Orlando Fedeli
O ROMANTISMO NA IGREJA
Afirmou Alain Besançon que a gnose penetrou na Igreja através do Romantismo. Consideramos que essa afirmação é verdadeira no sentido de que, a partir do Romantismo, registrou-se uma nova e forte penetração de gnose entre os católicos.
Essa gnose romântica é tanto mais difícil de extirpar quanto ela se mostra volátil, pouco doutrinária e extremamente cambiante. Ademais, romantismo firmou-se entre os católicos muito mais como estado de espírito e como mentalidade do que como teoria. Pode-se dizer que o romantismo foi embebendo a alma católica como a calda vai embebendo o pêssego na compota.
Dificilmente se encontraria um católico que defendesse a doutrina romântica. Entretanto, mais dificilmente ainda se encontraria um católico sequer que não tenha sido afetado pelo romantismo. Nenhum católico se reconheceria como romântico, apesar de estar embebido de romantismo. E essa é a grande vitória da gnose romântica: ter penetrado até a medula das almas católicas sem que elas o percebam. Sem que elas o reconheçam.
Cânticos, piedade, iconografia, esculturas, pinturas, música, nas igrejas, estão muito frequentemente impregnados desse romantismo dulçoroso. E esse clima que amolece a fibra das almas católicas, via de regra as leva a colocar o sentimento acima da razão, o afeto acima da fé, a pieguice no lugar da piedade.
Seria de espantar então que, após dois séculos de romantismo sentimental e irracional, o rebanho – rebanho em sentido muito próprio – tenha aceitado, quase sem qualquer reação, os erros do Vaticano II e as profanações da nova missa? Que tantos pastores, ingenuamente românticos, tenham admitido tais erros porque se recusaram a pensar, a analisar, a raciocinar? Porque tenham obedecido romanticamente e não sapiencialmente?
Como poderiam resistir aos sofismas do chamado “socialismo cristão” aqueles que se moviam apenas por comiseração sentimental? Como resistir aos Bispos e “teólogos” da Libertação que, a pretexto de melhorar a situação de miséria do povo, só falam de fome, pobreza, necessidades materiais, e com isso negam todos os valores espirituais, e até mesmo a transcendência de Deus? Como resistir a eles, se a emoção em face da pobreza leva a esquecer a verdade revelada?
Como manter o zelo pela fé ortodoxa ante um ecumenismo – fruto da emoção romântica que deseja reencontrar os “irmãos separados” – que vê em toda heresia um certo encanto, e que se embevece ante todo herege?
O romantismo foi um dos grandes responsáveis pela força da heresia em nossos tempos, pois ele colocou em primeiro lugar o coração, deixando a verdade em segundo plano. Quando não a negou por meio do subjetivismo, sua alma ideológica.
***
Essas considerações vieram-nos à mente ao cair em nossas mãos, numa dessas tardes chuvosas que nos obrigam a ficar em casa, arrumando estantes e tirando o pó de velhos livros, um pequeno e gasto volume de cânticos paroquiais anterior ao Vaticano II.
A página de rosto anunciava: Texto do Manual de cânticos sacros “Cecílio” por Frei Pedro Sinzig OFM e Frei Basílio Röwer OFM. A edição era da “Vozes”, anterior à era Leonardo Boff. Estava datado de 1960, mas, tratando-se da 37ª edição, é de crer que os cânticos fossem bem mais antigos. Dos tempos de Pio XII, pelo menos.
Nesse opúsculo não encontramos as letras socialistas, revolucionárias e materializantes de muitos hinos que hoje se cantam nas igrejas. Longe disso. Lá se encontram adjetivos e expressões típicos do século XIX, como “célica flor”, “magnete eterial” e outros.
Veja-se, por exemplo, estas estrofes de um hino para Santa Teresinha:
“És Terezinha
minha rainha
célica flor
fulgindo amor
Possuis a cor
de nívea rosa
rara olorosa
minha rainha”.
E daí para fora, numa ambiguidade que permitiria aplicar o texto tanto a Santa Terezinha como à vizinha por quem o rapaz devoto estivesse apaixonado. Sem falar do gosto literário espantoso, que agradava as moçoilas sonhadoras e as velhas carolas.
Esse romantismo foi o suco que amamentou a carolice piegas incapaz de reagir contra o Vaticano II.
Deixemos, porém, de lado e por enquanto esse aspecto para examinar um ponto mais interessante.
Vejamos nesse opúsculo dos dois franciscanos românticos um hino para o tempo de Natal. Ele se intitula “Róseo Menino”. Aí vai sua letra:
“Róseo Menino
feito de luz
Lírio divino
Santo Jesus
Meu cravo olente
cor de marfim
pobre inocente
branco jasmim
Entre as folhinhas,
pequeno amor,
das criancinhas
tu és a flor.
Cabelos louros
olhos azuis
és meu tesouro
manso Jesus.
Estrela pura
santo farol
flor de candura
raio de sol”.
Difícil imaginar letra mais adocicada ou de mais baixo nível literário. O romantismo se exala de cada verso e de cada rima desse cântico de falsa piedade. Note-se por exemplo a segunda estrofe, que rima marfim com jasmim e que, sem se importar com a objetividade, afirma que o branco do jasmim é idêntico à cor do marfim… Apenas para conseguir uma rima.
E que mau gosto, que impropriedade chamar a Jesus Menino “meu cravo olente”. E que sentimentalismo ambíguo no apelativo “pequeno amor” (terceira estrofe). E que rima absurdamente “carioca” entre azuis e Jesus (carioca porque a rima só se torna verdadeira se o nome de Cristo for pronunciado “Jesuis”, o que é tipicamente carioca). E que absurda descrição do Menino Deus, que mais parece a de um almanaque sentimental:
Cabelos louros
olhos azuis
és meu tesouro
manso Jesus.
Todo esse baixo nível intelectual e literário, todo esse sentimentalismo derreteu as almas dos fiéis reduzindo-as, sem que o percebessem, a uma pasta amorfa e pegajosa, à qual qualquer mentira adere.
Tudo isso é péssimo. Uma sadia e verdadeira reação católica deveria ter de extirpar das paróquias tais canções.
Entretanto, se tudo isso é péssimo, há algo ainda pior nessa canção pegajosa.
Na primeira estrofe se lê:
“Róseo Menino
feito de luz
Lírio divino
Santo Jesus”
Ora, o segundo verso, ao afirmar que o Menino Jesus “é feito de luz”, diz algo que vai contra a fé.
O Verbo de Deus é, de fato, a luz de Deus. Essa luz veio ao mundo, encarnando-se no seio da Virgem Maria. Por isso, diz o Evangelho de São João Et verbum caro factum est. E o Verbo de Deus se fez carne.
Essa miserável canção repete, de modo romântico, a heresia de Eutiques. Dir-se-á que se trata apenas de metáfora. Entretanto, não se pode deixar de lembrar que o povo, ao qual era destinado o cântico, assim não entenderia.
O menino Jesus não era “feito de luz”. Ele tinha um corpo humano como o nosso, feito de carne e sangue. Ele nasceu de Maria Virgem.
Nosso Senhor tinha duas naturezas, divina e humana, e uma só Pessoa, a do Filho, segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
Porque o Verbo de Deus se fez carne, ele nasceu e sofreu por nós e morreu na Cruz. Ele não era feito de luz, e na gruta sentia frio, no corpo e no coração. Sentia também a frieza dos homens.
“Quaerens me sedisti lassus
redimiste crucem passus
Tantus labor non sit cassus”.
Buscando por mim, cansado, tristemente à beira do poço. Era meio dia, a estrada fora longa sob o sol escaldante. Sedento, à beira do poço, o Verbo de Deus tinha sede e pediu de beber à samaritana… Ele não era feito de luz, e tinha sede.
E no horto teve medo e suou sangue porque não era feito de luz, mas de carne.
E no tribunal de Anás, seu rosto de carne foi esbofeteado e no pretório foi chicoteado. Ele não era feito de luz e as chibatadas ardiam em sua carne adorável. E foi corada de espinhos aquela cabeça de Deus-homem. E ele foi crucificado de fato. E os cravos traspassaram suas mãos e seus pés e Ele podia contar todos os seus ossos porque não eram feitos de luz.
E de seu coração traspassado saíram sangue e água e não luz.
E porque Ele não era feito de luz os judeus puderam ver seu corpo qual maldito pendente do madeiro: Videbunt in quem transfixerunt.
Dir-se-nos-á que a pobre canção que analisamos não nega tudo isso.
Não nega, diretamente. Mas ao dizer falsamente – por busca de falsa poesia – que o Menino Jesus era feito de luz, põe na cabeça dos fiéis uma falsa ideia que facilmente desabrochará em heresia explícita.
E caso se busque fazer poesia, que falta de grandeza e que falta de compreensão ao contemplar o presépio o Menino Deus, inerme em sua fraqueza infantil e que, contudo, era onipotente e movia as estrelas e os corações.
Jacet in presepio et in coelis regnat. Jazia num presépio aquele que reina nos céus.
Quando na Missa se exorta “sursum corda”, deve-se entender que nossos corações devem estar sempre elevados para o alto, e não ficarem apegados ao que é baixo.
E o romantismo é um apego a sentimentos sem grandeza.
***
Foram canções como essas – e, sobretudo, o espírito que as ditou – que prepararam o triunfo do Vaticano II, porque tiraram das almas o amor da Sabedoria e da Verdade.
Com elas, o amoroso ardor pelas Verdades da Fé, fundamento da verdadeira piedade e de sentimentos ordenados, foi trocado pelo sentimentalismo dulçoroso.
Pelo Menino Deus porque tinha cabelos louros, e olhos azuis…
Uma canção sentimental dessas esquece um mistério fundamental de nossa fé, qual seja:
Verbo caro factus est
plenum gratiae et veritatis
(S. Jo. I, 14).
E o Verbo se fez carne, cheio de graça e de verdade.
Publicado no Jornal Veritas, Nº 34 – janeiro de 1996 – ano 9