Dom Bosco e a terrível peste de cólera em Turim
André Melo
DOM BOSCO E A TERRÍVEL PESTE DE COLÉRA EM TURIM
[ Apresentamos a nossos leitores um trecho do Vida de São João Bosco, escrita pelo padre Giovanni Battista Lemoyne, obra traduzida e publicada pela Flos Carmeli Edições (disponível aqui:https://www.floscarmeliedicoes.com.br/aj4ejhvxc-vida-de-sao-joao-bosco-volume-i-giovani-battista-lemoyne) ]
Uma breve introdução
Pestes, doenças e flagelos não são uma novidade na história do mundo. A História nos traz relatos de várias delas.
O que a atual pandemia de corona vírus tem de peculiar parece ser a atitude das pessoas. E sobretudo do clero.
Enquanto vivemos dias em que as orações, as missas e as comunhões são ainda mais necessárias, alguns bispos correm para se colocar como exemplares seguidores das “virtudes” cívicas proibindo as missas e a administração dos sacramentos. Até batismo chegam a proibir.
Há, contudo, graças a Deus, honrosas exceções tanto aqui no Brasil como em outras regiões do mundo.
É, pois, mais a falta de fé que a peste que deveria causar assombro e nos fazer temer pelas consequências.
Todas as esperanças estão voltadas para a Ciência.
O homem moderno, presunçoso e independente do sobrenatural, aguarda ansioso por uma solução que virá, não de Deus, mas da deusa ciência. E dessa forma, a lição que deveríamos tirar dos recentes acontecimentos vai sendo relegada.
Desnecessário dizer que todo o esforço científico deve ser feito em conjunto com razoáveis medidas sanitárias. É o que a Igreja e os santos sempre fizeram. Entretanto, o mais importante, o cuidado da alma, deve vir primeiro. Afinal, no pior dos casos, o COVID-19 só vai antecipar um evento que é certo para todos nós.
Em outras épocas de epidemia o que se via era o clero à frente da situação, arriscando-se heroicamente para salvar os corpos e, sobretudo, as almas.
Hoje, muitos correm apenas atrás das determinações governamentais, ansiosos por se colocarem na vanguarda da adesão àquilo que o mundo prega.
Porventura, Deus teria mudado? Nossa Senhora, São José e os santos não existem mais? Os meios antigamente empregados – com tanto sucesso – tornaram-se ineficazes?
De agora em diante é a OMS que nos salvará?
Onde estão a fé e a caridade de tantos pastores? No momento em que mais precisamos do auxílio divino dos sacramentos ficaremos privados deles?
Para ajudar, pois, na reflexão sobre um problema tão atual e também apresentar um exemplo para nós todos, clero e leigos, trouxemos um trecho da Vida de São João Bosco, escrita por seu secretário, padre Lemoyne.
Notem a semelhança das circunstâncias descritas com a dos tempos atuais, salvo pela quantidade de mortos, muito maior na peste enfrentada por São João; pela atitude das autoridades civis, que também recorreram a Deus na ocasião; e, sobretudo, pela atitude do clero daquela época.
São João Bosco, rogai por nós.
Nossa Senhora Auxiliadora, rogai por nós.
Boa leitura.
André Melo
***
No dia seguinte, 15 de agosto, festa de Maria Santíssima Assunta ao céu, Dom Alasonatti inaugurava seu ministério sacerdotal em Valdocco dando assistência a um doente de cólera. Há duas semanas, em Turim, havia aparecido o cólera!
Dom Bosco o tinha prenunciado. Desde o mês de maio, ele havia dito aos jovens que o cólera atingiria Turim, onde faria estragos, e acrescentou:
– Vocês fiquem tranquilos; se fizerem o que lhes digo, serão salvos desse flagelo.
– E que devemos fazer? – perguntaram-lhe os jovens.
– Acima de tudo, viver na graça de Deus; trazer no pescoço uma medalha de Maria Santíssima, que eu irei abençoar e darei a cada um, e para este fim rezar todo dia um Pater, Ave, Gloria, com o Oremus de São Luís e a jaculatória: Ab omni malo libera nos, Domine. [De todo mal livra-nos, Senhor!]
Era uma confirmação da piedosa prática iniciada no ano anterior com a citada explosão da fábrica de pólvora.
Depois de ter percorrido várias regiões, o cólera-morbo invadira também a Ligúria e o Piemonte. Nos primeiros dias da infecção o número dos atingidos era também o número dos mortos; sobre cem casos, havia em média sessenta óbitos. Imagine-se a angústia generalizada que aparecia com a interrupção do comércio, o fechamento das lojas e a fuga das áreas invadidas que muitos realizavam.
Esse terror era aumentado pelo fato de não se conhecer nenhum remédio para a doença, e a convicção de que não era apenas uma epidemia, mas um mal contagioso. Nas classes baixas, acrescentava-se o preconceito de que os médicos estivessem ministrando aos enfermos uma bebida envenenada, chamada de “aguinha” em Turim, com a intenção de fazê-los morrer mais depressa e, assim, desviar mais facilmente o perigo para si mesmos e para os outros.
Em 25 de julho, com o anúncio dos primeiros casos em Turim, o Ministro entregava normas de precaução para o Vigário Geral, para que o clero viesse em auxílio das autoridades civis na execução das ordens emanadas. Os párocos obedeceram, o clero se declarou disposto e os religiosos de São Camilo, os Capuchinhos, os Dominicanos e os Oblatos de Maria se ofereceram para dar assistência aos doentes. O próprio Município, tão logo se mostrou iminente a explosão do flagelo, deu um esplêndido exemplo de piedade. Depois de ter adotado as devidas medidas sanitárias, quis recorrer à Rainha do Céu e ordenou uma cerimônia religiosa no Santuário de Maria Santíssima Consoladora, na manhã de 3 de agosto; tomou parte nela, junto com imensa multidão de fiéis, uma representação delegada pelo Conselho municipal. O Prefeito fez a comunicação à Autoridade eclesiástica com estas nobres palavras:
“O Conselho delegado, intérprete da vontade da população desta Capital, na circunstância da temida invasão do cólera asiático, assistiu esta manhã a uma Missa, seguida pela Bênção, na igreja da Bem-aventurada Virgem da Consolata, a fim de impetrar o seu patrocínio.”
E a Virgem Bem-aventurada não desprezou essas súplicas, pois a terrível doença, contra toda expectativa, atacou em Turim com menos força que em muitas outras cidades e países da Europa, da Itália e do próprio Piemonte.
Apesar disso, os casos subiram de um a 10, a 20, a 30 e, depois, a 50 e 60 por dia. De 1º de agosto a 21 de novembro, a cidade, incluído os subúrbios e o território, teve 2.500 casos e 1.400 vítimas. A região mais afetada foi a de Valdocco, onde em um mês, apenas na paróquia de Borgo Dora, houve 800 atingidos e 500 mortos. Próximo ao Oratório, houve várias famílias não só dizimadas, mas realmente destruídas. Nas casas Filippi, Moretta, Bellezza e na hospedaria do Coração de Ouro, isto é, nas casas vizinhas ao Oratório, morreram em brevíssimo tempo mais de quarenta pessoas.
Quando se espalhou a notícia de que o cólera começava a se insinuar, também o Venerável se mostrou um pai amorosíssimo. Para não tentar o Senhor, usou de todos os possíveis meios de precaução sugeridos pela prudência e pela técnica; e fez nova limpeza do local, mandou preparar outros quartos, diminuir o número de camas nos dormitórios e melhorar a alimentação, assumindo pesadíssimas despesas. Mas não satisfeito com as providências terrenas, dedicou-se de todo o coração a outras de maior eficiência. Desde os primeiros dias do perigo, prostrado diante do altar, ele fazia esta oração ao Senhor: “Meu Deus, atingi o pastor, mas poupai o frágil rebanho”. E dirigindo-se à Beatíssima Virgem, acrescentava: “Maria, vós sois mãe amorosa e poderosa; então, preservai estes filhos amados; e sempre que o Senhor quiser uma vítima entre nós, eis-me pronto para morrer quando e como lhe aprouver”.
No sábado, 5 de agosto, festa da Nossa Senhora das Neves, ele reuniu os acolhidos à sua volta e, anunciando o aparecimento do flagelo, recomendava a todos sobriedade, temperança, tranquilidade de espírito e coragem, e ao mesmo tempo confiança em Maria Santíssima, e uma boa confissão e uma boa comunhão.
“A causa da morte – acrescentava – é sem dúvida o pecado. Se vocês se puserem todos na graça de Deus e não cometerem nenhum pecado mortal, eu lhes asseguro que nenhum de vocês será tocado pelo cólera; mas se alguém permanecesse como obstinado inimigo de Deus e, o que é pior, ousasse ofendê-lo gravemente, a partir desse momento eu não posso mais garantir por ele nem por qualquer outro da Casa.”
É impossível expressar o efeito que essas palavras produziram nos jovens. Em parte dessa mesma noite, em parte da manhã seguinte, todos entraram em competição para se aproximarem dos Sacramentos, e desde esse dia a sua conduta tornou-se tão exemplar, que não se poderia querer melhor. Toda noite, muitos cercavam o Venerável para apresentar-lhe suas próprias dúvidas ou manifestar-lhe as pequenas faltas do dia, de modo que Dom Bosco era obrigado a ficar por uma hora, e às vezes mais, para ouvir um e outro, para confirmar, encorajar, consolar.
Enquanto isso, ele se dedicava com heroica abnegação dar assistência aos pestilentos. Mamãe Margarida, que em várias ocasiões tinha demonstrado temor pela vida do filho, declarou que enfrentar o perigo era um dever para ele.
O Município abrira alguns lazaretos para acolher os doentes do cólera que não tinham meios de assistência e de cuidados na própria família. Dois desses hospitais foram improvisados em Borgo S. Donato, que então fazia parte da paróquia de Borgo Dora; um outro foi implantado onde é o Abrigo de São Pedro e em uma casa contígua, e sua assistência espiritual foi confiada a Dom Bosco.
Se, porém, era fácil para o Município abrir os lazaretos, era muito difícil encontrar pessoas, mesmo remuneradas, que quisessem prestar-se a servir os enfermos, tanto nos lazaretos quanto nas casas privadas. Até os mais corajosos, temendo contrair o mal, recusavam expor a própria vida a essa ocasião. Diante dessa carência, passou pelo pensamento do Venerável uma corajosa ideia. Compadecido diante do extremo abandono em que se encontravam não poucos dos enfermos, reuniu os seus jovens, expôs a eles o estado miserável em que aqueles se achavam, exaltou o ato de caridade de se consagrar ao seu conforto, e disse que o Divino Salvador garantira que todo serviço prestado aos doentes devia ser considerado como prestado a Ele em pessoa. Dom Bosco acrescentou, ainda, que em todas as epidemias e nas próprias pestes sempre houve cristãos generosos que desafiaram a morte ao lado dos pestilentos; e como agora o Prefeito precisasse de enfermeiros e assistentes, ele e o caro Dom Alasonatti e outros sacerdotes já se tinham apresentado; e terminou expressando o vivo desejo de que alguns deles se tornassem companheiros naquela obra de misericórdia. Todos os jovens ouviram religiosamente o convite e, mostrando-se filhos dignos de um pai assim, quatorze deles deram imediatamente seus nomes para que fossem incluídos na comissão sanitária, e outros trinta, em poucos dias, seguiram o seu exemplo. Quem considera o terror que se apossava dos ânimos e reflete sobre a natural timidez da juventude, não pode deixar de admirar esse heroico impulso dos filhos de Dom Bosco, o qual chorou de consolação; e tendo dado algumas normas para que a dedicação comum se tornasse vantajosa tanto para o corpo quanto para a alma das pessoas atingidas pelo terrível mal, lançou-se à obra piedosa.
Quando se soube que os jovens do Oratório estavam consagrados à mesma atividade, as solicitações para tê-los consigo multiplicaram-se de tal maneira, que não puderam mais prender-se a nenhum horário. Dia e noite, ao lado de Dom Bosco, também eles entraram em movimento. Em alguns dias, mal tinham tempo de descer a Valdocco para tomar um pedaço de pão, e às vezes foram obrigados a alimentar-se na casa dos próprios doentes de cólera; assim, se de início não haviam deixado de tomar todas as precauções necessárias, a seguir já não pensavam mais do que em seus enfermos, deixando o cuidado de si mesmos à Divina Providência.
Nem o trabalho de Dom Bosco nem o dos alunos do Oratório foi apenas pessoal; mas, embora pobres, puderam prover até mesmo materialmente a muitos doentes. Quando ocorria de encontrar um enfermo que não tivesse lençol, coberta ou camisa, corriam à mamãe Margarida e a caridosa mulher fornecia prontamente as coisas conforme a necessidade. Bem depressa, com tanta generosidade, chegou-se a não ter nada mais que aquilo com que se estava vestido; e precisamente nesse estado de coisas, foram contar para a boa Margarida como um pobre doente, recentemente colhido pelo terrível mal, estivesse em um miserável leito improvisado e sem lençol. Ansiosa, ela procura e só encontra uma toalha da mesa.
– Pega e corre! – exclama logo Margarida. Não temos mais nada!
Mas eis que se apresenta um segundo, pedindo também alguma coisa. E que faz essa mulher incomparável? Voa para pegar uma toalha do altar, um amicto, uma sobrepeliz e, com licença de Dom Bosco, dá em esmola aqueles objetos da igreja. E não foi uma profanação, mas um ato de saborosa caridade, pois os linhos bentos recobriram os membros nus de Jesus na pessoa de um doente de cólera!
O cólera impeliu o Venerável também a outros sacrifícios. Antes que explodisse o cólera, ele havia feito no Armonia um apelo à caridade do povo, que se achava, como foi dito, em grave situação de miséria; mas diante de tantos garotos abandonados, em um só dia ele entrava no Oratório com dezesseis novos órfãos recolhidos aqui e ali, que foram encaminhados, segundo o costume, para os estudos ou para um ofício. E não foram apenas estes que, naqueles dias, ele trouxe chorando para Valdocco, para entregá-los nos braços da Divina Providência!
E como se a cidade de Turim fosse um campo reduzido demais para o seu zelo, no impulso de sua caridade Dom Bosco oferecia alguns jovens enfermeiros também para a cidade de Pinerolo que, por intermédio do prefeito Giosserano, lhe manifestava vivos agradecimentos e os sentimentos “de máxima gratidão”.
Terminada a agressividade do cólera-morbo, ele ficou bem contente de poder levar uma grande fileira de jovens até os Becchi, para a festa do Rosário.
(…)