreja. O demônio organiza os maus — seus filhos — numa Anti-Igreja, que, por sua natureza — tendo em vista seus fins —, tem que ser secreta.

Dissemos que desde os primeiros tempos houve uma conspiração diabólica para perder as almas. Neste artigo, não pretendemos fazer uma demonstração exaustiva de que na História, desde todos os séculos — como disse Leão XIII na Humanum Genus — os maus se articulam para combater o bem, a Igreja e a Cristo. Queremos apenas chamar a atenção para alguns sinais dessa conspiração nos tempos anteriores a Cristo tendo como base a própria Sagrada Escritura. Com isso visamos abrir os olhos de mentes católicas que recusam-se a ver que há uma conspiração na História, ou que imaginam ingenuamente que a conspiração começou em 1714 com a constituição maçônica feita por Anderson, conforme dizem os livros maçônicos e antimaçônicos.

* * *

Na Escritura se lê que, com a permissão de Deus, Satanás destruiu os bens de Jó, matou seus filhos e causou-lhe uma grave chaga da cabeça aos pés. Para fazer estes males, está escrito que Satanás, além de utilizar forças naturais (raios, furacões), instigou os Sabeus e organizou os Caldeus em três esquadrões (Job 1,13-20). Deus revelou nesse texto que o demônio, com Sua permissão, pode usar quer os fenômenos naturais quer os homens e até organizar povos inteiros para fazer o mal.

No caso de Jó, a ação diabólica visava apenas um homem. Mas com a propagação da idolatria, o que o demônio visava era a perda de povos inteiros, porque — é preciso não esquecer — os deuses pagãos eram demônios, como se lê nos Salmos e em São Paulo. “Porque todos os deuses pagãos são demônios” (Ps 95,5) e “Ou o ídolo é alguma coisa? Antes digo que as coisas que os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios” (1Co 10,19-20).

Com a idolatria, o demônio dominou todos os povos gentios. Narra o Evangelho que quando Cristo foi tentado, “o demônio o transportou a um monte muito alto e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua magnificência. E lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares” (Jo 4,8-9).

“E o demônio conduziu-o a um alto monte, e mostrou-lhe num momento todos os reinos da terra, e disse-lhe: Dar-te-ei o poder de tudo isso, e a glória desses (reinos) porque eles me foram dados, e eu os dou a quem me parece. Portanto, se tu me adorares, todos eles serão teus” (Lc 4,5-8).

Cristo repeliu a tentação, dizendo que só a Deus devia se adorar, mas não negou o que Satanás afirmava: que todos os reinos do mundo eram dele na época em que Cristo veio à terra. Eram seus pela idolatria, porque ao adorar os ídolos todos esses povos adoravam ao próprio demônio. Tanto eram dele que seus reis e dirigentes maquinavam planos contra Deus e contra o seu Cristo. Conspiravam e Deus se ria de suas pretensões.

“Por que razão se amotinam as nações, e os povos maquinam planos vãos? Os reis da terra sublevam-se e os príncipes coligam-se contra o Senhor e contra o seu Messias. Quebremos (disseram) as suas cadeias e sacudamos de nós seus laços. Aquele que habita nos céus ri-se, o Senhor zomba deles” (Ps 2,1-4).

E Israel estava incluído no “tudo isso é meu” afirmado por Lúcifer, quando tentou a Cristo?

A cegueira com que se negaram a ver a luz de Cristo mostra que sim. Ademais o próprio Cristo afirmou que os fariseus, que eram os dirigentes do povo judeu, eram filhos do demônio. “Vós sois filhos do demônio e quereis satisfazer os desejos de vosso pai (…) o pai da mentira” (Jo 8,44).

Como e quando o pai da mentira dominou os judeus?

A destruição de Jerusalém por Nabucodonosor no VI século a.C. comprova que já então os judeus se tinham entregado ao demônio. Deus mostrou então ao profeta Ezequiel, em visão, que permitira tal castigo pelos pecados de idolatria cometidos secretamente pelos sacerdotes e dirigentes do povo. A descrição da visão lembra um enredo de mistério.

“E conduziu-me à entrada do átrio e olhei, e eis que havia ali um buraco na parede. E disse-me: filho do homem, escava a parede. E tendo eu escavado a parede, apareceu uma porta. E Ele me disse: entra e vê as péssimas abominações que estes aqui cometem. E tendo entrado, olhei, e eis que havia ali imagens de toda a sorte de répteis e de animais, a abominação de todos os ídolos da casa de Israel estavam pintados na parede por toda a roda. E setenta homens dos anciãos da casa de Israel estavam em pé diante destas pinturas, e Jezonias, filho de Safar, também em pé no meio deles; e cada um tinha na sua mão um turíbulo; e o fumo do incenso, que deles saía como uma névoa, elevava-se para o alto. E Ele me disse: vês bem, filho do homem, o que os anciãos da casa de Israel fazem nas trevas, o que cada um deles pratica no segredo de sua câmara; porque eles dizem: O Senhor não nos vê, o Senhor desamparou a Terra” (Ez 8,7-13).

Em seguida Deus lhe faz ver que até mesmo “entre o vestíbulo e o altar” havia quem “adorava o sol que nascia” (Ez 8,16).

Nessa curiosa visão, Deus mostra que os sacerdotes de Israel, nas trevas, em segredo, se entregavam à idolatria. Para chegar ao local dos seus crimes havia que utilizar passagens secretas… Na superfície, os sacerdotes ensinavam a religião verdadeira. Nas trevas, em segredo, praticavam outra. Quase 600 anos antes de Cristo, os sacerdotes e chefes judeus haviam renegado a religião verdadeira, ocultamente.

Se eles agiam secretamente é porque o povo ainda era suficientemente fiel para não tolerar a idolatria pública. Contudo, Deus destruiu Jerusalém punindo todo o povo pelo pecado dos chefes, porque o crime dos governantes afeta a nação enquanto tal.

Continuamente se lê nas profecias que a apostasia do povo é atribuída especificamente aos sacerdotes, anciãos e governantes judeus.

“Verdadeiramente o ponteiro mentiroso dos escribas gravou a mentira” (…) “desde o profeta até o sacerdote todos forjam a mentira (Je 8,8-10).

Foram os sacerdotes que perderam a fé, duvidando da Escritura e adorando Baal. O Deus invisível estava além das nuvens, distante. O ídolo, o demônio, lhes parecia mais próximo e acessível.

“Os sacerdotes não disseram: ‘Onde está o Senhor?’. Os depositários da lei não me conheceram, e os pastores prevaricaram contra mim, e os profetas profetizaram em nome de Baal, e seguiram os ídolos” (Je 2,8).

Ao invés de cuidar do povo, seus dirigentes o maltratavam e desencaminhavam. “O Senhor entrará em juízo com os anciãos de seu povo e com os seus príncipes; porque vós devorastes a minha vinha, e as rapinas feitas ao pobre encontram-se em vossa casa” (Is 3,14).

“Porque os pastores obraram loucamente, e não buscaram o Senhor; por isso não entenderam e todo o seu rebanho se dispersou” (Je 10,21).

“Foram confundidos os da casa de Israel, eles e os seus reis, os príncipes e sacerdotes, e os seus profetas, os quais diziam a um pau: ‘Tu és meu pai’; e a uma pedra: ‘Tu me geraste. ‘” (Je 2,26-27).

“Coisas espantosas e estranhas se tem feito nesta terra: os profetas profetizam a mentira, e os sacerdotes aplaudiam-nos com as suas mãos; e o meu povo amou essas coisas” (Je 5,30).

“E aos profetas de Jerusalém vi imitar os adúlteros (ou idólatras) e ir após a mentira; e fortificaram a mão dos malvados para que nenhum se convertesse de sua malícia” (Je 23,30).

“Porque dos profetas de Jerusalém é que se derramou a corrupção sobre toda a terra” (Je 23,15).

Esses textos curiosíssimos afirmam sempre que foram os chefes, os sacerdotes e os profetas que perderam o povo de Deus, acreditando na mentira (no singular) e adorando ocultamente os ídolos.

Não adiantava, porém, conspirar ocultamente, pois o Deus que tudo vê, conhece as maquinações secretas e os mais íntimos arcanos dos corações:

“Poderá alguém ocultar-se em lugares ocultos, sem que eu o veja? (…) Eu ouvi o que disseram os profetas, que em meu nome profetizavam a mentira (…) profetas que vaticinaram a mentira (…) os quais querem fazer que meu povo se esqueça de meu nome” (Je 23,24-27).

Portanto, os castigos infligidos por Deus ao Reino de Judá foram causados por uma apostasia oculta concertada pelos sacerdotes que pretendiam corromper o povo ensinando a mentira em nome do Deus da Verdade.

Que houve uma conspiração no sentido etimológico e próprio está declarado na Sagrada Escritura pelo profeta Isaías que registra estas palavras de Deus:

“Porque o Senhor Deus me falou assim, (tomando-me) com sua mão poderosa e avisando-me para não seguir pelo caminho deste povo dizendo: Não digais: Conspiração; porque tudo o que este povo diz é uma conspiração” (Is 8,12).

A finalidade dessa conspiração está explícita em Jeremias:

“E o Senhor me disse: Uma conjuração se descobriu entre os varões de Judá, e entre os moradores de Jerusalém. Tornaram às antigas maldades de seus pais, que não quiseram ouvir minhas palavras; e estes também foram após deuses estranhos para os servir; a casa de Israel e a casa de Judá romperam a aliança que eu fiz com seus pais” (Je 11,9-10).

A conspiração dos chefes de Israel e Judá foi feita para levar o povo eleito à idolatria, isto é, a cultuar o demônio.

“Por esta causa ouvi a palavra do Senhor, homens escarnecedores que dominais sobre o meu povo, que está em Jerusalém. Porque vós dissestes: Nós fizemos um concerto com a morte, e fizemos um pacto com o inferno (…) porque pusemos nossa confiança na mentira, e pela mentira fomos protegidos” (Is 28,14-15).

A conspiração dos dirigentes judeus no Antigo Testamento para levar o povo a adorar os ídolos foi selada com um pacto com o próprio inferno, isto é, com o demônio. A conspiração era diabólica porque visava levar à adoração do demônio e era dirigida por ele.

“E puseram os seus ídolos na casa em que o meu nome foi invocado para o profanarem” (Je 32,34). Pois ao demônio não basta ser adorado: ele quer profanar o Templo de Deus, fazendo colocar a abominação no lugar santo.

Todo esse mal era resultado de uma adesão consciente à mentira, uma vontade decidida a fazer o mal que levava os conspiradores a arquitetarem e estudarem o modo mais eficaz para levar o povo ao pecado.

“Jerusalém (…) confiou na mentira” (Je 13,25).

“Abraçaram a mentira e não quiseram voltar” (Je 8,5).

“Habituaram a sua língua a dizer a mentira; estudaram como haviam de fazer o mal.” (Je 9,5) e imitaram “os maus costumes das nações” (Je 10,2).

Por que dizem os profetas continuamente que os dirigentes judeus abraçaram, registraram e ensinaram a mentira, empregando o termo no singular?

Isto deve ser relacionado com a afirmação de Cristo, que chamou o diabo de “pai da mentira” (Jo 8,44), na ocasião de sua grande discussão com os fariseus, aos quais chamou de filhos do demônio, isto é, os membros da raça da serpente (Gn 3,15). Qual é essa mentira por excelência de que o demônio é pai?

Deus é a Verdade e, como Ele é um, há uma só Verdade. Nota essencial da fé verdadeira é a unidade (Ef 4,5-13). Ora, o demônio ataca a única fé com mil heresias diversas, pois que é próprio do erro a multiplicidade e não a unidade. Contudo, se estudarmos as heresias, veremos que há nelas algo subjacente comum a todas, a par de seu ódio e sua negação da Verdade única. Isso faz com que na multiplicidade infinda dos erros haja uma certa forma de unidade (unidade secundum quid), escondida sob os mitos e mentiras dos sistemas heréticos. Esse substrato comum, matriz de todos os erros, nega as verdades mais profundas e fundamentais a respeito de Deus, isto é, do Ser. O substrato comum a todas as heresias é a Gnose. Ela é a mentira por antonomásia. É a revolta antimetafísica.

O termo Gnosis, em grego, significa conhecimento. Essa doutrina pretende dar ao homem um conhecimento salvífico, redentor, ao lhe proporcionar:

1) O conhecimento da essência divina;

2) O da natureza secreta e divina do homem;

3) O conhecimento do que são o mal e o pecado. (cfr H. C. Puech, Enquête de la Gnose, Gallimard, Paris, 1978, vol. I, pp. 168-236; Robert M. Grant, La Gnose et les origines cheretiènes, Seuil, Paris, 1964, pp. 18-19).

A respeito da unidade gnóstica subjacente às diversas seitas heréticas convém ler o que diz S. Irineu no Adversus Haeresis, Migne, vol. VII; S. Hipólito de Roma, La Gnose et le temps, Gallimard, Paris, vol., p. 235; Serge Hutin, Les gnostiques, pp. 6-9; Robert M. Grant, op. cit., p. 17.

O que a Gnose pretende conhecer, antes de tudo, é a essência da divindade, ou seu processo interior.

Ora, nos Provérbios, sintomaticamente Deus previne contra essa pretensão, dizendo:

“Assim como não faz bem o mel àquele que o come em demasia, assim o que quer sondar a majestade (divina) será oprimido pela sua glória” (PV 25,27). Se Deus repreendeu essa pretensão, é que já nos tempos do Antigo Testamento havia entre os judeus quem procurasse “sondar a majestade divina”, como faziam os gnósticos. “Sabemos que já no período do Segundo Templo uma doutrina esotérica era ensinada em círculos fariseus” (G. G. Scholem, A mística judaica – Major trends in jewish mysticism – Perspectiva. S. Paulo, 1972, p. 41).

Para a Gnose, Deus não é aquele que é (Ex 3,14), e sim um constante vir-a-ser. Ele seria a mudança. Ora, é interessante que Deus tenha prevenido os judeus contra essa mentira dizendo: “Pois eu sou o Senhor e não mudo“, “Ego enim Dominus et non mutor” (Ml 3,6).

Para várias seitas gnósticas, a divindade original é chamada contraditória ou dialeticamente de Tudo e Nada ao mesmo tempo. Na Grécia, essa divindade era o Pan (tudo) e Bythos (o vazio). Na Índia é Brahman (tudo) e o Nirvana (nada absoluto). O Bhagavad Gita diz que “essa divindade é ser e não-ser, é aquele que está além” (Bhagavad Gita, XI, 37).

“Eu sou o ser e o não-ser” (Bhagavad Gita, IX, 19).

Nos fragmentos heraclitianos se lê: “Um único ser, o único sábio, quer e não quer ser chamado Zeus” (Heráclito, Frag. 32, Diels.).

O gnóstico Basílides dizia que o nome do que existia e não existia era nada (S. Hip., Philosophoumena, I, 21, VII, 20-21, vol. II, p. 103).

Na Cabala se ensina que o Em-Sof é o nada (cfr. G. G. Scholem, Major trends in jewish mysticism – A mística judaica, Perspectiva, S, Paulo, 1972, pp. 12-13). G. G. Scholem diz que “ser e não-ser não são senão diferentes aspectos da realidade divina que no fundo é um super-ser” (G. G. Scholem, Les origines dela Kabbale, p. 448).

Ora, é curioso notar que Deus repreende, no Antigo Testamento, aqueles que confiaram no nada:

“Os vossos lábios falaram a mentira e a vossa língua profere a iniquidade. Não há quem invoque a justiça, nem há quem julgue segundo a verdade, mas confiam no nada” (Is 59,3-4).

A Gnose afirma que o homem possui no mais íntimo de seu ser uma partícula divina, uma centelha de Deus, uma Funkenlein, como dizia mestre Eckhart. Por isso, a essência última do homem seria divina. O homem seria um deus decaído que era preciso libertar das prisões da materialidade, da racionalidade, da moral.

Quando todas as partículas divinas esparramadas pela natureza de novo se reunirem, a divindade voltaria a existir e ela teria a forma de um Homem. Por isso, para o maniqueísmo, o Homem primordial era o próprio Deus:

“Antes de tudo, convém sublinhar que o Homem primitivo é apenas uma hipóstase do Pai da Grandeza, o próprio Deus (…).” O Homem primitivo é, portanto, idêntico a esta Alma (de Deus) ou, como diz o maniqueu Faustus a S. Agostinho, ele é feito “da substância de Deus, sendo isto mesmo que é Deus” (H. C. Puech, Le manicheisme, in Histoire Générale des Religions, vol. III, p. 96).

Na Índia, o deus Supremo, Brahman, era chamado de Homem (Puruska).

“Tu és o imperecível supremo que é preciso conhecer. Tu és o supremo apoio de todo o universo, tu és o eterno guardião da lei antiga, para mim, penso, tu és o sempiterno Homem” (Bhagavad Gita, X, 12).

“Tu conheces a ti mesmo, por ti mesmo, ó Homem supremo, fonte dos seres, Senhor das criaturas, Deus dos deuses, Regedor do mundo” (Bhagavad Gita, X, 15).

“Tu és o deus principal. Ó Homem antigo (…) tu permeias o Universo, ó forma infinita” (Bhagavad Gita, XI, 38).

A Cabala, por sua vez, identifica o Deus manifestado nos sefirots como sendo o Homem Primordial, o Adam Kadmon. Para provar isto, um dos argumentos usados é que, segundo o método da guematria, as letras que formam o nome de Deus – iod, he, vau, he (IHWH) – tem valor numérico de 45. Ora, as letras que formam a palavra Adam (alef, dalet, mem) dão um total de 45 também. Logo (??), Adão é igual a Deus pois ambos valem 45 (cfr. G. G. Scholem, A cabala e seu simbolismo, p. 125).

O misterioso livro gnóstico judaico, o Schiur Komá, descreve o corpo de Deus como sendo o de um imenso homem que se identifica também com o Universo. Assim Deus, Universo e Homem seriam uma coisa só (Cfr. G. G. Scholem, Major trends in jewish mysticism – tradução portuguesa A mística judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 64-65).

Portanto, a mesma divindade que textos de religiões e autores gnósticos chamam de Nada, intitulam também Homem.

Vimos já que Deus, em Isaías, exprobou os seguidores da mentira que “confiam no nada” (Is 59,3-4). Esse mesmo profeta clama a palavra de Deus contra os judeus:

“Cessai, pois, de confiar no homem, em cujas narinas (não) há (senão) um sopro, porque somente Deus é o que é excelso” (Is 2,22).

Não se diga que há nesse texto apenas e tão somente um conselho de ordem moral. Esse versículo é a conclusão de um texto acerca das causas de humilhação dos maus no dia do juízo, no qual Deus repreende a casa de Jacó – o povo judeu – por estar cheio de superstições como os filisteus (v. 6); de ter enchido o país de ídolos que serão esmigalhados no dia do juízo (v. 10-18) e que então os que traíram Deus lançarão fora os seus ídolos (v. 21).

O versículo citado opõe a confiança no homem à confiança em Deus excelso. Ele associa idolatria e confiança no Homem. Deus, por Isaías, clama então contra os que “confiam no Nada” e contra os que confiam no Homem, exatamente no Nada e no Homem, que Gnose e Cabala afirmam ser nomes de Deus.

Para a Gnose, a evolução divina se faz por um processo dialético, visto que Deus e todo ser são formados por dois princípios contrários e iguais.

Para Heráclito, “Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome” (Diels. 12 B, 67).

“Vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice são a mesma coisa: são muitas metamorfoses” (Diels. 12 B, 88).

Vimos que para o Bhagavad Gita Deus é “ser e não ser”, ao mesmo tempo (Bhagavad Gita, XII, 37; IX, 19). Sabe-se bem que no maniqueísmo, o dualismo de Deus e o dualismo metafísico são claramente ensinados (cfr. H.C. Puech, Le Manicheisme, in Histoire Générale de Religions, vol. III, p. 96, 1ª coluna).

Como a Gnose, a Cabala afirma que em Deus há dois princípios opostos: o do bem e o do mal (cfr. G. G. Scholem, A mística judaica, ed. cit., pp. 237-291). “Tudo o que é demoníaco tem sua raiz em alguma parte do mistério de Deus” (G. G. Scholem, A mística judaica, p. 240). Essa noção dualista de Deus foi explicitada mais claramente pelo sistema cabalista de Isaac Luria de Safed e por Natham de Gaza (cfr. G. G. Scholem, Sabbatai Sevi, The mystical Messiah, pp. 301-302, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1975).

Em consequência, decorrem daí não só um dualismo metafísico, que afirma a igualdade de contrários, como também um dualismo dialético no campo da moral, que faz identificar santidade e iniquidade, virtude e pecado. A Mischnah (Berahot IX, 5) afirma que se deve amar a Deus de todo o coração, isto é, com os bons e maus impulsos.

Man is bouns to bless (God) for the evil even as he blesses (God) for the good, for it is written. And thou shalt love the Lord thy God with all thy heart and with all thy soul, and with all thy might. (Dt 6,5). With all thy heart (lebab) — with both thine impulses, thy good impulses and thine evil impulses.” (The Mischnah, Oxford University Press, Oxford, 1980, 1ª ed., 1933, trad. Herbert Dowley).

O dualismo metafísico e a moral dialética próprios da Gnose e da Cabala fazem identificar ser e não ser, bem e mal, luz e trevas, verdade e mentira, virtude e pecado. Ora, a prova de que já no Antigo Testamento essa dialética dualista gnóstica se infiltrara secretamente entre os judeus está em Isaías, onde o Deus que exprobou a adesão dos escribas e sacerdotes à mentira, diz: “Ai de vós que ao mal chamais bem, e ao bem mal, que tomais as trevas por luz e a luz por trevas, que tendes o amargo por doce e o doce por amargo.” (Is 5,20).

Essa inversão completa de verdade e de moral perpetuou-se secretamente entre os judeus até o tempo de Cristo e depois no Talmud, que afirma “que o mais perfeito cumprimento da lei está na sua violação”.

Segundo o messianismo cabalista, o reino do Messias trará a abolição da lei e mesmo a sua inversão, tornando lícito o que era proibido (cfr. G. G. Scholem, A mística judaica, p. 181 e p. 314).

Na era messiânica haveria “the abolition of the norm of permitted and forbidden pure and impure” (G. G. Scholem, Sabbatai Sevi, The Mystical Messiah, p. 321). Se havia uma conspiração de fundo gnóstico já no Antigo Testamento, fica claro porque Nosso Senhor Jesus Cristo preveniu os fariseus dizendo-lhes: “Não julgueis que vim destruir a lei ou os profetas, mas sim (para os) cumprir. Porque em verdade vos digo que, enquanto não passar o céu e a terra, não desaparecerá da lei um só jota ou um só ápice, sem que tudo seja cumprido” (Mt 5,17-18). E ele condena a seguir aqueles que violam mesmo um dos mínimos mandamentos da lei e “ensinam assim os homens” (Mt 5,19).

Finalmente, Cristo afirma que os fariseus, por causa de sua tradição, anularam a lei: “Vós, por causa de vossa tradição, tornastes nulo o mandamento de Deus” (Mt 15,3). “É em vão que me honram, ensinando doutrinas e mandamentos de homens” (Mt 15,9).

Ora, a Cabala judaica pretendia ser uma doutrina revelada por Deus a Moisés e transmitida por tradição oral, tanto que Cabala quer dizer tradição. Não se estranhe então a afirmação de que já no Antigo Testamento, os rabinos judeus haviam abandonado a Verdade revelada para seguir a mentira da Gnose (que entre os judeus se chama Cabala). Os textos da Escritura que citamos indicam isso. Mas, para os que confiam no Homem, veja-se a confirmação do que dizemos na palavra de um homem que é o maior conhecedor de Cabala em nossos dias:

“Sabemos que já no período do Segundo Templo uma doutrina esotérica era ensinada em círculos farisaicos.” (G. G. Scholem, A mística judaica, p. 41).

* * *

Por tudo isso, fica bem claro que os judeus se desviaram de sua missão e abandonaram a Revelação e a Lei de Deus devido a uma conspiração diabólica dirigida pelos sacerdotes e escribas.

Resta perguntar: terá essa conspiração diabólica, visando perder as almas, cessado com o advento de Cristo? Ou terá ela se tornado mais oculta ainda, mais feroz e mais diabolicamente hipócrita?

Os que negam a existência da “conspiração” dos maus na História, ou são ingênuos, ou… são membros dela.