Mestre de Fábulas
Paulo Miranda e Orlando Fedeli
MESTRE DE FÁBULAS
Análise crítica do Ensaio sobre El Catolicismo, El Liberalismo y el Socialismo, de Donoso Cortês
Cristo deu à sua Esposa, a Santa Igreja, inúmeros dons e riquezas.
Entre os tesouros conferidos à Igreja por Seu Fundador encontra-se a legião dos santos, modelos das mais altas virtudes. E entre os santos brilham numerosos doutores, por sua sabedoria resplandecente.
Os Padres dos primeiros séculos do cristianismo e outros inúmeros teólogos, como Santo Agostinho, Santo Anselmo, São Boaventura, São Tomás de Aquino, falaram de Deus com admirável sabedoria, de forma clara e isenta de erros.
Na doutrina desses santos encontramos a Verdade católica cristalina, sem sombras nem dúvidas.
Tem a Igreja, além deles, inúmeros outros teólogos de doutrina segura, reconhecidamente ortodoxa.
Ora, quem conhece o caminho certo e direto, não toma atalhos duvidosos. Quem tem guias seguros não pede orientação a condutores cegos ou míopes, que podem levar ao abismo ou a lugares incertos. Quem possui um tesouro não se contenta com migalhas.
Por isso, agiria muito tolamente quem, em meio à selva da dúvida, dispondo de condutores seguros para conduzi-lo à clareira da verdade, adota cegamente mestres de duvidosa ortodoxia – ou, muitas vezes, de indubitável heresia -, atraídos quiçá pela beleza de sua linguagem ou pelo fulgor de inteligência com que expõem suas ideias, tantas vezes falsas.
Muitos foram os mestres que tristemente atraíram mais alguns católicos, especialmente a partir do século passado, do que os seguros doutores Igreja.
A esses católicos se aplica a vigorosa advertência de São Paulo: “Porque virá tempo em que muitos não suportarão a sã doutrina, mas multiplicarão para si mestres conforme os seus desejos, levados pelo prurido de ouvir. E afastarão os ouvidos da verdade, e os aplicarão às fábulas” (II Tim., IV, 3-4).
O resultado foi aquele que se poderia esperar. Esses falsos mestres muitas vezes levaram – e infelizmente continuam levando – incautos católicos que aceitam sem vigilância nem reservas suas doutrinas, através de sendas tortuosas, a locais não iluminados pelo sol da verdade católica.
Tudo isso nos veio à mente durante a leitura de um livro que por acaso nos chegou às mãos: o famoso Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo, do espanhol Juan Donoso Cortés (1809-1853), obra acerca da qual oferecemos a nossos leitores algumas considerações despretensiosas.
Publicado em Madrid em 1851, o livro mereceu uma tradução francesa, publicada por Louis Veuillot, no ano de 1858. Valemo-nos, porém, da edição de Editorial Americalee, de Buenos Aires, Argentina, 1943.
A divindade dialética:
A metafísica católica se fundamenta na verdade de que o ser é o que é.
Tal é o princípio de identidade. Todo ser é idêntico a si mesmo. Disso decorre o princípio da não contradição: uma coisa não pode ser ela mesma e outra, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto.
E isto é assim porque o próprio Criador de todas as coisas é idêntico a Si mesmo. Essa realidade é confirmada pela Revelação e pela Teologia. “Eu sou aquele que é”, disse Deus, o Ser absoluto, a Moisés no Sinai.
Contrariamente, a dialética – no sentido metafísico do termo – nega a identidade do ser, o que é uma característica da gnose.
A visão dialética do ser sustenta que este possui, em si mesmo, dois princípios absolutamente iguais e contrários, em constante oposição. Imanente a todo ser haveria um constante antagonismo de dois princípios ou forças opostas que, sendo iguais, se anulariam, causando uma instabilidade tal que nada seria jamais idêntico a si mesmo.
Os que admitem a dialética afirmam que de tal modo as coisas estão constantemente mudando que, na realidade, sequer se poderia dizer que existe a coisa que muda, mas apenas a mudança, o devir. Portanto, não haveria ser.
Foi o que ensinou, por exemplo, Heráclito.
Dessa luta de contrários resultaria uma evolução constante de todo o ser. Consequentemente, seriam evolutivos a divindade, a verdade e a moral.
Essa doutrina, que já se achava na gnose antiga, foi reintroduzida na filosofia medieval, no século XIV, pelo gnóstico Mestre Eckhart, cujas doutrinas foram condenadas pelo Papa João XXII. Mais tarde, uma concepção dialética do ser foi defendida pelo Cardeal de Cusa. No século XVII, o místico luterano Jacob Boehme montou um sistema gnóstico que teve larga repercussão no Ocidente, influenciando muitos pensadores e cientistas, como Newton e Leibnitz. O princípio dialético de Boehme foi correntemente admitido por todos os sistemas gnósticos místicos que o sucederam.
Nos século XVIII e início do século XIX, o pietismo protestante – seita que se fundamentou nas obras de Boehme – permitiu que essa metafísica gnóstico – dialética desabrochasse inteiramente na filosofia idealista alemã, particularmente em Hegel. Todas as correntes esotéricas iluministas dessa época adotaram essa dialética. Na arte, esse pensamento dialético e esotérico deu origem ao Romantismo alemão, que tão profundamente influenciou a arte ocidental, a ponto de uma autoridade no assunto afirmar que “todos os gnósticos são românticos; nós poderíamos dizer também que o Romantismo é gnóstico” (cfr. Simone de Pétrement, Le dualisme chez Platon les gnostiques et les manichéens, Paris, PUF, 1947, p. 344).
Apesar de sua radical oposição à doutrina católica, a dialética não deixou de influenciar até mesmo os pensadores românticos ditos católicos, que tendo aceitado o Romantismo e sua dialética, admitiram a sua gnose.
É o que confirma a leitura do Ensayo de Donoso Cortês, que incansavelmente procura fazer uma espúria transposição da dialética para a doutrina católica.
“(Em Deus), diz o pensador espanhol, a unidade, dilatando-se, engendra eternamente a variedade; e a variedade, condensando-se, se resolve em unidade eternamente. Deus é tese, é antítese e é síntese; e é tese soberana, antítese perfeita, síntese infinita” (p. 41).
Nada mais oposto à noção católica de Deus. Segundo a doutrina católica, o Filho é absolutamente igual ao Pai, não se podendo, pois, falar-se em variedade. E o Espírito Santo procede das duas outras pessoas divinas, não sendo uma condensação ou síntese delas.
Menos ainda pode-se sustentar, sem cair em grosseira heresia, que o Filho é a antítese do Pai.
A família humana, imagem do Deus dialético:
Criado à imagem e semelhança dessa divindade que é tese, antítese e síntese – a qual ele chega estranhamente a chamar de “divino arquiteto” (pág. 80) -, o homem também guarda dentro de si essa dialética trinitária.
E Cortês descobre que, como Deus, o gênero humano também é uno e trino:
“O homem foi feito por Deus, à imagem de Deus, e não somente à sua imagem, mas também à sua semelhança; por isso o homem é uno na essência e trino nas pessoas. Eva procede de Adão, Abel é engendrado por Adão e por Eva, e Abel e Eva são uma mesma coisa: são o homem, são a natureza humana. Adão é o homem pai, Eva é o homem mulher, Abel é o homem filho”(p. 42).
Ao ler o texto, parece que ouvimos o som produzido pelas muitas marteladas desferidas no vão esforço de encaixar o homem no falso molde divino apresentado pelo autor.
Pessoa, segundo a clássica definição de Boécio, é a substância individual de natureza racional.
Ora, o homem não é trino nas pessoas. Adão é uma pessoa, Eva outra e Abel outra, cada qual mantendo sua individualidade. Todos têm a mesma natureza, mas não a mesma substância. Por isso, são três indivíduos.
Para que a família humana pudesse ser tida por imagem do que ocorre em Deus, seria preciso que houvesse três deuses, e não um só Deus uno e trino.
Apesar disso, Cortês usa a imagem:
“Porque é uno, é Deus; porque é Deus, é perfeito; porque é perfeito, é fecundíssimo; porque é fecundíssimo, é variedade; porque é variedade, é família” (p. 41).
Prossegue Cortês:
“Eva é homem como Adão, mas não é pai: é homem como Abel, mas não é filho. Adão é homem como Abel, sem ser filho; e como Eva, sem ser mulher. Abel é homem como Eva, sem ser mulher; e como Adão, sem ser pai. Todos esses nomes são nomes divinos, como são divinas as funções significadas por eles.” (p. 42).
Esquece Cortês que a geração humana não é idêntica à divina, mas apenas análoga. Deus Pai gera Deus Filho; analogamente, o homem pai gera o homem filho.
A quase identificação da geração divina com a paternidade humana tende a apresentar em Deus um conceito sexual típico da Cabala, de Jacob Boehme e do romantismo.
Com efeito, a Deus Filho corresponderia na família humana Eva, a mulher, que seria a antítese do Pai, Adão. Adão e Eva geram Abel, como do Pai e do Filho procede o Espírito Santo. O que torna o filho humano, na ótica míope do pensador espanhol, imagem do Espírito Santo.
Falando ainda da família humana, da qual a “família divina” é “exemplar e modelo” (p. 43), Cortês afirma outro absurdo:
“Entre o pai e o filho não há nenhuma daquelas diferenças fundamentais que apresentam uma base suficientemente ampla para nela fundamentar um direito. A prioridade é um fato e nada mais; a força é um fato e nada mais; a prioridade e a força não podem constituir por si mesmas o direito da paternidade, embora possam dar origem a outro fato, o fato da servidão. O nome apropriado do pai, suposto esse fato, é o de senhor, como o nome do filho é o de escravo. E essa verdade que nos dita a razão está confirmada pela história: nos povos esquecidos das grandes tradições bíblicas, a paternidade não foi nunca senão o nome próprio da tirania doméstica. Se houvesse existido um povo, esquecido, por um lado, dessas grandes tradições, e afastado, por outro, do culto da força material, nesse povo os pais e filhos teriam sido e se teriam chamado irmãos”. (pág. 42).
Sendo a geração humana imagem da divina – na qual há igualdade entre Deus Pai e Deus Filho – conclui Cortês que necessariamente há também igualdade entre pais e filhos humanos, não tendo os primeiros quaisquer direitos sobre os segundos. Sobre os filhos os pais exercem apenas a força; qualquer imposição do pai sobre o filho torna este escravo e aquele senhor.
São Paulo ensinou o oposto: “Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, porque isso é justo” (Efésios, VI, 1;).
Teria nosso autor esquecido o quarto mandamento? Não têm os pais sobre os filhos direito à honra, no sentido amplo do termo? Decorreria isso apenas do fato da prioridade e da força?
Cabe ainda anotar no texto acima que a menção ao “esquecimento”, por alguns povos, das “grandes tradições bíblicas”, faz lembrar a tese tradicionalista da revelação primitiva, o que ficará ainda mais claro em citações que reproduziremos adiante.
O homem e o universo dialéticos:
Não apenas a família humana, mas também o próprio homem, imagem de Deus, só pode ser dialético, assim como o universo.
Discorrendo sobre a necessidade da Incarnação do Verbo, afirma Cortês:
“A ordem suprema das coisas não pode ser concebida se as coisas todas não se resolvem na unidade absoluta. Pois bem: sem aquele prodigioso mistério [a Incarnação], a Criação era dupla e o universo um dualismo, símbolo de um antagonismo perpétuo, contraditório da ordem. De um lado estava Deus, tese universal, e de outro as criaturas, sua universal antítese. A ordem suprema exigia uma síntese tão poderosa e tão ampla, que bastasse para conciliar por meio da união a tese e a antítese do Criador e das criaturas.” (p. 299).
Antes de Cristo haveria, portanto, um antagonismo: de um lado Deus, tese universal, e de outro as criaturas, sua antítese.
Difícil explicar como pôde Deus, após ter criado sua própria antítese – o universo -, dizer que “todas as coisas que tinha feito eram muito boas” (Gn., I, 31).
Por outro lado, a redução da variedade na unidade, geradora da ordem, não se faz através de uma síntese dialética, como pretende Cortês, mas através da analogia.
Assim como, numa proporção, vários números se reduzem a um só quociente, assim toda a variedade do universo se reduz a uma unidade referida a Deus, por analogia.
Por exemplo, entre Deus, o Papa e o Imperador há um quociente: a autoridade. Entre Deus e o pai há outro elemento comum. O homem é pai de modo análogo ao que Deus é pai. Ambos dão a vida, mas de forma análoga.
Entre eles não há antagonismo, mas analogia.
Para Cortês, esse universo dialético foi criado para ser deificado:
“Todas as criaturas nasceram com a inclinação e o poder de transformar-se e subir pela escala imensa que, começando nos seres mais baixos, iria acabar naquele Ser altíssimo que está acima de todo ser, e a quem os céus e a terra, os homens e os anjos conhecem com um nome que está acima de todo nome. A natureza física anelava por subir, até espiritualizar-se, de certa maneira, à semelhança do homem; e o homem até espiritualizar-se mais, à semelhança do anjo; e o anjo a assemelhar-se mais àquele Ser perfeitíssimo, fonte de toda vida, criador de toda criatura, cuja altura nenhuma medida mede, e cuja imensidão nenhum cerco compreende. Tudo havia nascido de Deus, e subindo devia voltar a Deus, que era seu princípio e sua origem: e porque tudo havia nascido dele e havia de voltar a Ele, não havia nada que não contivesse em si uma centelha mais ou menos resplandecente de sua formosura” (p. 144).
Eis um Teillard de Chardin avant la lettre.
Sobre o homem, diz Cortês:
“O homem, considerado sob esse ponto de vista não é outra coisa senão uma síntese, composta de uma essência incorpórea, que é a tese, e de uma antítese, que é sua substância corpórea. O mesmo ser que, considerado como um composto de espírito e de matéria, é uma síntese, não é mais do que uma antítese que é necessário reduzir à unidade por meio de uma síntese superior, juntamente com a tese que a contradiz quando se o considera na qualidade de criatura. A lei da redução da variedade na unidade, ou o que é o mesmo, de todas as teses com suas antíteses em uma síntese suprema, é uma lei visível e indeclinável. A dificuldade aqui está apenas em achar essa suprema síntese. Estando de um lado Deus, e de outro todas as coisas criadas, é uma coisa evidente que aqui a síntese conciliadora não pode ser buscada fora desses termos, fora dos quais não há nada que se possa imaginar, sendo como são universais e absolutos. A síntese, portanto, havia de ser encontrada ou nas criaturas ou em Deus, na antítese ou na tese, ou bem em uma e em outra simultânea ou sucessivamente. Se o homem tivesse permanecido quieto naquele estado excelente e naquela condição nobilíssima em que foi posto por Deus, a variedade se teria unido à tese criadora numa suprema síntese pela deificação do homem” (p. 299/300).
Em meio a essa confusa Weltanschauung dialética, Cortes vê, no homem, a alma corpo como tese e o corpo como antítese. O homem todo, por sua vez, é uma síntese entre corpo e alma, que por sua vez se contrapõe a Deus (tese) como sua antítese. A síntese entre Deus e o homem seria Cristo.
Tese e antítese, não fosse o pecado, evoluiriam, atingindo o homem sua “deificação”. Um homem deificado seria a síntese superior, resultante do choque entre Deus e o homem.
Para tornar mais claro o pensamento de Cortês, poderíamos expô-lo através deste esquema:
Com o pecado, tornou-se inviável a deificação do homem. E a síntese superior “teve de realizar-se pela humanização de Deus”(pág. 301).
Aí está, escancarada, toda a metafísica gnóstica.
No paganismo, dogmas católicos:
Discorrendo sobre o amor de Deus, afirma Cortês:
“Os gentios tiveram notícia desse dogma supremo, como tiveram, mais ou menos cabal, mais ou menos cumprida, de todos os dogmas católicos” (pág. 63).
Engano. Em todo o paganismo jamais se manifesta a adoração dos deuses em reconhecimento por seu amor. Os pagãos apenas temiam os deuses, vistos como seres cruéis.
Por outro lado, a ideia de que os pagãos acreditavam – embora imperfeitamente – nos dogmas católicos é típica dos românticos e da tese tradicionalista segundo o qual teria havido uma revelação primitiva da qual todos os pagãos guardam alguma memória, enquanto a Igreja a mantém em sua pureza.
Os cabalistas cristãos do Renascimento e os posteriores sempre se fundaram nessa mesma falsa tese: entre a Igreja e o paganismo haveria somente uma diferença de densidade e explicitação doutrinária.
Cortês confirma essa ideia:
“Em todas as zonas, em todos os tempos, e entre todas as raças humanas, se conservou uma fé imortal em uma transformação futura, tão radical e soberana, que juntaria em um para sempre o Criador e sua criatura, a natureza humana e a divina. Já na era paradisíaca, o inimigo do gênero humano falou a nossos primeiros pais sobre serem deuses. Depois da prevaricação e da queda, os homens levaram essa tradição prodigiosa até os últimos remates do mundo: não há erudito que não a encontre no fundo de todas as teologias, por pouco que se aprofunde nelas. A diferença entre o dogma puríssimo conservado na teologia católica e o dogma alterado pelas tradições humanas está na maneira de chegar a essa transformação suprema e alcançar esse fim soberano” (p.64).
Espírito e carne:
A confusão do autor vai ainda mais longe:
“(…) as coisas físicas não podem ser consideradas como dotadas de uma existência independente, como existindo em si, por si e para si, mas antes como manifestações das coisas espirituais, que são as únicas que têm em si mesmas a razão de sua existência. Sendo Deus espírito puro, princípio e fim de todas as coisas, é claro que todas as coisas em seu princípio e em seu fim são espirituais: sendo isso assim, ou as coisas físicas são vãs aparências e não existem, ou, se existem, existem por Deus e para Deus, o que quer dizer que existem pelo espírito e para o espírito; de onde se infere que sempre que haja uma perturbação, qualquer que seja ela, nas regiões espirituais, há de haver forçosamente outra análoga nas regiões corpóreas; não podendo conceber-se que estejam quietas as próprias coisas, quando há uma perturbação no que é princípio e fim de todas as coisas” (p. 136/137).
Depreende-se do texto do autor que os males físicos são decorrência de “perturbações espirituais”.
Trata-se de outro erro antigo, já refutado por Nosso Senhor:
“Jesus estava passando e viu um homem que era cego de nascença. Os discípulos perguntaram-lhe: “Mestre, quem foi que pecou, ele ou seus pais, para ele nascer cego?” Jesus respondeu: “Ninguém pecou, nem ele nem seus pais, mas é para que as obras de Deus se manifestem nele” (S. João, IX, 1).
A ideia de que os males do corpo são manifestações dos males da alma era o princípio fundamental da medicina romântica.
Richelieu, Luís XIV e a Revolução Francesa
Contra o liberalismo, Cortês erra ao defender o absolutismo monárquico de Luís XIV:
“A escola liberal é a única que entre seus doutores e mestres não tem nenhum teólogo; a absolutista os teve; os levou muitas vezes a serem governadores dos povos, e os povos cresceram, durante seu governo, em importância e poderio. A França não esquecerá nunca o governo do Cardeal Richelieu, afamado e glorioso entre os mais gloriosos e afamados da Monarquia francesa. O lustro do grande Cardeal e tão límpido que enfrenta o de muitos reis, e seu resplendor tão soberano que não padeceu eclipse pela vinda ao trono daquele Rei gloriosíssimo e potentíssimo a quem a França em seu entusiasmo e a Europa em seu assombro chamaram ao mesmo tempo o Grande” (p. 163/164).
Richelieu e Luís XIV. Richelieu, o grande aliado dos protestantes alemães contra o imperador, o fomentador da Guerra dos trinta anos contra o império! Luís XIV, famoso por seus vícios e corrupção. Luís XIV, que impôs os Bourbons à Espanha, levando-a à decadência. Luís XIV, para quem todas as propriedades eram do Estado, sendo a propriedade particular uma mera tolerância dele!
Esse adepto do absolutismo afirma que tudo cabe na “síntese católica”; até mesmo, de certa forma, o socialismo:
“Na síntese católica cabem amplamente todas as teses e todas as antíteses humanas. Ela traz e condensa tudo em si com a força invencível de uma virtude incomunicável. Os que pensam que estão fora do Catolicismo, estão nele; porque ele é como a atmosfera das inteligências: os socialistas, como os demais, depois de esforços gigantescos para separar-se dele, não conseguiram outra coisa senão ser uns maus católicos” (p. 272).
Hoje, Cortês certamente diria isso de Lula e de Frei Betto…
***
Basta. A obra traz ainda muitos outros erros; entretanto, consideramos os textos acima reproduzidos suficientes para demonstrar a heterodoxia de seu autor.
Dir-se-á que, ao lado desses erros, alguns outros pensamentos mostram-se corretos e mesmo brilhantes.
É verdade. Entretanto, o mesmo poderia ser dito de muitos hereges. Será que Lutero, por exemplo, nunca disse nenhuma verdade, ou não escrevia bem?
Sem dúvida. Mas isso jamais nos permitiria elogiar o heresiarca de Wittenberg como católico, ou tomá-lo como um de nossos guias…
Nosso Senhor nos ordenou que vigiássemos. É preciso, pois, nunca fechar os olhos para o erro, permitindo que o doce sabor do mel nos faça ingerir o veneno que a ele pode ser misturado.
Cumpre-nos manter inteira fidelidade à pureza da doutrina de Nosso Senhor. Sabemos bem onde encontrá-la.
Felizes os que o Senhor encontrar vigilantes, seguindo a máxima de São Paulo: “Ficai alerta, cingidos com a verdade” (Efésios, VI, 14).