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Despretensiosas Considerações de Leituras

Ir. Anna Maria Fedeli

DESPRETENSIOSAS CONSIDERAÇÕES DE LEITURAS

 

Na Pascendi, que acabo de reler, São Pio X fala, ao tratar da ação dos modernistas, segundo a tradução oficial em português, publicada no site do Vaticano[1], nos “perniciosos conselhos” que os “mais perigosos inimigos da Igreja” “tramam” “já não fora, mas dentro da Igreja”.

Como a acepção de “conselho” que cabe no trecho é a de “assembleia de pessoas que deliberam sobre certos assuntos”, muito mais que a de “opinião, parecer sobre o que convém fazer”[2] e como quem “trama”, fá-lo de forma oculta e traiçoeira, o trecho, sem dúvida, parece aludir a reuniões secretas mantidas por eclesiásticos – “dentro da Igreja” – para planejar sua ação de substituição da “verdade católica” por sua perniciosa doutrina, cujo núcleo é, segundo São Pio X, a “imanência vital”.[3]

Portanto, São Pio X denuncia a existência de uma sociedade secreta, formada por padres, dentro da Igreja, com objetivo de substituir a doutrina da Igreja por uma doutrina contrária a essa.

Que é essa a interpretação correta do texto papal, só se confirma quando se lê o Motu Proprio Sacrorum Antistitum, publicado por São Pio X em 1º. de setembro de 1910, ou seja, três anos após a Pascendi:

Nenhum bispo ignora, acreditamos, que uma raça perniciosíssima de homens, os modernistas, mesmo depois de a encíclica Pascendi Domini Gregis ter-lhes tirado a máscara, não desistiu de seu propósito de perturbar a paz da Igreja. Eles não cessaram, com efeito, de procurar e de agrupar em uma associação secreta novos adeptos e de inocular com eles, nas veias da sociedade cristã, o veneno de suas opiniões, pela publicação de livros e de brochuras de que eles suprimem ou disfarçam o nome dos autores.[4]

Aqui o texto é claríssimo: “clandestinum foedus”, “associação secreta”, em português corrente, “sociedade secreta”. Ora, como é evidente e muito claramente mostra o grande especialista em sociedades secretas, A. H. de Oliveira Marques, as sociedades secretas quando condenadas ou perseguidas, não se dissolvem, apenas se tornam ainda mais secretas para continuar a agir[5].

É verdade que muitos historiadores afirmam que os modernistas, após a condenação de São Pio X, submeteram-se e desapareceram e, com eles, o Modernismo.

Jean Rivière, por exemplo, em seu famosíssimo Le Modernisme dans l’église, não hesita em asseverar que “com o juramento antimodernista[6] terminou a história da crise doutrinária que grassava havia dez anos. A partir desse momento, tudo autoriza a considerar o modernismo como desaparecido”.[7]

Embora, em português, o termo “desaparecido” possa ser sinônimo de “oculto” – o que o Modernismo se tornou, sem dúvida – a tese do autor é clara. Desaparecido aqui é sinônimo de aniquilado, destruído.

E para apoiar sua tese, Rivière cita autoridades. E autoridades de simpatias modernistas, o que, segundo ele, daria mais peso a suas opiniões. Houtin, por exemplo, que afirma:

Um olhar lançado sobre a catolicidade, em 1911, oito anos depois da eleição de Pio X, bastava para constatar que o Soberano Pontífice tinha nela inteiramente restabelecido a ordem teológica. Em quase todo lugar ele tinha conseguido esmagar os inovadores.[8]

E também Schnitzer: “Na França o modernismo parece inteiramente morto; na Itália, também, ele não se mexe mais; na Alemanha, ele voltou à ordem.”[9]

Ora, ao contrário do que quer Rivière, o fato de serem até líderes modernistas, como Schnitzer, que afirmam que o modernismo morreu não prova absolutamente a sua destruição. Pelo contrário. Claro que o que eles queriam é que os católicos – e o próprio Sumo Pontífice, se fosse possível enganá-lo – pensassem que o inimigo estava morto ou, melhor ainda, nunca tivera vida.

É, aliás, uma tática corrente das organizações secretas, quando denunciadas, procurarem fazer crer que nunca existiram ou, pelo menos, que se dissolveram.[10]

Isso mesmo afirmava, em um interessantíssimo artigo escrito para comemorar os cinquenta anos do Sacrorum Antistitum, Monsenhor Joseph Clifford Fenton, que atuou como perito do Cardeal Otavianni no Concílio Vaticano II:

No Sacrorum antistitum São Pio X assevera muito claramente da existência de uma aliança secreta ou um foedus clandestinum entre os modernistas de seu tempo. Por qualquer que seja a razão, essa verdade, observada e atestada por São Pio X, e claramente evidente para qualquer pessoa que se dê ao trabalho de estudar a história do movimento modernista, sempre foi singularmente desagradável para os simpatizantes do Modernismo e para os Modernistas. Parece ter sido precisamente com o objetivo de causar confusão sobre esse ponto em particular que os partidários do Modernismo tenham tido extremos cuidados para iludir as pessoas, fazendo-as imaginar que a oposição a Loisy, a Von Hügel e a seus comparsas, dentro da Igreja Católica, era fundamentalmente obra de uma secreta aliança de sinistros e reacionários católicos.[11]

Ou seja, o interesse dos modernistas era fazer crer que sua sociedade secreta nunca existira, que nem sequer o Modernismo existira ou que, se acaso tinha existido, tinha se desintegrado com as condenações de São Pio X.

Coisa muito difícil de acreditar e em que mais bem informados nunca acreditaram. Outro perito do Concílio Vaticano II, o Padre Berto, por exemplo,

estava persuadido da persistência dessa sociedade secreta. Ele o afirmava mais fortemente que nunca próximo ao fim do Concílio, em 1965: ´Há os cegos, sim, há os surdos, e medíocres e covardes. Mas nem cegueira, nem surdez, nem mediocridade, nem covardia fornecem a explicação exaustiva do que nós vemos. É preciso que haja “outra coisa”, e essa outra coisa só pode ser a persistência do modernismo no sentido da Pascendi, a persistência da sociedade secreta dos modernistas´.[12]

Sem tratar das causas daquilo a que se assistia, e muito menos de sociedades secretas modernistas, também o Cardeal Ratzinger afirma em suas memórias que os eventos do Concílio eram espantosos, preocupantes – “a mudança no clima eclesial, que ia se manifestando cada vez mais, me inquietou profundamente”[13] – e, justamente, provocadas por uma inexplicável e inexplicada sujeição de determinados bispos a determinados teólogos:

Ao voltar de Roma eu encontrava o ambiente eclesiástico e teológico cada vez mais eufórico. Aumentava a impressão de que nada na Igreja estava firme e tudo podia ser revisto. Cada vez mais o concílio aparecia como um grande parlamento, que podia mudar tudo e a dar a tudo uma nova forma, de seu jeito. […]

O que estava acontecendo, porém, era de um alcance ainda mais profundo. Se os bispos, lá em Roma, podiam modificar a fé (pois assim parecia ser), por que, afinal, somente eles? Em todo caso, ela podia ser mudada; assim parecia, contrariamente a tudo o que se pensara até então; parecia não estar mais subtraída ao poder humano de decisão; era determinada por ele, ao que tudo indicava. Sabia-se, entretanto, que os bispos aprendiam com os teólogos aquelas novidades que agora apresentavam; para os fieis era um fenômeno curioso que seus bispos parecessem mostrar em Roma um rosto diferente daqueles que tinham em casa. Pastores, que até então eram considerados rigorosamente conservadores, apareciam de repente como porta-vozes do progressismo – mas isso vinha de sua própria cabeça? O papel que os teólogos tinham assumido no Concílio criava, de forma cada vez mais clara, uma nova autoconsciência entre os doutos, os quais agora se entendiam como os verdadeiros administradores do conhecimento, e, por isso, não podiam mais aparecer como subordinados aos pastores.[14]

Ninguém ignora que essa reviravolta, essa tomada de poder pelos teólogos, mais que consentida, promovida por alguns bispos, fora cuidadosamente preparada em reuniões sigilosas antes e durante o Concílio. Com efeito, como afirma Wiltgen,

O público quase não ouviu falar da poderosa aliança estabelecida pelas forças do Reno [os teólogos e bispos da Alemanha, Áustria, Suíça, França, Holanda, banhados pelo Reno, e da vizinha Bélgica] e do papel considerável que ela representou na elaboração da legislação conciliar.[15]

Na mesma obra o autor dá vários exemplos de como, em comissões não oficiais, alguns bispos e alguns teólogos tinham preparado com antecedência e com minúcia sua ação durante o concílio.

Dezessete bispos holandeses, por exemplo, reuniram-se para discutir os esquemas prévios enviados por Roma a todos os bispos do mundo. Decidiram que prepararia sobre eles um comentário que seria largamente difundido entre os Padres Conciliares, comentário esse que acusava de fraqueza todas as constituições preparadas por Roma e elogiava enormemente o esquema sobre a Liturgia, único dos esquemas de caráter progressista, pois a Comissão litúrgica preparatória era dominada por expoentes do movimento litúrgico.[16]

“De fato”, esclarece Wiltgen, “o autor único do comentário, publicado a coberto do anonimato [sempre o anonimato, já denunciado por São Pio X], era o Pe. Schillebeeckx, O.P., de origem belga, professor de dogma na Universidade Católica de Nimègue e teólogo da hierarquia holandesa. Seu texto criticava violentamente as quatro constituições dogmáticas, que ele acusava de representar apenas uma escola de pensamento teológico. Só o último esquema [o da liturgia] era, segundo ele, uma verdadeira obra prima.”[17]

Não é uma grande coincidência o fato de que todos os esquemas prévios tenham sido rejeitados durante o Concílio, com exceção do esquema sobre liturgia?

Tudo indica, portanto, que, longe de ter desaparecido, as alianças, conselhos, ou sociedades secretas dos modernistas – que já durante o Concílio eram chamados de progressistas[18] – continuavam ativíssimas.

Aliás, tratando do tema da sociedade secreta modernista num estudo recentíssimo, Roberto de Mattei conclui:

Os historiadores ignoram o problema levantado por São Pio X e apresentam o Modernismo como uma corrente brotada espontaneamente do curso irrefreável da história. Quem leva a sério as palavras do Pontífice, não pode deixar de pôr-se a pergunta que levanta Jean Madiran: “Em que data a associação secreta dos modernistas cessou de existir? Não se pode sequer perguntar se por acaso ela não se teria ulteriormente “reconstituído”; para “reconstituir-se, ela tem que ter cessado de existir”; mas ignora-se se e quando ela tenha terminado. Mas não apenas se ignora a resposta; finge-se ignorar a pergunta.[19]

Todas essas considerações, baseadas quase inteiramente em antigas leituras, ocorreram-me em consequência da uma leitura nova. A leitura, ainda em curso, de uma biografia do Padre Auguste Valensin, obra velha já de cinquenta anos, mas que eu nunca tinha lido[20].

Comprovando as afirmações de São Pio X – que fala de “publicações em que eles [os modernistas] suprimem ou disfarçam os nomes dos autores” – , é sob as iniciais M.R. e H.L. e sem assinar o Prefácio que escrevem, Marie Rougier e o, então padre, Henri de Lubac, pai da Nova Teologia, condenada por Pio XII na encíclica Humani Generis, de 1956.

E quem é o Padre Valensin? Menos conhecido do público em geral, o padre Valensin foi um Jesuíta, ordenado em 1910, professor de Filosofia na Faculdade Católica de Lyon e cuja importância como elo entre os modernistas e os criadores da Nova Teologia foi fundamental.

Embora selecionados com o espírito de uma hagiografia, espírito que os pequenos trechos que conectam as citações de Valensin reforçam, os textos escolhidos para publicação por De Lubac, contam muitos fatos interessantes e curiosos.

Alguns sem relação com problemas doutrinários, como, por exemplo, a dolorosa provação familiar de Valensin ao descobrir, já noviço Jesuíta – e irmão de um padre na mesma Companhia, já próximo da profissão solene, o Padre André Valensin – que seu pai era um judeu convertido, que, tendo escondido esse fato a seus filhos durante toda a vida, teve-o revelado por sua morte, já que os procedimentos legais necessário nessa ocasião obrigaram ao exame de documentos.

Naquele tempo – 1902 – as constituições Jesuítas proibiam a admissão na Ordem Jesuíta de qualquer pessoa de raça judia, desde um decreto promulgado no século XVI por uma Congregação Geral da Ordem. O impedimento era dirimente e foi dirimido, sem que haja nisso nenhum desdouro para os dois irmãos.

O que soa estranho, no entanto, é o fato de que o Padre Auguste Valensin, que segundo De Lubac “devia ter por sua raça um interesse cada vez mais profundo”, a tal ponto  levar esse “interesse” que, “em seu leito de morte, encontrará subitamente uma força extraordinária para se proclamar, como São Paulo, Judeu filho de Judeu”.

A comparação com São Paulo não parece cabível, pois São Paulo quando trata desse tema na Segunda Epístola aos Coríntios[21] é para desqualificar outros pregadores, judeus como ele, de raça, que queriam introduzir entre os cristãos práticas judaizantes. E tanto é verdade que ele, que só se gloria na Cruz de Cristo[22], se sente completamente desvinculado dos judeus que logo em seguida fala deles usando não a primeira pessoa do plural – nós, os nossos – mas a terceira, eles: “Cinco vezes os judeus me deram os quarenta açoites menos um.”[23] E, na hora da morte, é cristão, que, com o sangue, São Paulo se proclama.

Mas, enfim, esse é um fato que, embora curioso, nada tem a ver com o problema de que vínhamos tratando. Muito mais do que isso, o que chama atenção na biografia hagiográfica do Padre Valensin são sua amizades, suas ligações.

Por exemplo, Blondel, de quem se torna aluno na Universidade de Aix em 1897, aos dezoito anos. E de quem divulgará a obra, tomando o cuidado de envolvê-la em brumas, para evitar as condenações:

De ainda maior gravidade são as cumplicidades de que se beneficia o filósofo modernista [Blondel] para espalhar discretamente sua doutrina: para responder às acusações argumentadas dos grandes teólogos romanos, ele pode, sobretudo, contar com o Padre Auguste Valensin (Jesuíta) que protege a filosofia blondeliana mergulhando-a em neblina; ele não hesita em usar citações truncadas de Blondel, fazendo cuidadosamente desaparecer todas as passagens heterodoxas. Existem, assim, duas versões de Blondel: uma versão oficial, revista e corrigida pelo Padre Valensin, para poder enfrentar sem perigo as controvérsias com os teólogos romanos, e uma versão clandestina, abundantemente difundida (por baixo do pano) nos seminários, nas casas de formação religiosa e nas universidades.[24]

Sobre os anos de formação de Valensin, quando se inicia seu contato com Blondel, diz De Lubac: “O mestre desses anos é Maurice Blondel. Sabe-se pela Correspondência publicada os vínculos que logo se deviam estabelecer entre eles.”

Vínculos profundos, sem dúvida, pois no momento de decidir sobre sua vocação – que De Lubac atribui, sem citar sua fonte, à influência de A Ação, o livro de Blondel cuja condenação, que ameaçava sempre, ele temeu toda vida[25], a ponto de impedir até sua morte o lançamento da segunda edição[26] – nesse momento, depois de consultar por carta o Padre Bremond, Valensin, a conselho deste, escreve para Blondel.

O Padre Bremond, o primeiro consultado, morava em Lyon, tinha feito seus estudos como Jesuíta na Inglaterra, pois os Jesuítas estavam banidos da França. De onde ele e o jovem Valensin se conheciam? Que relações tinham? Não se diz. Bremond foi professor de Teilhard de Chardin, e considerava-o brilhante. Teria sido também professor de Valensin? Talvez. Bremond era de Aix.

Bremond era de Aix. E era modernista. Violentamente modernista. Grande amigo de Tyrrell. Tyrrel, que era calvinista, converteu-se ao catolicismo em 1879, entrou na Companhia de Jesus em 1880, foi ordenado em 1891, expulso da ordem Jesuíta em 1906 e excomungado em 1907. Excomungado vitando. Mas Bremond foi a seu enterro e fez nele um pequeno discurso.

Claro, era seu amigo. Amicíssimo. Tanto que foi para ele que Tyrrel escreveu, sem nenhum temor:

“Roma não pode ser destruída num dia, mas é preciso fazê-la cair em pó e em cinza de modo gradual e inofensivo; então nós teremos uma nova religião e um novo decálogo”.

Diz-me com quem andas e eu te direi quem és.

Bremond era também amicíssimo de Von Hügel, um dos primeiros defensores do ecumenismo e, segundo Loisy um importante “agente de ligação”[27] entre os modernistas da Inglaterra, da França e da Itália.

E Bremond, por sua vez, abandonará, também ele, a ordem Jesuíta, em 1904.

Mas Bremond aconselha Valensin, que lhe pedira conselho. Sabe que o jovem pensa em ser religioso. E hesita… “sob que hábito? Branco ou preto? A priori… eu tenderia para o branco – um dos meus amores também…”[28]

Vê-se que o discernimento de Bremond quanto a vocações era grande. Na vida religiosa, sem hesitar, ele só supõe que Valensin possa escolher entre Jesuítas e Dominicanos. E são tantas as ordens e congregações… Por que seria? Talvez porque era a elas que pertenciam, em grande parte, os grandes líderes modernistas… Hesita e encoraja Valensin a consultar Blondel.

Na carta a Blondel, Valensin interroga:

Jesuíta, Dominicano, Oratoriano, até Dominicano ensinante; – eu pensei longamente nos dominicanos – pouco nos Jesuítas; eu não conheço os Oratorianos.[29]

Curioso. Se ele não conhece os Oratorianos, por que, entre tantas e tantas ordens e congregações, os Oratorianos lhe vieram à cabeça? Será que seus amigos tinham amigos nos Oratorianos? Não sei.

O que se sabe é que o Padre Laberthonnière era Oratoriano. Modernista. Amigo de Blondel, diretor dos Annales de philosophie chrétienne, onde o filósofo escrevia, desenvolvendo as teses que formulara em L’Action.

O que se sabe, também, é que foi entre os Oratorianos – talvez por pura caridade, certamente – que foi recebido e viveu até a morte o Padre Primo Vanutelli, que fora modernista, mas que, abjurando seus erros, prestara o juramento antimodernista exigido por São Pio X. Mas jurara falso. Segundo seu executor testamentário, Francisco Gabrielli, que publicou em 1978 o testamento de fé do padre Vanutelli[30],

o seu posto é entre aqueles modernistas que permaneceram, depois da condenação, dentro da Igreja, que se dobraram à sua disciplina, mas mantendo no coração as suas íntimas convicções.[31]

É verdade. Manteve, em seu coração, até o fim, suas convicções. Convicções completamente contrárias à doutrina da Igreja. O próprio Vanutelli se pergunta, em certo ponto de seu “testamento espiritual” em que ele nega até mesmo a divindade de Cristo:

E se alguém que lesse estas folhas me perguntasse: ‘E que sobra, então do Cristianismo, se Jesus não é Deus?, respondo-lhe desde já: Sobra pouco, pouco; Deus, o anseio e a alegria do universo.[32]

Bem, mas voltemos a Valensin. Afinal, o Padre Vanutelli nem era Oratoriano. Só vivia com eles. E Valensin sequer conhecia os Oratorianos… Hesitava principalmente entre Jesuítas e Dominicanos, com tendência para os Dominicanos, que Bremond também preferia.

Mas Blondel preferiu os Jesuítas…Valensin foi fazer um retiro com os Dominicanos e decidiu: será Jesuíta.

E foi Jesuíta.

Como Jesuíta será amigo e protetor de Teilhard, será mestre de De Lubac, o qual, por sua vez, será o pai da Nova Teologia que, condenada por Pio XII, terá seus mestres e suas doutrinas reabilitadas no Concílio Vaticano II. A influência do pensamento de De Lubac no Concílio é incalculável.

É verdade que, segundo Wiltgen, durante as votações do Concílio Vaticano II,

A posição dos bispos de língua alemã sendo regularmente adotada pela aliança europeia, e a posição da aliança sendo, o mais das vezes, adotada pelo Concílio, bastava que um teólogo fizesse sua opinião ser adotada pelos bispos de língua alemã para que o Concílio as fizesse suas. Ora, tal teólogo existia: era o Padre Karl Rahner S.J.

Em princípio, o Padre Rahner era apenas o teólogo do Cardeal König. De fato, numerosos membros das hierarquias alemã e austríaca recorriam a suas luzes… Durante uma conversa privada, o Cardeal Frings declarou que o Padre Rahner era ‘o maior teólogo do século’.

Mas é verdade também, que, segundo afirmava o Osservatore Romano em oito de setembro de 1991, ao louvar De Lubac como sendo “sem sombra de dúvida um dos maiores fundadores da teologia católica contemporânea”, que “nem Karl Rahner nem muito menos Hans von Balthasar seriam pensáveis sem ele.[33]

Como se vê, uma cadeia completa, sem elo faltando, de pessoas e de ideias, do Modernismo ao Concílio Vaticano II. Uma corrente em que os elos, embora muitas vezes invisíveis para o grande público católico, sempre se mantiveram bem firmes, bem coesos.

Concluímos aqui estas reflexões. São apenas simples – despretensiosas –  reflexões de leitura que oferecemos a nossos leitores.

Claro, não se trata de uma demonstração acadêmica. Muito mais, de uma conversa entre amigos, que se dizem, simplesmente, o que lhes parece.

Mas há teses acadêmicas sobre o tema. Não, infelizmente, sobre a questão da sociedade secreta modernista, levantada por São Pio X e cuidadosamente enterrada pelos modernistas.

Mas sobre a questão das ligações, pessoais e doutrinárias.

O historiador Jürgen Mettepingen publicou em 2010 um estudo sobre a Nova Teologia. Um estudo que já comprei, mas ainda não li, e que, pelo índice, parece interessantíssimo. O nome do livro é Nova Teologia – Herdeira do Modernismo, precursora do Vaticano II.[34]

O título promete. Quem sabe possa ser ocasião de novas, e igualmente despretensiosas, reflexões.

São Paulo, 14 de janeiro de 2011.
Festa de Santo Hilário de Poitiers, que defendeu a divindade de Cristo.

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[1]http://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis_sp.html 13.01.2011.

[2] São os dois sentidos que o Dicionário Aurélio atribui ao termo.

[3] Para uma compreensão da importância doutrinário do imanentismo, ver FEDELI, Orlando. A Religião do Vaticano II – Parte II in www.montfort.org.br.

[4] PIO X, Santo. Motu Proprio Sacrorum Antistitum. Acta Apostolicae Sedis, ano II, v. II, n. 17, p. 44. Tradução nossa.

[5] Cfr. OLIVERIA MARQUES, A. H. História da Maçonaria em Portugal – v. I – Das Origens ao Triunfo. Cap. I – Da origem às primeiras perseguições, p. 21 e ss.

[6] Publicado em apêndice ao Motu Proprio Sacrorum Antistitum, que citamos acima.

[7] RIVIÈRE, Jean. Le Modernisme dans l’Église. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1929, p. 538.

[8] HOUTIN, A. Histoire du Modernisme Catholique. p. 385, apud RIVIÈRE, op. cit. p.538.

[9] Apud RIVIÈRE, op. cit. p.538.

[10] Cfr. OLIVEIRA MARQUES, ibidem.

[11] FENTON, Joseph Clifford. The Sacrorum Antistitum and the background of the oath against Modernism in The Ecclesiastical Review. Outubro, 1960, p. 244. Tradução minha

[12] CHAMPROUX, Anne Isabelle et alii. La compagnie De Lubac in Savoir e Servir, tomo 56 p. 81. Tradução minha.

[13] RATZINGER, Cardeal Joseph. Lembranças de minha vida. Autobiografia parcial (1927-1977). São Paulo: Paulinas, 2007. pp. 113-114.

[14] Idem, pp. 112-113.

[15] WILTGEN, Pe. Ralph M. Le Rhin se jette dans le Tibre – Le Concile Inconnu. Paris: Editions du Cédre, 1976. p. 7. Tradução minha.

[16] Cfr. DE MATTEI, Roberto. Il concilio Vaticano II – Uma storia mai scritta. Torino: Lindau, 2010, p. 238. Tradução minha.

[17] WILTGEN. Op. cit., p. 23. Tradução minha.

[18] Sobre essa identificação entre Modernismo e Progressismo, além de ligações históricas, pessoais, se poderia dizer, fáceis de constatar, ver, para os aspectos doutrinários, MESSINEO, Pe. Antonio. Civiltà Cattolica. “Il progressismo contemporâneo”, q. 2541 (1956), pp. 225-238, apud DE MATTEI, op.cit. p. 96.

[19] DE MATTEI, Roberto. Il concilio Vaticano II – Uma storia mai scritta. Torino: Lindau, 2010.

[20] M.R. e H.L. ( Marie Rougier e Henri de Lubac). Org. Auguste Valensin – Textes et Documents Inédits. Paris: Aubier Éditions Montaigne, 1961. Todos os textos citados são de minha tradução.

[21] Cfr. 2Cor 11, 22.

[22] Cfr. Gl 6, 14.

[23] 2Cor 11, 24.

[24] Apud CHAMPROUX, op. cit., p. 52.

[25] Porque fazia questão de continuar dentro da Igreja, para poder continuar seu trabalho de conquista dos intelectos para o Modernismo. Numa carta a De Lubac, que o censurava por timidez na exposição de suas ideias, ele diz: “ quando, há mais de quarenta anos, eu abordei problemas para os quais não estava suficientemente armado, reinava um extrinsecismo [a doutrina de que a revelação é exterior, de que “a Fé vem pelo ouvido” (Rm 10, 17)] intransigente e seu tivesse dito então tudo o que você deseja, eu me teria acreditado temerário e teria comprometido todo o esforço a tentar, toda a causa a defender, enfrentando censuras que teriam sido inevitáveis e, certamente, retardantes. Era preciso ter tempo para amadurecer meu pensamento e cativar os espíritos rebeldes.” Apud CHAMPROUX, op.cit. p.52.

[26] Cfr. LÉTROUNEAU, Alain. L’herméneutique de Maurice Blondel: son émergence pendant la crise moderniste. Montréal: Edition Bellarmin, 1998. Blondel et la crise moderniste, pp. 16 e ss. O que Blondel temia era a condenação nominal de sua obra. O imanentismo, que ele defende, foi condenado por São Pio X na Encíclica Pascendi, como sendo o núcleo do Modernismo.

[27] Cfr. NEDONCELLLE, Maurice. La pensée religieuse de Friedrich von Hügel. Paris: Vrin, 1935 p. 75 apud DE MATTEI, op. cit. p. 72.

[28] DE LUBAC. Op. cit. p. 19.

[29] Idem, ibidem.

[30] GABRIELI, Francesco. Ed. Il testamento di fede di don Primo Vanutelli in Centro Studi per la Storia del Modernismo, Fonti e Documenti, no. 7 (1978), pp. 119-253, apud DE MATTEI, op. cit. p. 80.

[31] Idem, ibidem, p. 81.

[32] Idem, ibidem, p. 81.

[33] Apud CHAMPROUX, op. cit. p. 47.

[34] METTEPENNINGEN, Jürgen. Nouvelle Thélogie – New theology – Inheritor of Modernism, Precursos of Vatican II. Londres: T & T clark International, 2010.