Laura Palma
O VÉU: O PAPEL DA ARTE NA PROPAGAÇÃO DA HERESIA
PARTE 1
INTRODUÇÃO
O Véu
Toda doutrina heterodoxa, ao menos enquanto não obtém o domínio de uma sociedade, tem um problema de propagação: para escapar da perseguição, seus ensinamentos devem ser secretos, escondidos, mas para que ela possa difundir-se tem que, necessariamente, ser revelada. Como se alastrará se seu esconderijo for tão oculto que ninguém o possa encontrar? Mas, se seu esconderijo for manifesto, pode cair nas mãos de seus opositores e ser combatida e até destruída.
Assim, é preciso escolher um meio que vele, mas que revele. A doutrina secreta, como na Monalisa de Leonardo, tem que estar velada. O véu é o esconderijo excelente para a heresia, mais ou menos opaco de acordo com os tempos. Em épocas de tempestade, como um pano grosso, onde apenas se deixem ver os contornos de volumes estranhos. Em épocas mais favoráveis, transparente como o véu da Monalisa, encobrindo pouco e revelando muito.
Além de proteção, o véu também convém pois faz forcar a vista, aguça o olho, a inteligência, que são instigadas pelos obstáculos a levantar o véu.
Foi muito cedo que a heresia encontrou abrigo na arte. A arte por sua falta de objetividade e alusões simbólicas é veículo muito propício para velar e revelar suas doutrinas. E entre as artes, depois da literatura, foi a pintura por seu caráter polissêmico, um meio utilíssimo de propagação de ideias.
Em suma, nos artigos que se seguem procuraremos ilustrar como a falta de objetividade da pintura foi meio conveniente para propagação de doutrinas divergentes no final da Idade Média e no começo do Renascimento, período onde a Igreja ainda mantinha influência nas decisões do Estado, o que criava a necessidade da heresia se esconder.
Percorreremos assim as obras de alguns dos mais importantes pintores renascentistas, Leonardo, Bosch, Bruegel, Rafael, Boticelli, Michelangelo, procurando ilustrar como se utilizaram da arte pintada para esconder e sobretudo para revelar seu pensamento heterodoxo.
1. A Polissemia das imagens – o veículo da heresia
Uma grande cabeça com um olho só boia quase naufragando em meio a um mar caótico, de sua boca sai uma língua de fogo e fumo. Em seu ouvido um homem grita. No litoral uma Igreja arde em chamas, um homem reza, monstros e demônios se divertem. Em cima da cabeça o peso de um peixe oco auxilia seu naufrágio. Da boca do grande peixe sai um arbusto seco com uma bandeira e nela, uma cruz.
“Cualesquiera que sean los avatares de la pintura, cualesquiera que sean el soporte o el marco, la cuestión que se plantea siempre es la misma: qué está pasando ahí?”[1]
Trata-se de uma das muitas gravuras de Pedro Bruegel (1525?-1569), “Tentação de S. Antão”[2]. Propositadamente caótica, instigantemente sem coerência, Bruegel subverte o sentido natural das coisas, brinca e debocha com seus monstros e homens desesperados. Seu objetivo? Ilustração? Entretenimento? Ostentação de técnica? Nas palavras de Arthur Klein, estudioso da arte gráfica de Bruegel, essa gravura “in its drastic criticism of both Church and State, this may well be the most “outspoken” of Bruegel’s graphic Works.”[3]
É um exercício retórico do pintor, onde a falta de ordem, o disforme, o monstruoso serve de hipérbole que capta a atenção do observador para o discurso que jaz sob suas imagens. No branco e preto de sua gravura, as deformidades substituem as figuras de linguagem do discurso escrito, que se expressa e se esconde em um eloquente ataque contra o Estado e a Igreja.
A imagem como forma de expressão de retórica parece ser um meio pouco eficaz para transmissão de críticas, porém, se ela não tem a mesma objetividade da escrita, apresenta algumas particularidades que dão maior conveniência à veiculação dessas, principalmente em períodos de conturbação política e religiosa.
A retórica como arte de bem falar, arte de persuadir, de associar o argumento que convence ao ornamento que inclina a sensibilidade do ouvinte está ligada em um sentido mais estrito ao discurso escrito ou oral, mas em um sentido mais amplo associa-se também à toda a forma de transmissão de conceitos.
No Della Pinttura Alberti exemplifica essa associação entre pintura e eloquência quando “define o pintor a partir do modelo do orador.”[4] Alberti usa as categorias retóricas de Cícero para mostrar como o pintor, de forma análoga ao retórico, através da cor e dos gestos busca provocar um movimento no observador, assim como a oratória pretende o convencimento do ouvinte.
As formas pictóricas podem se constituir pois, como veículos de um discurso, como forma de expressão de um significado que visa o convencimento ou a transmissão de ideias. Guardam para isso uma semelhança com a criação de verbos imaginativos gerados com a palavra.
Comentando a primeira frase do Filósofo depois do proêmio do Periermeneias: “Portanto, as coisas na voz são símbolos das afecções na alma e as coisas escritas são símbolos das coisas na voz” Santo Tomás comenta o processo de transmissão do discurso. Discute em primeiro lugar porque Aristóteles diz “as coisas na voz” e não “a voz”. Como explica, faz assim porque não pretende analisar a voz, que é algo natural, mas o que há nela, ou seja, o nome o verbo e outras coisas, que são construções artificiais do homem[5] que utilizam a voz. São a parte por baixo do todo. O nome e o verbo são como uma escultura na madeira e porque quer se referir à escultura (palavras) diz “o que há na madeira (na voz)” e não “a madeira (a voz)”.[6]
Tratando da parte seguinte “das paixões[7] (afecções) que há na alma”, S. Tomás procura explicar como o termo paixões não se refere ao que comumente se entende por paixões, ou seja, as afecções do apetite sensível (ira, alegria, etc.). Mas às concepções do intelecto, as quais os nomes verbos e outras orações significam, pois como diz, “não pode ser que (as paixões) signifiquem imediatamente as coisas, como é evidente pelo próprio modo de significar, pois este nome “homem” significa a natureza humana em uma abstração das coisas singulares, de onde não pode ser que signifique imediatamente um homem singular.”[8]
- Tomás prossegue explicando o trecho seguinte: “e as coisas escritas são símbolos das coisas da voz”. Comenta que o filósofo diz isso para fazer uma comparação, ele quer dizer que da mesma maneira que as coisas da voz são símbolos das afecções da alma, a escrita é símbolo, ou seja, é uma codificação do que é falado.
Depois de desmembrar a frase no comentário ao De Interpretatione, onde se preocupa somente com sua exata compreensão, S. Tomás amplia seu significado na Suma Teológica. Quando trata do Verbo de Deus leva adiante as colocações de Aristóteles. A partir do mesmo conceito de voz significativa (ou seja, verbum), expõe três espécies de “vozes”: O Verbum interior – que é a ideia interior da coisa; o verbum exterior – que é a palavra que exprime o conceito interior; o verbum imaginativo – que é a imagem formadora desta palavra (espécie de “planta arquitetônica” da palavra exterior).[9]
Assim, pode-se formar um conceito de rosa (verbo interior), proferir a voz de rosa (verbo exterior) e também representar a palavra rosa na fantasia (verbo imaginativo). Santo Tomás comenta que estas três palavras guardam entre si a relação que tem a obra de arte e o artista: primeiro o artista tem ideia do que será esculpido, depois faz uma representação genérica da escultura em sua imaginação e por último produz a escultura, que une a ideia à matéria.
Essa mesma proporção que encontramos na fala entre verbum interior (conceito), verbum exterior (palavra) e verbo imaginativo (ideia na fantasia de outro) encontramos nas imagens. A transmissão do verbo interior de um sujeito para o verbo imaginativo de outro, que se dá pela palavra escrita ou voz significativa, pode ocorrer também por uma imagem. Dessa forma, se no lugar da palavra “homem” se representa sua figura pode-se transmitir um conceito e formar-se um verbum imaginativo. Bem verdade, porém, que essa transmissão não se dá da mesma forma, como a mesma precisão de quando se usa como “veículo” (verbo exterior) a palavra escrita ou oral. Isso decorre da própria natureza das imagens, em si “ambígua”.
“toda imagen es polisémica, toda imagen implica, subyacente a sus significantes, una cadena flotante de significados, de la que el lector se permite seleccionar e ignorar todos los demás. La polisemia provoca una interrogación sobre el sentido”.[10] Ela tira a objetividade do discurso, pois se as próprias palavras carregam em si muitos sentidos, sendo passíveis de diferentes interpretações, a polissemia das imagens multiplica essas interpretações, possibilita a criação de diferentes verbos imaginativos a respeito de um mesmo verbo exterior. Nos distancia muito mais que o discurso escrito das intenções de seu autor.
Soma-se ainda o fato de que na linguagem oral posso usar um termo em seu sentido universal, por exemplo quando falo “todo homem é mortal”. Na imagem, por sua materialidade espacial sempre se representa um ser particular, um homem particular com vários de seus acidentes. Somente com algum artifício de interpretação pode-se atribuir ao ser particular representado uma significação universal.
Além disso, a clareza retórica das imagens também é obstruída na temporalidade. Esses signos (verbos exteriores) carregados de múltiplas interpretações aparecem todos ao mesmo tempo, sem uma sequência que permita a construção de um discurso. “Tanto na linguagem escrita, como na falada, os signos aparecem sequencialmente. Nas imagens, contudo, os signos estão presentes simultaneamente. Suas relações sintagmáticas são espaciais e não temporais.”[11]
Devido ao carácter ambíguo das imagens, R. Barthes comenta que frequentemente, particularmente na propaganda, a imagem está associada à uma mensagem linguística que contribui e serve como ancoragem ou complemento da leitura da mesma[12] Isso é o que ocorre também em algumas das gravuras de Bruegel, onde além da arte gráfica há, muitas vezes, alguma frase que ilumina o sentido geral da imagem. Em suas pinturas (normalmente) não há elemento escrito que possa nos guiar na identificação dos signos da imagem.
Porém, mesmo com alguma inscrição, a leitura de uma obra de Bruegel é algo muito árduo. A frase sob a gravura elege um só sentido a esclarecer, normalmente o mais geral e óbvio. O resto de seu discurso (se existente) esconde-se nas entrelinhas dos diversos personagens e elementos pictóricos. A ambiguidade e falta de sequência das diversas imagens parecem ser obstáculo definitivo a qualquer esforço interpretativo. Todavia, tal dificuldade é atenuada pela análise do conjunto da obra do pintor. É através dela que se pode verificar a repetição de certas imagens em diferentes contextos, formando uma espécie de léxico pictórico. Isso porque “un signo es algo que se repite. Sin repetición no habría signo, pues no se le podría reconocer, y el reconocimiento es lo que fundamenta al signo.”[13]
Como o “Ptolomeu” circundado pelo cartuxo na Pedra de Roseta, as repetições em suas diversas pinturas nos dão possibilidade de vislumbrar algum significado.
Outra ferramenta importante para uma interpretação retórica de suas imagens é o estudo do meio histórico em que viveu e de sua biografia (ainda que dessa última Bruegel só tenha nos deixado um conhecimento esparso).
Obviamente, a leitura de todo seu discurso, se é que buscou constituir um, não nos é acessível. Em suas imagens visualizamos apenas algumas “letras”, “palavras” ou “frases” repetidas.
Entretanto, essa mesma falta de clareza que é obstáculo para a expressão de um conteúdo, serve à sua arte. A ambiguidade da imagem permite ao pintor velar sua mensagem em tempos de perseguição e, ao mesmo tempo, incita o observador instruído a desvelá-la. Funciona como o véu que vela, mas também revela.
Assim a pintura, melhor que o discurso, torna-se um lugar conveniente para a expressão de críticas que seriam reprimidas em épocas de perseguição. O labirinto polissêmico da imagem serve de refúgio para ideias que seriam combatidas pela Espanha Católica em época de inquisição na Holanda. Serve também, essa mesma imagem, como veículo de transmissão de um novo conhecimento àqueles que sabem escapar do labirinto de signos. Torna-se o quadro um conveniente veículo filosófico.
Em 1578 o pintor Italiano Veronese foi chamado a dar explicações acerca de “his manner of representing sacred scenes, and the profane additions he ventured to introduce into the same.”[14] Foi acusado de introduzir um cachorro e bêbados em uma Santa Ceia. No interrogatório, o pintor se fez de desentendido e surpreso. Foi condenado somente a reparar a próprio custo a obra colocando os intrusos e o cachorro na rua, para fora da casa de Simão.
Processos contra pinturas foram raros, e como no caso de Veronese, quando ocorrem tem evidência material condenatória insuficiente.
Dessa forma, mais do que pela poesia, como fizeram por exemplo Dante e outros do Dolce Stil Novo, a pintura é, em tempo de tempestade, um bom escudo e uma arma.
Nesse sentido passaremos a análise de algumas obras de importantes pintores renascentistas procurando mostrar concretamente como escondem sua doutrina debaixo da tinta, do colorido de suas alegorias.
Começaremos não pela pintura propriamente. Mas pelas gravuras, onde os aurores como veremos costumam ser mais explícitos.
Dessa forma no próximo artigo abordaremos a gravura acima reproduzida de Pieter Bruegel.
São Paulo, 31 de maio de 2018.
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Notas
[1] BARTHES, R. Lo Obvio e lo Obtuso: Imágenes, gestos e voces. Barcelona: Paidós Ibérica, 1986. p. 181
[2] Original no Ashmolean Museum de Oxford datado de 1556.
[3] KLEIN, H. A. Graphic Worlds of Peter Bruegel the Elder. New York: Dover publications, 1963. p. 144.
[4] LICHTENSTEIN, J. A Cor Eloqüente. São Paulo: Siciliano. p. 200.
[5] Significam por instituição humana.
[6] AQUINO, T. Expositio Peryermeneias, lib. 1 l. 2 n. 4
[7] Tradução portuguesa mais próxima do termo latino passionum.
[8] AQUINO, T. Expositio Peryermeneias, lib. 1 l. 2 n. 5
[9] AQUINO, T. Summa Theologica. 1, 34, I.
[10] BARTHES, R. Op., cit., p. 35.
[11] PENN, G., Análise Semiótica de imagens paradas. In: BAUER G.; GASKELL M., Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 322.
[12] BARTHES, R., Op. cit, p. 139.
[13] BARTHES, R., Op. cit., p. 306.
[14] Veronese and the Inquisition. Watson’s Art Journal, Vol. 8, No. 17 (Feb. 15, 1868), pp. 233-234
Stable URL: http://www.jstor.org/stable/20647852