Origens do Romantismo Alemão

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Orlando Fedeli

ORIGENS DO ROMANTISMO ALEMÃO

 

Sumário

I. Conceito de Romantismo – Romantismo e Gnose

II. Distinções

III.  Os veios originais do Romantismo Alemão

  1. O veio esotérico
  2. O veio religioso
    • Introdução
    • Jacob Boehme
    • O Pietismo
  3. O veio filosófico

IV.  Franz von Baader

V. Os filósofos idealistas

 ***

I. Conceito de Romantismo – Romantismo e Gnose

O conceito de Romantismo é nebuloso e quase inapreensível. Ele tem algo como o esgarçar das nuvens. Seus contornos são pouco definidos.

O Romantismo não tem dogma, nem princípio, nem objetivo, nem programa, nada que se situe dentro de um pensamento definido ou de um sistema de conceitos […] O Romantismo é uma atitude vital de índole própria e nisso reside a impossibilidade de determinar conceptualmente a sua essência (Nicolai Hartmann – A Filosofia do idealismo alemão, Lisboa, Gubelkian, 1983, pp. 189-190).

Mesmo os autores considerados fundadores do Romantismo não estavam de acordo com a sua essência, sendo pouco claros e, às vezes, contraditórios nessa matéria (Cfr. Mário Puppo – Il Romanticismo, Roma, Sudium, 1967, p. 10). Friedrich Schlegel, um dos líderes e fundadores da escola romântica alemã, escrevendo a seu irmão, August Schlegel, disse:

“Não posso enviar-te a minha interpretação da palavra “romântico” (…) ela tem 125 páginas de extensão” (“Non ti posso mandare la mia interpretazione della parola ‘romantico’ (…) essa è lunga 125 fogli” – apud Ladislao Mittner – Storia della letteratura tedesca, ‘Dal Pietismo al Romanticismo, 1700-1820′, Torino, Giulio Einaudi, 1977, p. 699).

Albert Béguin, interrogando-se sobre o Romantismo alemão, diz que recorreu:

… às inumeráveis obras em que a crítica alemã, há alguns anos, se esforça por dar uma fórmula do romantismo, muitas análises e vistas, profundas, vivas, perspicazes são encontradas nas páginas desses livros. Mas a síntese soberana que definiria sem reserva o espírito romântico parece se furtar a todas as tentativas (Albert Béguin – “L’âme romantique et le rêve”. Paris, José Corti, 1966, p. XII).

Mittner, tratando desse tema, diz que se coletaram cento e cinquenta definições de romantismo e que”… a palavra ‘romântico’ deve a sua excepcionalíssima e indeclinável fortuna à sua irridescente polivalência; ela tenta, de fato, definir o indefinível (…)” (L. Mittner, op. cit. p. 699. O sublinhado é nosso.).

Eis aí um bom ponto de partida. “Definir o indefinível”, tal seria o escopo do Romantismo. Portanto, já que só se pode definir o conhecido, ele pretende “conhecer o incognoscível”. Ambas as formulações são bem próprias dessa escola, por sua natureza paradoxal ou, mais precisamente, dialética.

O conhecimento do incognoscível daria ao homem o saber absoluto, um poder mágico que lhe permitiria redimir-se e redimir a natureza. Seria, pois, um conhecimento salvador.

Certamente, os românticos não crerão também que uma simples acumulação de fatos, devidamente constatados, conduza ao saber supremo; mas, eles manterão a esperança de obter um conhecimento absoluto, que, para eles, será mais e melhor do que um simples ‘saber’: (será) um ‘poder’ ilimitado, o instrumento mágico de uma conquista e mesmo de uma redenção da Natureza. Para eles, tratar-se-á de um conhecimento do qual participarão não só o intelecto, mas o ser inteiro, com suas regiões as mais obscuras e com aquelas que ele ainda ignora, mas que lhe serão revelados pela poesia e por outros sortilégios (A. Béguin – op. cit. p.5. O sublinhado é nosso).

Ricarda Huch mostra que “para os românticos, todo conhecimento é inseparável de um aprofundamento de si mesmo pela reminiscência e pela reflexão” (Ricarda Huch – Les romantiques allemands, Bernard Grasset, Paris, 1933, p. 69). E o conhecimento de si mesmo significava o conhecimento do “infinito subjetivo em si”, isto é, do divino no homem, exatamente como diz a Gnose, e este era o ponto de partida do Romantismo, nos assevera o próprio Hegel. Ora, este vínculo entre o conhecimento do infinito no homem e romantismo dá a esta corrente artística um tonus religioso. Por essa razão, Ricarda Huch afirma que, para os românticos, a arte seria de fato “mística incoscientemente aplicada”, e dessa asserção só não aceitamos o termo ‘inconscientemente’, pois muitos românticos tinham clara consciência de que visavam ter uma experiência mística que lhes daria um “conhecimento absoluto”.

Este conhecimento absoluto e salvador seria capaz de reconduzir o homem ao estado de inocência superior, ao estado de Adão no Paraíso:

Neste sentido, é muito típico o ensaio de Kleist sobre as marionetes, onde se diz que o homem, quando se mirou pela primeira vez no espelho, reconhecendo a si mesmo, perdeu a inocência. Agora, ele quer descobrir o caminho de volta. Para tanto, precisa comer mais uma vez da árvore do conhecimento infinito e alcançar de novo, pelo outro lado, o paraíso da inocência, de uma segunda inocência. (…) O grande sonho dos românticos é a inocência, a segunda inocência que englobe, ao mesmo tempo, todo o caminho percorrido através da cultura, isto é, uma inocência que não seria mais a primitiva, a do jardim do Éden, mas uma inocência sábia. É a famosa criança irônica de Novalis, um dos grandes símbolos do movimento romântico (Anatol Rosenfeld / J. Guinsburg – Romantismo e Classicismo in O Romantismo, org. J. Guinsburg, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 274).

Este conhecimento seria capaz de fazer compreender o que há de mais elevado, a harmonia de todos os seres, e daria a vida eterna. É o que diz E. T. A. Hoffmann em seu O vaso de ouro:

Serpentina! – A confiança que eu tive em você, o amor por você, me abriu as profundezas mais secretas da natureza. Você me trouxe a rosa nascida do Ouro, força primitiva da Terra, antes até que Phosphorus tivesse feito nascer o pensamento, a rosa me fez conhecer a harmonia sagrada de todos os seres e – felicidade suprema! – eu viverei para sempre neste conhecimento. Sim. foi-me concedida a força de conhecer o que há de mais alto. Eu amá-la-ei eternamente, Serpentina – jamais empalidecerão os raios da rosa, porque, como a fé e o amor, eterno é o conhecimento (E.T.A.Hoffmann – Le vase d’Or in Romantiques allemandsParis, NRF, Plêiade, 1963, vol I p. 864. O sublinhado é nosso).

Denis de Rougemont diz:

“Eu definiria, de boa vontade, o romantismo ocidental como um homem para o qual a dor amorosa é um meio privilegiado de conhecimento” (Denis de Rougemont – LÁmour et l’Occident, Paris, Plon, 1939, p. 37).

Definir o indefinível, conhecer o incognoscível, obter um conhecimento absoluto e salvador, um conhecimento redentor da Natureza e do homem, capaz de conceder a vida eterna e o retorno à inocência primeira, estas são fórmulas que demonstram bem o parentesco doutrinário direto que o Romantismo tem com a Gnose.

De fato, a Gnose pretende ser exatamente o conhecimento do incognoscível, isto é, o conhecimento do Ser Absoluto, Deus, e o conhecimento do processo vital da divindade (Cfr. Hans Jonas – La religion gnostique, Paris, Flammarion, 1978, p. 371). E, tanto quanto o Romantismo, a Gnose pretende ser um conhecimento absoluto e salvador. Algumas citações podem comprová-lo:

“(…) a gnose (do grego Gnosis, ‘conhecimento’) é um conhecimento absoluto, que salva por si mesmo, ou que o gnosticismo é a teoria da obtenção da salvação por meio do conhecimento” (Henri-Charles Puech – En quête de la Gnose, Paris, Gallimard, 1978, Vol. I,p. 236).

Estas palavras, de um autor que é das maiores autoridades em matéria de Gnose, poderiam ser aplicadas inteiramente ao Romantismo.

Com ele concorda Serge Hutin ao dizer:

“Não é arbitrário de colocar um conceito geral de Gnose (como) ‘conhecimento’ salvador” (Serge Hutin – Les gnostiques, PUF, Paris, Que sais-je?, 1970, p. 8).

E Simone de Pétrement escreveu:

“A Gnose (…é…) a religião do conhecimento, o culto do conhecimento como meio de salvação” (Simone de Pétrement – Le dualisme chez Platon, les gnostiques et manichéens, Paris, PUF, 1947, p. 88).

Por sua vez, Robert M. Grant confirma essas afirmações ao dizer:

“…este é o primeiro ponto e o mais importante da definição do gnosticismo: uma religião que salva pelo conhecimento; conhecer, para eles, é essencialmente se conhecer, reconhecer o elemento divino que constitui o verdadeiro Eu” (Robert M. Grant – La Gnose et les origines chrétiennes, Paris, Seuil, 1964, pp. 18-19).

Estas palavras também se aplicam perfeitamente ao Romantismo. Veja-se, por exemplo, como um pensamento de Friedrich Schlegel parece um reflexo delas:

“Tornar-se Deus, ser homem, formar-se, são expressões sinônimas” (“Diventar Dio, essere uomo, formasi sono espressioni sinonime”. G. Lukacs – Die Seele und die Formen, Berlim, Luchterland, 1971, p. 71-73 apud M. Puppo, op. cit., p. 276).

Não se julgue que forçamos o paralelo entre Romantismo e Gnose até fazê-los coincidir. Já Simone de Pétrement chegara à conclusão de que o Romantismo foi uma corrente gnóstica:

Pode-se dizer que reina, desde o romantismo, uma espécie de dualismo pessimista e sentimental, análogo ao dos gnósticos. Ele consiste, sobretudo, no sentimento que o homem está adaptado à sua própria condição, que ele se encontra apertado, que ele precisa de outra coisa (como se ele fosse estrangeiro a si mesmo e ao mundo em que ele se acha, como se sua verdadeira natureza não estivesse aí). Nós dissemos que os gnósticos são românticos; nós poderíamos dizer do mesmo modo que o romantismo é gnóstico (Simone de Pétrement – op. cit. p. 344).

Hume dizia que a melhor definição para o Romantismo era a de “religião difusa”:

“O Romantismo, (…) e esta é a melhor definição que posso dar dele, é religião difusa” (Hume, Romanticism and Classicism, in Speculations, Routledge & Kegan Paul, p. 118, apud Benedito Nunes – A visão romântica in O Romantismo, org. J. Guinsburg, p. 70, nota 69).

Denis de Rougemont dá um nome a essa “spilt Religion”:

“A exaltação da morte voluntária, amorosa e divinizante, eis o tema religioso mais profundo dessa nova heresia albigense que foi o romantismo alemão” (Denis de Rougemont – op. cit. p. 204).

Embora possam existir outras interpretações, não é arbitrário, ou improcedente, concluir com Simone de Pétrement que o Romantismo foi uma forma de Gnose.

II. Distinções

Até agora, falamos de Romantismo. Poder-se-ia perguntar a que Romantismo nos referimos. Para precisar bem o que pretendemos estudar, convém distinguir entre o Romantismo alemão e o dos outros países. Com efeito, o Romantismo alemão pode ser considerado como o Romantismo por excelência, não só porque deu origem aos demais, mas principalmente porque ele foi o único estabelecido sobre fundamentos filosóficos que lhe deram um claro caráter metafísico (Cfr. Gerd Bornheim – Filosofia do Romantismo in O Romantismo, org. J. Guinsburg, p. 77).

Em segundo lugar, para comodidade de nosso estudo, é preciso distinguir vários aspectos do Romantismo. Ladislao Mittner distingue o Romantismo enquanto categoria psicológica do Romantismo, nós, enquanto categoria histórica.

Enquanto categoria psicológica, o Romantismo seria um fruto de uma sensibilidade impressionável, irritável, reativa. A sensibilidade romântica se caracteriza pela irresolução, pela ambivalência, pela nostalgia de uma felicidade possuída e perdida, por um desejo eternamente insatisfeito:

um desejo que não pode jamais alcançar a própria meta, porque não a conhece e não quer ou não pode conhecê-la: é o ‘mal’ (Sucht) do ‘desejo'(Sehenen). Mas, o próprio ‘Sehnen’ significa muito frequentemente um desejo irrealizável, porque é indefinível, um desejar tudo e nada ao mesmo tempo (…) “Sensucht” é verdadeiramente uma busca de desejo, um desejar o desejo, um desejo que é sentido como inextinguível, e que, exatamente por isso, acha em si mesmo a própria plena satisfação (Ladislao Mittner, op. cit. p. 700).

A satisfação do romântico está na insatisfação. Ele se compraz nela (Gerd Bornheim, op. cit. p. 95).

A psicologia romântica se caracteriza pelo querer sentir o sentimento, desejar o desejo, por amar o amor (Cfr. Benedito Nunes – “A visão romântica” in O Romantismo, org. J. Guinsburg, p. 52).

Enquanto categoria histórica, a “grosso modo”, o Romantismo é o movimento que se desencadeou na Alemanha, desde o final do século XVIII até meados do séc. XIX.

Mário Puppo, por sua vez, distingue três significados no Romantismo:

a) o literário – fruto de uma mudança de gosto, ocorrida no final do século XVIII e o princípio do século XIX, que exigia novas formas de expressão.

b) o histórico-cultural – referente a um estado de ânimo anti-iluminista.

c) o ideal ou categorial – em que o Romantismo se manifesta como expressão de uma exigência eterna do espírito humano (Cfr. Mario Puppo, op. cit., p. 10).

Levando em conta essas distinções, parece-nos que no Romantismo deveriam se distinguir os seguintes aspectos:

a) o Romantismo enquanto fenômeno psicológico, isto é, enquanto particular estado de alma.

b) enquanto escola artística (e não apenas literária) que exprimia não só um estado de alma, mas principalmente uma visão especial do homem, do universo e de Deus.

c) o aspecto filosófico do Romantismo, tal qual se manifestou no idealismo alemão, particularmente no pensamento de Schelling.

d) o aspecto místico e religioso do Romantismo, pelo qual ele se relaciona com as correntes esotéricas, alquímicas e cabalistas, e que dá ao Romantismo um caráter gnóstico no seu posicionamento face a Deus, ao universo e ao homem.

É este último aspecto que enfocaremos de modo particular. Em primeiro lugar, porque dele é que derivaram a filosofia idealista e a escola romântica, assim como ele é o causador ou a explicação da psicologia romântica. Em segundo lugar, porque é esse o aspecto que está diretamente relacionado com a tese que pretendemos demonstrar. Evidentemente, não deixaremos de aproveitar elementos relacionados com os demais aspectos do Romantismo, sempre que eles forem úteis à consecução de nosso objetivo.

III. Os veios originais do Romantismo Alemão

Estudando as origens do Romantismo alemão, podemos distinguir três veios formadores principais:

  1. O veio esotérico;
  2. O veio religioso;
  3. O veio filosófico.

Esses três veios conduzem a um nome e a uma doutrina. O nome é o de Jacob Boehme. A doutrina é a da Gnose, quer na sua forma cristã, quer na sua forma judaica, que é a Cabala.

  1. O veio esotérico

Auguste Viatte, na sua excelente obra sobre as fontes ocultas do Romantismo, mostra que alguns veem nesse movimento o desabrochar do misticismo católico, enquanto outros o consideram o “protestantismo na literatura”. Viatte considera que há vários romantismos, com fontes diversas, mas de todas essas fontes participou o Iluminismo, amalgamando-as num todo equívoco e bizarro (Cfr. Auguste Viatte – Les sources ocultes du Romantisme, Iluminisme et théosophie, Honoré Champion, Paris, vol I pp. 5 e 6). Vulgarmente se entende por Iluminismo o sistema filosófico racionalista, que dominou largas camadas do mundo cultural e político no século XVIII.

Por outro lado, são conhecidos como “iluminados” os membros da seita secreta fundada por Adam Weishaupt, na Baviera, no século XVIII (Cfr. Jacques D’Hondt – Hegel secret, PUF, Paris, 1968, pp. 62-63).

Contra a monopolização do título de iluminados aos sectários de Weishaupt, já no século XVIII, protestavam Joseph de Maistre e Kircberger. Para este último, iluminados eram, propriamente, os esclarecidos por luzes ou graças divinas e que compreendiam as limitações da razão.

A palavra iluminado significava originalmente um homem cuja razão e conhecimentos naturais eram retificados, sustentados, esclarecidos e aperfeiçoados pelo Espírito Santo; tais haviam sido os Apóstolos, tais eram todos os verdadeiros santos da Igreja cristã, tais tinham sido e tais são ainda todos os homens efetivamente religiosos, que são esclarecidos pelo alto, na proporção da pureza de seu coração e do sentimento profundo da insuficiência e dos limites de sua própria razão (Carta de Kirchberger a Marsanne, em 1 / XI / 1796, citada por A. Viatte, op. cit. pp. 7 e 8).

Kirchberger afirma, nessa mesma carta, que, propositadamente, os inimigos da religião, para confundir, começaram a chamar de Iluminados os visionários que, por vezes, eram de boa-fé. A seguir, charlatães e impostores, do tipo de Cagliostro, se arrogaram esse título, para enganar incautos. Mas, piores que todos eles foram os racionalistas, inimigos da religião, que adotaram o nome de iluminados, embora não cressem na iluminação sobrenatural. Tais foram os seguidores de Weishaupt, aos quais já nos referimos.

Mas, a classe mais perigosa de todas era o bando numeroso que inunda ainda agora uma parte considerável da Europa, que não somente não se crê iluminada, mas que não quer que se creia nisso, que são os antípodas não só da superstição dos visionários, como também da religião dos verdadeiros cristãos, e que só tomaram o nome de iluminados, ou em alemão der Iluminaten, como um nome de facção, um termo de reunião, para enganar os curiosos e para lançar uma nova confusão nas ideias… Foram eles que foram expulsos da Baviera há alguns anos. Foi com eles que o Conde de Mirabeau se ligou durante sua estadia em Berlim… (Kirchberger, carta citada por A. Viatte, op. cit. vol I, p. 8).

Jacques D’Hondt dá uma pequena lista destes iluminados da Baviera, da qual fazem parte, entre outros, os nomes de Herder, Wieland, Goethe, o futuro Padre redentorista Zacarias Werner, o Conde Stolberg, que se tornou, depois, devoto de Anna Katharina Emmerich e amigo do Bispo Sailer, Pestalozzi, Mozart, Dalberg, Mirabeau e Taleyrand. (Cfr. Jacques d’Hondt, op. cit. pp. 63, 64 e 65).

O Iluminismo verdadeiro seria, pois, segundo Kirchberger, o religioso, aquele que reconhece que a verdadeira luz que ilumina e guia o homem vem de Deus e não da razão. Não se confunde, porém, essa iluminação sobrenatural com a de nenhuma confissão religiosa particular. Acreditavam os “iluminados” que em qualquer religião se poderia receber a iluminação divina.

“O iluminismo não se reduz ao ecletismo, mas, historicamente, ele permanece inseparável dele, como, aliás, toda teosofia” (Antoine Faivre – L’ésotérisme au XVIII ème siècle en France et en Allemagne, Seghers, Paris, 1973, p. 62).

Depois do ecletismo, a segunda nota do iluminismo foi o esoterismo.

Esses iluminados consideravam-se possuidores de uma doutrina recebida ou diretamente de Deus, ou por meio de uma longa tradição imemorial, que se transmitira secretamente através das idades:

‘Ciência de Deus’, luz vinda do alto: a etimologia nos dá a melhor definição da teosofia e do iluminismo. Os místicos que professam essas doutrinas acreditam possuir, por uma revelação direta, os segredos do mundo superior; a “inspiração”, e mais frequentemente, a associação secreta os caracterizam: “todos esses homens, pouco satisfeitos com os dogmas nacionais e com o culto recebido, entregam-se a pesquisas mais ou menos ousadas sobre o cristianismo que eles chamam de primitivo (Joseph de Maistre “Quatrième chapitre sur la Russie”, Oeuvres, VIII, 329).

Assim os descrevia Joseph de Maistre; encontram-se, por outro lado, iluministas que mergulham a transcendência do cristianismo em não sei qual “religião natural” (A. Viatte – op. cit. pp. 17-18).

Em que autores buscavam os ‘Iluminados’ sorver o que eles chamam de “Tradição”?

Da Antiguidade eles liam Platão e Plotino. Ao final do século XVIII, na Alemanha, ficaram em moda os hindus. E.T. A. Hoffmann cita o Bhagavad – Gita, em sua obra O vaso de Ouro (E.T.A. Hoffmann -“Le vase d’Or). Do fim da Idade Média, foram desenterrar Mestre Eckhart, cujos escritos encantaram Franz von Baader e Hegel. Liam também os místicos alemães e holandeses: Tauler, Suso, Ruysbrock, a Imitação de Cristo, como também os espanhóis Santa Teresa e São João da Cruz. A estes autores acrescentavam os alquimistas mágicos e cabalistas cristãos como Paracelso, Agripa, Reuchlin, Guillaume Postel, Pico de Mirandola, Valentim Weigel, Van Helmont, Kircher, Fludd.

Mais do que por qualquer outro autor, a teosofia dos iluminados e dos românticos foi influenciada por Jacob Boehme. O sapateiro místico de Gorlitz marcou muito especialmente o esoterismo martinesista – (de Martines de Pasquallys) – e o chamado martinismo do “filósofo desconhecido”, Louis Claude de Saint Martin, que traduziu as obras de Boehme para o francês e as fez repercutir depois nos ambientes esotéricos alemães, especialmente através de Franz von Baader.

Místicos católicos como São João da Cruz e Santa Teresa, junto com alquimistas como Paracelso, magos como Agrippa, cabalistas como Reuchlin, e teósofos como Boehme, só poderiam dar uma mistura eclética, heterogênea, confusa e, por vezes, contraditória:

“Não procuremos nada de coerente em uma doutrina provinda de antepassados tão disparatados. O iluminismo antes forma um conjunto de tendências do que um sistema determinado: analogias puramente ‘literárias’ se substituem à unidade filosófica. Lógicos medíocres, os mesmos autores acomodar-se-ão com princípios que nós julgaríamos contraditórios. Entretanto, eles afirmam se compreender. Sua formação os põe de acordo sobre algumas ideias essenciais. Caro, em seu Ensaio sobre Saint Martin, formula vários deles, dos quais é raro que não se harmonizem:

‘Na origem de todas as coisas, a unidade…(Depois) a emanação começa, ela não se deterá mais. Então nascem essas miríades de naturezas inteligentes… irradiação da vida divina… O homem é um desses seres emanados… A pré-existência das almas neste homem-verbo, sua separação da unidade, sua corporizarão, seu exílio, seu retorno à unidade…; sua transformação em Deus… O simbolismo e a teoria dos números, a teurgia e a posse do mundo invisível pela magia ou pelo amor, completam esse conjunto de dogmas invariáveis… O panteísmo está no final de todos esses sistemas” (A. Viatte – op. cit. o. 37).

Estaria fora dos limites do presente trabalho uma análise mais profunda da doutrina esotérica do iluminismo. Limitamo-nos, pois, a dar um rol dos principais temas e teses mais comuns tratados e defendidos por esses autores:

a) Filosofia “analógica”, isto é, que vê uma correspondência mágica entre Deus, o universo e o homem, de tal modo que o homem seria um microthéos, enquanto Deus e o universo seriam um macro-antropos.

b) Concepção de uma Igreja espiritual, mística, formada por todos aqueles que aderem à tradição esotérica. As igrejas estruturadas seriam meros veículos esotéricos para conduzir os iluminados à verdadeira Igreja espiritual esotérica, ecumênica e anti-dogmática.

c) Teosofia. Preocupação e pretensão de conhecer o processo de vida da Divindade.

d) Conhecimento da verdadeira natureza divina do homem: no homem, segundo eles, há uma partícula ou centelha divina (a “Fúnkenlein” de Mestre Eckhart).

e) Concepção de que a cosmogonia foi um processo resultante de uma queda da própria Divindade.

f) Crença de que houve uma Idade de Ouro

g) Crença de que o primeiro homem teria tido um corpo espiritual, que era andrógino e divino. Este Adão primevo se reproduziria espiritualmente e não por via sexual.

h) Crença de que o primeiro homem, como Deus, sofreu uma queda que o materializou, dando-lhe um corpo sexuado e aprisionador da partícula ou espírito divinos.

i) A queda, além de materializar o homem, sujeitara-o ao espaço e ao tempo, assim como o tornara escravo da natureza e da razão que o enganava, pois fizera com que perdesse a intuição divina, a qual identificava Deus, o universo e o homem.

j) O mundo seria corpo e prisão da divindade em perpétua evolução, à qual se seguiria o processo histórico, revelador da Divindade. Deus se reconstituiria no final do processo histórico.

l) Deus se revelaria no coração de cada homem, independentemente da religião a que pertencesse. Daí a valorização da mística e do inconsciente como fontes de revelação.

m) Por trás da letra da Sagrada Escritura, haveria uma doutrina oculta, à qual se acederia por meios místicos, iniciáticos ou cabalísticos.

n) O homem teria poderes ocultos, que lhe permitiriam pôr-se em contato com a Divindade e transformar magicamente o mundo. A Alquimia seria um desses meios.

o) No final do processo histórico, dar-se-ia a reintegração do homem na Divindade, a recuperação da perfeição original e a reconstituição da Idade de Ouro ou Idade do Amor, em que todos seriam um. Só então o homem e a natureza seriam redimidos. Aceitava-se ainda a apocatastasis, ou redenção universal, inclusive do demônio.

p) A redenção do homem e da Natureza dar-se-iam não por uma graça sobrenatural, mas pelo desenvolvimento de potencialidades imanentes ao Universo e ao ser humano. O homem seria salvador de si mesmo, o redentor que se auto-redime.

q) Seria preciso espiritualizar a matéria para redimi-la, já que ela era espírito cristalizado, e o espírito, matéria sublimada.

r) Dialética. Todo o processo da evolução divina, assim como a evolução e o processo histórico seriam dialéticos, porque a Divindade e o ser seriam constituídos de princípios contrários e iguais. Segundo Jacob Boehme, o ser seria formado de sim e de não, ao mesmo tempo, e o sim seria idêntico ao não.

Este elenco de ideias esotéricas e iluministas, embora fosse ensinado de modo vago, e, às vezes, disparatado, forma um sistema bem conhecido. E este sistema tem o nome de Gnose. Todas essas teses, outrossim, podem ser encontradas nos autores românticos, e são elas que fazem do Romantismo um movimento gnóstico.

2. O veio religioso

Introdução

Georges Lefèbvre comenta, em sua obra sobre a Revolução Francesa, a importância do misticismo na Alemanha:

“Não foi um acaso, porque em nenhum país o misticismo reinava tanto. Ele anima o luteranismo e, pelo pietismo e os irmãos morávios, há filiação entre Boehme, o sapateiro teósofo do século XVII e os românticos” (Georges Lefèbvre – La Révolution Française, PUF, Paris, 1951, p. 613).

E, mais adiante, falando da filosofia dos românticos, Lefèbvre afirma:

Eles esboçaram uma filosofia que jamais tomou uma forma coerente e sistemática (…) eles conceberam inicialmente o mundo como o fluxo inesgotável e perpetuamente mutável das criações da força vital; sob a influência dos sábios e de Schelling, eles aí introduziram uma “simpatia universal” que se manifestava, por exemplo, na afinidade química, no magnetismo e no amor humano; as efusões religiosas de Schleiermächer tendo-os tocado, eles acabaram por tomar de empréstimo de Boehme a ideia de Centrum, alma do mundo e princípio divino. De todo modo, é o artista de gênio que ele, só pela intuição ou mesmo pelo sonho e a magia, entra em contato com a realidade verdadeira e, nele, esta experiência misteriosa se transforma em obras de arte. O poeta é um sacerdote e esta filosofia se remete ao milagre (G. Lefèbvre, op. cit. pp. 614-615).

Jacob Boehme

Lefèbvre liga, pois, o Romantismo a Boehme e ao pietismo. Jacob Boehme (1575-1624) foi um sapateiro luterano que cresceu em meio às disputas que opunham místicos e alquimistas à ‘ortodoxia luterana’. Embebeu-se das doutrinas dos que ele chamava “altos mestres”: Paracelso, Franck, Shwenkfeld, Valentim Weigel, e de outros autores alquimistas, astrólogos e místicos.Suas obras expõem as doutrinas que ele teria recebido por meio de visões místicas. Sua primeira obra foi Die Morgenröte in Aufgang (A aurora nascente, 1612).

“Aí a gente acha de tudo: mística, magia, alquimia. ‘Teologia, filosofia, astrologia’, eis o que Boehme quer aí expor”. (Alexandre Koyré- La philosophie de Jacob Boehme, Vrin, Paris, p. 34).

Outras obras de Jacob Boehme foram: De tribus principiis (1619); De triplice vita hominis (1620); Psychologia vera (1620); De incarnatione Verbi (1620); Sex puncta theosophica (1620); De signatura rerum (1622); Mysterium magnum (1623); Questiones theosophicae (1624), além de obras menores.

A doutrina de Boehme é extremamente confusa e hermética. A mesma palavra tem, em suas obras, os sentidos mais variados. Para o termo ‘natur’, Alexandre koyré apresenta mais de dez sentidos diferentes. Além disso, Boehme inventa termos cujo significado não expõe claramente. Segundo Ronald D. Gray,

“O sistema labiríntico de Boehme, embora mais elaborado do que o dos alquimistas, exigiria em si mesmo um volume de comentário” (Ronald D. Gray – Goethe, the Alquimist, Cambridge University Press, 1952, pp. 38-39).

Sua filosofia tem profundos laços com a alquimia:

“Boehme fez mais do que tomar emprestada uma larga parte de seu vocabulário da alquimia. Ele adotou toda a cosmovisão da alquimia que ele desenvolveu em um sistema filosófico” (H. H. Brinton – The mystic will, p. 81, apud Ronald D. Gray, op. cit. p. 38).

Uma das fontes mais importantes do pensamento de Boehme foi Paracelso, de quem ele adotou as ideias e a terminologia alquímica. A. koyré conta que Boehme recebeu o apoio de …

“…médicos paracelsistas e de alquimistas, que viam, com razão, aliás, na pessoa e na doutrina do teósofo o termo de um movimento saído de Paracelso” (A. Koyré- op. cit. p. 44).

Em síntese, Boehme ensina, como a Cabala, que se deve fazer uma distinção entre a Divindade e Deus. Aquela não seria ser: seria o vazio, o abismo, o nada absoluto, o “Ungrund” (Cfr. Jacob Boehme – Mysterium Magnum I, 22 – trad. de N. Berdiaeff, Ed d’Aujour’hui,Paris, 1978).

Este “Unngrund” de Jacob Boehme corresponde ao Ein Sof da Cabala e ao Deus gnóstico de Basílides e de Valentino. Esse Ungrund enquanto Uno é o Absoluto, a Liberdade absoluta. (Cfr. Jacob Boehme – De la base sublime et profonde des six points thésophiques, I, 7; I, 11 e 12; I, 54 – trad. Louis Claude de Saint Martin, in Cahiers de l’hermétisme, Jacob Boehme, Albin-Michel, Paris, 1977).

Do Uno, proviriam dialeticamente a Vontade e o Desejo (Cfr. J. Boehme – Mysterium Magnum II,2; III,1; IV, in Cahiers de l’Hermétisme – Jacob Boehme, trad. Louis Claude de Saint Martin, Albin-Michel, Paris, 1977), respectivamente força centrífuga e centrípeta. A Divindade, para se conhecer, projetar-se-ia ad extra, na “Sofia” ou Virgem Eterna, na qual estariam as ideias ou arquétipos de todas as coisas (Cfr. J. Boehme – Des six points théosophiques, II 22-23, ed. cit.) É quando se criam as coisas que Deus passa a ser, porque só então passa a ter corpo.(Cfr. A. Koyré, op. cit. pp. 355-357; 360-363).

Boehme descreve o processo divino como emanação de sete qualidades ou essências de Deus. Cada uma delas seria uma etapa do processo divino, e, ao mesmo tempo, Deus em sua totalidade. Ele insiste em dizer que as sete qualidades divinas não emanam uma da outra, mas

que cada uma contém todas as sete (Cfr. J. Boehme – Mysterium Magnum, III,8-18; V, 1-20; VI, 1-21; ed. cit.).

A criação teria sido o resultado de uma queda irracional da Divindade. Deus teria criado Lúcifer, o qual teria corrompido a criação. Então Deus teria feito uma segunda criação (Cfr. A. Koyré – op. cit. pp. 427-428).

Logo, o mal, tanto quanto o bem, teria origem divina. O universo seria vivo. A vida seria o grande fluxo, a Tinctur, que, saindo de Deus, se derrama sobre o universo e reconduz tudo a Deus (A. Koyré, op. cit. p. 447).

No homem, como em todas as coisas, haveria um quid divino que o torna um Microthéos. A renúncia ao ser, à individualidade, ao desejo, reconduziria o homem ao estado divino original. Deste modo, o homem seria redentor de si mesmo. Adão reuniria em si o infinito e o finito, o masculino e o feminino. Ele teria corpo, porém não animalidade, e possuiria poderes mágicos. Sua queda teria sido provocada por seu amor à matéria, e, por isso, teria passado a ter corpo material animalizado, teria perdido seus poderes mágicos e sua intuição, além de ter provocado a separação dos sexos. (Cfr. A. Koyré- op. cit. pp. 454-465; 470-471).

O quid divino que haveria no homem seria para ele fonte de revelação pessoal. Por isso, ninguém poderia impor dogmas a ninguém. Em matéria de fé, deveriam reinar liberdade, tolerância e ecumenismo. Por isso, a Bíblia deveria ser interpretada livremente (A. Koyré – op. cit. pp. 492, 493, 494, 498).

A verdadeira igreja, para Boehme, deveria ser invisível e pneumática, porque Cristo pode nascer na alma de pessoas de qualquer religião, até mesmo não cristã. Da Igreja espiritual fariam parte todos os que seguissem sua revelação interior, qualquer que fosse ela, desde que praticassem o Amor. A verdadeira Igreja seria a do Amor (Cfr. A. Koyré- op. cit. pp. 498-502).

Em todo ser manifestar-se-ia um processo dialético, pois cada coisa seria feita de sim e de não. O choque destes princípios opostos produziria a rotação, revolução ou evolução. O processo histórico conduziria ao Tempo dos Lírios“Lilienzeit” – em que se teria felicidade perfeita, e, no final da evolução dialética universal, tudo se reuniria num Cristo cósmico, síntese do espírito e da matéria, do bem e do mal, da luz e das trevas, do masculino e do feminino, do tudo e do nada (cfr. A. Koyré – op. cit. pp. 393-394).

A doutrina de Boehme, claramente gnóstica, tem relação direta com a Cabala e com a Alquimia. Pontos que apresentam nítido caráter cabalístico são:

a) A tese de que se deve distinguir a Divindade do Deus revelado.

b) A concepção de que a Divindade é incognoscível e é, ao mesmo tempo, Nada e Tudo, como o Ein Sof da Cabala.

c) A ideia de que em Deus, como em tudo, há um choque de princípios opostos.

d) A concepção de que na Divindade há um processo evolutivo.

e) A correspondência entre os dez Sefiroth da Cabala e os três princípios e as sete qualidades divinas de Boehme.

f) A ideia de que o mal tem origem na própria essência de Deus.

g) A crença de que, em Deus, há elementos sexuais, masculino e feminino.

h) A afirmação de que o universo é o corpo de Deus.

i) A tese de que o universo é um ser vivo.

j) A afirmação de que Adão era andrógino, e que ele tinha um corpo não material, antes da queda.

k) A ideia de que Adão já havia caído antes da existência de Eva.

l) A crença de que foi em consequência da queda que Adão passou a ter corpo material, que se deu a separação dos sexos, e que a geração passou a ser por união sexual.

m) O relacionamento do poder mágico com as palavras, assim como o relacionamento do ser com a liberdade.

n) A tese de que a Sagrada Escritura tem um sentido oculto.

Alexandre Koyré não aceita a tese de Stockl de que a doutrina de Lutero, assim como a de Boehme, seria “maniqueísmo cabalístico”, pois considera o pensamento de Boehme, até cero ponto, original. Apesar disso, confessa, em sua obra já citada, que:

a) Boehme conhecia a Cabala (A. Koyré op. cit. p. 49)

b) Que nos livros de Boehme há ideias de origem cabalística (idem p. 185).

c) Que Boehme utiliza duas vezes a palavra Cabala. (idem p.127).

d) Concede que talvez Boehme tenha sofrido influência indireta da Cabala (idem p. 123)

e) Confessa que o esforço de Jacob Boehme para conciliar suas sete qualidades e seus três espíritos, a fim de formarem um conjunto de dez, parece ter-se dado por influência cabalística (idem p. 277).

f) Confessa que, de fato, o sistema dos Sefiroth da Cabala influenciou Boehme (idem p. 287).

g) Que Boehme, na obra Mysterium Magnum, procura dar uma interpretação cabalista do nome de Jesus, utilizando o processo que os cabalistas chamam de Notaricon.

Gershom Scholem, uma das maiores autoridades em mística judaica e Cabala, considera que:

A doutrina de Boehme das origens do mal, que criou tanta agitação, na verdade, ostenta todos os traços do pensamento cabalístico (…) Boehme, mais do que qualquer outro místico cristão, mostra a mais estreita afinidade com o cabalismo(…), a conexão entre suas ideias e as da Cabala teosófica eram bem evidentes para seus seguidores, desde Avraham von Franckenberg (m. 1652) até Franz von Baader (m. 1841), e ficou a cargo da literatura moderna a tarefa de obscurecê-la (Gershon Scholem – A Mística Judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 232-239).

“(…) ele [Oetinger] fez conhecer na Alemanha o visionário erudito sueco Emanuel Swedemborg. De outro lado, ele inaugurou uma troca de ideias com os representantes da Cabala judaica, esse movimento místico que não permanecera desconhecido do próprio Boehme. Quando ele [Oetinger] visitou Koppel Hecht, célebre cabalista pertencente à comunidade judaica de Franckfort, a fim de obter dele informações sobre o esoterismo judaico, este lhe deu uma resposta memorável. Oetinger assim conta a conversa:

“Ele me disse que, pelo que concerne à Cabala, nós cristãos possuímos um livro que dela fala mais explicitamente do que o Zohar. Eu perguntei: “Qual?” Ele respondeu: “Jacob Boehme”, e me falou logo da concordância entre os textos deste autor e os da Cabala.”

Gershom G. Scholem, sem dúvida o melhor conhecedor contemporâneo da mística judaica, diz a esse propósito:

“Não há razão alguma para considerar este relato como mítico; pode-se, aliás, lembrar que, no final do século XVII, um outro adepto da mística de Boehme, Johann Jakob Spaetch, ficou tão impressionado pela afinidade existente entre esta e a Cabala judaica que ele se converteu ao judaísmo”. Por outro lado, Scholem afirma que existe “de toda evidência” uma correlação entre as ideias de Boehme e as da cabala teosófica, representada por uma linha de pensadores que ia de Avraham von Franckenberg (seu contemporâneo e biógrafo) até Franz von Baader (1765-1841) (Gerhard Wehr – “Jakob Boehme” in Cahiers de l’Hermétisme, Albin-Michel, paris, 1977, p. 100).

A influência das doutrinas de Jacob Boehme na religião, na filosofia e na arte foi muito grande. Porém, interessa-nos agora tratar apenas de sua influência no campo religioso.

O Pietismo

Desde os primórdios da Reforma, formaram-se duas correntes nesse movimento heterodoxo: uma, mística; e outra, racionalista. O luteranismo oficial representa a segunda corrente, enquanto os movimentos anabatistas e milenaristas representam a primeira.

Embora tivesse proclamado a doutrina do livre-exame da Sagrada Escritura, Lutero mostrou-se intolerante com todos os que não concordavam com sua interpretação particular. Ele excomungou Storch e Münzer, e pregou a guerra contra os camponeses anabatistas (Cfr. Norman Cohn – Les fanatiques de l’Apocalipse, Julliard, Paris, 1962).

O triunfo luterano sobre os milenaristas em Frankenhausen não liquidou o problema quiliástico. Em Münster, João de Leyde se fez coroar Rei-Messias no cemitério da cidade, e, depois de um reinado de terror, de comunismo e de promiscuidade sexual, Münster, a Nova Jerusalém, foi tomada de assalto pelas tropas do Bispo da cidade. João de Leyde pereceu na tortura, e, durante séculos, seus ossos ficaram numa jaula de ferro suspensa nas torres da Catedral. Hitler ordenou o apeamento dessa jaula, em 1933.

Na Alemanha luterana, entretanto, a chama do misticismo milenarista era mantida acesa em pequenos conventículos secretos. Nesses círculos, o luteranismo oficial era acusado de ter-se corrompido por haver trocado o espírito da Sagrada Escritura que vivifica, pela letra que mata. Dizia-se que a igreja luterana oficial se esclerosara em estruturas rígidas, semelhantes às do catolicismo. Essa igreja luterana ignorava os anseios místicos dos fiéis, pois se preocupava apenas com cerimônias, leis, dogmas e excomunhões. Era “igreja de pedra”, vazia do Espírito e que perseguia a igreja do coração, formada pelos fiéis em cujas almas se revelava o Espírito de Deus (Cfr. L. Mittner – op cit. pp. 35-36).

Consideravam os místicos que uma igreja organizada, institucionalizada, tal como o Estado, era um mal necessário. A igreja de pedra era como a lâmpada, enquanto que a igreja do coração, a igreja mística, seria como a luz (Cfr. L. Mittner, op cit. pp 35 e 37).

A corrente mística do protestantismo teve seu “profeta” na figura de Jacob Boehme, cujos escritos teosóficos, alquímicos e cabalistas tiveram uma enorme influência na história do pensamento europeu (Cfr. Ernst Benz – Les sources mystiques de la philosophie romantique allemande, Vrin, Paris, 1968.

Foi da doutrina de Boehme que nasceu o pietismo, religião do “coração”, religião do sentimento, oposta ao racionalismo luterano, e do qual nasceriam a filosofia e a escola romântica alemãs.

O pietismo teve, porém, como fundador propriamente dito, Philipp Jacob Spenner, que, no fim do século XVII, instituiu em Frankfurt am Mein os “Collegia pietatis”, “ecclesiola in Ecclesia”, conventículos semiclandestinos para manter o fervor espiritual dos fiéis que se constituíram em células religiosas, que se multiplicaram na Alemanha.

O nome pietismo vem não só dos “Collegia Pietatis”, fundados por Spenner, como também dos seus “Pia desideria”, ou ainda, porque os seus sectários usavam continuamente a palavra ‘pietas’(Cfr. L. Mittner, op. cit. p. 40).

O pietismo, assim como a anabatismo, os Irmãos do Livre Espírito, e tantas outras seitas místicas, não tem limites definidos. Ele é impreciso como nevoeiro:

1º) porque ele não admitia estrututras e institucionalizações;

2º) porque recusava qualquer dogmatismo. Assim, ele se misturava ecumenicamente com outras seitas protestantes. Mittner compara o pietismo ao afloramento de um rio cársico. Como no Carso, onde os rios afloram e desaparecem na terra, para reaparecer depois quilômetros além, assim também o Pietismo seria um afloramento de um único grande movimento místico que percorre a história (Cfr. L. Mitter, op. cit., p. 40).

Por nosso lado, acrescentaríamos que esse grande rio cársico, que ora aparece com um nome, ora volta a ser subterrâneo, para reaparecer com outro nome, mas sempre com as mesmas águas, chama-se Gnose.

O único dogma de que os pietistas faziam questão era o da Redenção por Cristo. A tudo o mais se poderia renunciar em proveito da união dos cristãos. Os pietistas faziam mesmo questão de proclamar o seu espírito de renúncia e de concessão em matéria de fé, porque desejavam veementemente a união de todos os cristãos no amor. Eram absolutamente relativistas e tolerantes. O ecumenismo era a sua felicidade. Se o único dogma de que faziam questão era o da Redenção por Cristo, não se julgue porém que eles o entendiam no sentido comum. Cristo era o Redentor, mas não era Deus. Cristo era, para eles, sobretudo um homem, um irmão, um amigo. No máximo, ele seria o homem ideal, como dizia o pietista Zinzendorf (L. Mittner, op. cit. p.43).

Religião da amizade, o pietismo se preocupava em estabelecer entre o membro da seita e Cristo uma relação de amizade sentimental e igualitária. Uma amizade joânica. Nesse amor por Cristo-homem, Zinzendorf planejava realizar a união não só dos cristãos, como também dos pagãos, respeitando a fé de cada um. Para ele, um único dogma bastava: o da humanidade de Cristo: a Santíssima Trindade seria formada por “Papai Deus”, “Mamãe-Pomba” e “Irmão-Cordeiro” (Cfr. L. Mittner – op. cit., p. 43). O Espírito Santo, chamado de Mamãe Pomba, era considerado por Zinzendorf como a divina Sofia, ou divina Sabedoria, e a segunda Eva, mãe de todos os crentes (Cfr. L. Mittner – op. cit., p. 41). Ora, é curiosa essa confusão do Espírito Santo com a divina Sabedoria, pois que a Sabedoria é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e não a Terceira. Estas denominações do Espírito Santo como a Divina Sofia, Segunda Eva, ou Mamãe Pomba insinuam uma interpretação sexual da Trindade Divina, própria dos movimentos gnósticos. Na Gnose Valentiniana e na Cabala é que se fala numa Sofia inferior apresentada como elemento feminino em Deus (Cfr. G. Scholem – A mística judaica, Perspectiva, São Paulo,1972; Hans Leisegang – La Gnose, Payot, Paris, 1951).

Para o pietismo, seguidor de Boehme, o mundo era uma emanação da divindade, e o espírito de Deus se achava espalhado em todos os seres do universo. Esse imanentismo levava o pietismo a ter um culto religioso da natureza, a buscar fundir-se no Todo universal, a procurar estabelecer um contato com os outros homens, e mesmo com as coisas, por meio de uma simpatia universal. O pietista vivia dialeticamente, sentindo Deus distante e, ao mesmo tempo, próximo; Deus “absconditus” e Deus manifesto; e vendo o infinito imanente nas coisas finitas.

Como todos os movimentos místicos gnósticos, o pietismo desprezava a matéria, o corpo, considerando-os como prisão do espírito.

O homem deveria buscar a Deus no íntimo de seu coração. Deus falaria a cada pessoa através de seus sentimentos. A razão e a vontade deveriam ser combatidas, pois seriam causas de individualização, e empecilhos, portanto, à fusão no Todo Universal. Era preciso “reentrar” em si mesmo, e, para isto, era necessário combater as qualidades pessoais, egoísticas; resistir às imagens ilusórias dos sentidos, fruto da multiplicidade ilusória da vida real concreta (Cfr. L. Mittner – op. cit. p. 47).

A razão, especialmente, impediria o retorno ao Uno divino, pois ela, definindo as coisas, as separa. Também era preciso renunciar à vontade individual, considerada egoísta, para alcançar uma atitude de indiferença, semelhante à dos budistas e dos esotéricos.

Essa renúncia à vontade levava o pietista à passividade. Condenava-se a ação, especialmente a ação política.

Deste modo, desprezando a razão e aniquilando à vontade, só restavam os sentimentos. A relação do homem com os seus semelhantes, ou com a natureza, fazia-se apenas através dos sentimentos. Quanto menos precisos e definidos esses sentimentos, melhor seria pois seriam sentimentos vagos, sem razão, sem base lógica. Daí a preferência pietista pela música, a mais vaga e menos explícita das artes.

Acreditando que o mundo seria uma emanação divina, uma degradação misteriosa da própria divindade, que o espírito divino estaria aprisionado no corpo humano material, era normal que o pietista se sentisse “exilado” e triste neste mundo. Daí sua melancolia e tristeza. O pietista, como o futuro romântico, se comprazia na tristeza. “Sou tão mísero, débil e doente”, confessa melancolicamente Tersteegen, que ama a tristeza do entardecer:

“Doce, obscura, suave e silenciosa é a bela hora do crepúsculo” (Cfr. L. Mittner, op. cit. p. 42).

O pietista gostava também de padecer, sofrer pacientemente as doces amarguras da vida. Ele não buscava o prazer e a alegria. Não amava os jogos e as diversões, nem a boa comida. Gostava do que é simples. Era um introvertido em contínua autoanálise, buscada como fim em si mesma.

Uma simpatia universal, por outro lado, punha em comunicação o espírito divino encarcerado em todos os seres concretos. A amizade era a manifestação dessa simpatia, veículo para a fusão cósmica. Como diz Mittner, o pietismo é a religião do sentimento íntimo e individual, a religião das amizades místicas. Essa amizade mística, sentimental e lânguida, principiava na relação da alma com Cristo. O pietista deveria ter para com Cristo uma amizade pessoal, igualitária, sentimental. Dessa primeira amizade deveriam decorrer todas as outras.

O pietismo era então organizado em células de três pessoas que deviam ter entre si uma amizade “particular”, sentimental e mística. Era o que eles chamavam “o trevo”. Os três participantes do trevo deviam estabelecer um pacto de amizade, confirmado, muitas vezes, por uma comunhão. O trevo era o primeiro núcleo, ou célula, de um conventículo pietista. O próprio matrimônio era visto como “amizade conjugal”, amizade de almas, de fundo religioso. No matrimônio também se formava, muitas vezes, um trevo ou um triângulo filadélfico entre os dois cônjuges e um terceiro elemento que patrocinara ou favorecera o casamento, renunciando o seu amor por um dos cônjuges. Esse terceiro elemento, que sacrificava o seu amor, era como um substituto de Cristo, um vice Redentor. Esse amor, entre os pietistas, era chamado amor filadélfico, e se opunha ao amor filantrópico preconizado pelos racionalistas, que mandavam amar igualmente todos os homens.

Em consonância com essa concepção, Zinzendorf renunciou a duas noivas, oferecendo-as a outros pietistas, para convertê-los. Casou-se, depois, e sua mulher lhe deu filhos. Então, ele a deixou para um amigo, enquanto partia para os Estados Unidos com uma “irmã” jovem que ia auxiliá-lo na fundação de uma colônia pietista na América. Quando sua mulher morreu, ele se casou com essa jovem.

A mística pietista, como toda mística gnóstica, incluía elementos sexuais. O processo teosófico exposto por Boehme, originado da Cabala, tem conotações desse tipo. Para Boehme, Adão teria sido um ser andrógino que não se conformando em ser o que era, quis ser o que não era, e, como castigo, Deus teria separado os sexos, criando a mulher do flanco de Adão. Zinzendorf e outros pietistas relacionavam a criação de Eva com a chaga do peito de Cristo. Nas cerimônias nupciais organizadas por Zinzendorf, havia símbolos obscenos relacionados com essa chaga.

Caracteristicamente, Susana Von Klettenberg, que iniciou Goethe na Alquimia, desenvolveu toda uma teoria mística do sangue que ela perdia em suas hemoptises de tuberculosa.

Aliás, alquimia e pietismo eram estreitamente ligados.

Há um aspecto religioso da alquimia que a tornou especialmente aceitável para certos membros do movimento pietista. Jacob Boehme, de quem o movimento pietista derivou muito de sua doutrina, fez largo uso da linguagem alquímica em seus escritos, e um de seus derradeiros e mais fantásticos seguidores, Gottfried Arnold, fez extensas citações de trabalhos alquímicos em sua volumosa “História da Igreja e dos hereges”. É possível dizer, pois, que onde quer que o movimento pietista foi forte, como em Frankfurt, por exemplo, havia igualmente também alguma crença na validade da alquimia (Ronald D. Gray – op. cit. p. 4).

A célula pietista funcionava como um microcosmo. Atuar nela, seria atuar no macrocosmo. Qualquer modificação na célula acarretaria uma modificação no todo universal, conforme as regras da alquimia.

O pietismo havia ensinado que coisas muito grandes podiam ser feitas operando em pequena escala; as suas células eram pequenas e imensas, porque tendiam a se tornar autossuficientes e pareciam encarnar muito concretamente a concepção mística do ‘Uno-Todo’, que na Alemanha fundava-se numa tradição plurisecular frequentemente subterrânea, mas sempre eficaz (L. Mittner– op. cit. p. 61).

Mittner afirma ainda que o papel dirigente, assumido em outros países pelas grandes capitais, em matéria de tonus, cultura, organização, foi desempenhado na Alemanha pela célula pietista.

A mística pietista obrigava o adepto a passar por uma fase de autoanálise, que levava a pessoa a um profundo sentimento de dor, de ser nada, até atingir uma “morte” mística. Nesse momento, a graça irrompia na alma, que então renascia para uma nova vida. A pessoa então sentia-se jovem, convertida. Daí as poesias que falam da aurora e da primavera em que a vida renasce. Essa passagem de uma fase de angústia e de morte para uma nova vida era denominada “superação”.

A vida espiritual pietista procurava também analisar continuamente as manifestações do Deus oculto na natureza e na alma. Procurava-se, então, interpretar os “sinais de Deus” nos fenômenos naturais ou nos movimentos da alma. Por isso, os pietistas produziram uma grande quantidade de diários íntimos e cartas edificantes. Procurava-se também vaticinar o futuro, abrindo a Bíblia a esmo e lendo um versículo que manifestaria o futuro, ou a vontade de Deus.

Cabe um paralelo. Enquanto para o iluminismo o mundo era uma grande máquina que a luz da razão podia compreender, para o pietismo, em contraste, o universo era um grande ser vivo, cuja alma era o próprio Deus. A luz não seria a razão, e sim a beleza do universo, definida como esplendor da alma universal.

O misticismo anti-racionalista do pietismo produzia uma aversão a todo formalismo dogmático e litúrgico. Levava a rejeitar toda igreja constituída, toda institucionalização e hierarquia.

Por isso, os pietistas preferiam reunir-se nas casas, a fazê-lo nas igrejas. Em suas reuniões, lia-se a Bíblia, cantavam-se hinos sacros, incentivavam-se as pessoas mutuamente com discursos piedosos. Nessas reuniões não havia chefes ou presidentes, mas sim um círculo de elementos iguais, no qual o Espírito se manifestava livremente: Estas células constituíam pequenas igrejas na Igreja, “ecclesiolae in Ecclesia”. Igualitarismo e ecumenismo eram notas características do pietismo.

Como muitos outros movimentos gnósticos, o pietismo era milenarista. Já Boehme havia anunciado um reino milenarista que ele chamava de “tempo dos lírios”, “Lilienzeit”. Todavia, foi o conde Zinzendorf o principal “utópico” do pietismo. Ele organizou inúmeras colônias pietistas chamadas Herrnhut (Proteção de Senhor) na Alemanha, na Rússia e nos Estados Unidos.

Muitas vezes essas células pietistas se transformavam em núcleos sociais e econômicos, que punham todos os bens em comum. Nestes núcleos, tudo era regulado: horários, roupas, orações, trabalho, refeições, modo de falar. Zinzendorf queria que em suas colônias os móveis não apresentassem arestas, mas fossem sempre arredondados.

Esse “utopismo” pietista vai se prolongar por meio de Oettinger até os românticos, e, através deles, até Marx.

Se o pietismo era vago e indefinido em sua estrutura e em suas crenças, isto não significa que ele não tivesse uma organização que era fluída, mas também secreta. Diz Mittner a esse respeito:

“Também os pietistas constituíam uma organização em parte secreta, não sem um certo gosto, tirânico em Zizendorf, pelo cerimonial de iniciados, com misteriosos sinais de reconhecimento, complicadas hierarquias com símbolos conexos, gestos e distintivos” (L. Mittner, op. cit. p. 65)

A influência pietista foi imensa na religião, na filosofia e na literatura alemãs, como também na França, através do Quietismo, seu irmão gêmeo, e na Rússia, através dos eslavófilos. Se se considerar que o idealismo e o Romantismo nasceram do pietismo, não se pode deixar de reconhecer sua influência universal.

3. O veio filosófico

O terceiro veio formador do Romantismo é de natureza filosófica e está intimamente ligado ao veio religioso, pois se abebera em Jacob Boehme. Com efeito, os filósofos idealistas alemães, Fichte, Schelling e Hegel, adotaram linguagem e ideias dos místicos na exposição de seus sistemas, particularmente as de Mestre Eckart e de Jacob Boehme, como veremos mais adiante. Em todos esses filósofos foi também grande a influência do pietismo e da Cabala.

Historicamente, a ligação entre Boehme e os filósofos do Romantismo alemão fez-se por meio de dois teólogos pietistas: Bengel e Oetinger.

John Albrecht Bengel (1687-1752) foi membro do clero protestante e pietista da Suábia. Escreveu várias obras sobre o Novo Testamento, e especialmente sobre o Apocalipse. A preocupação pietista com os “sinais dos tempos”, revelação de Deus na história, e a expectativa do advento do Reino de Deus na terra – o “tempo dos lírios” (o “Lilienzeit” de Jacob Boehme) – levaram Bengel a buscar no Apocalipse e na História o desvendamento do futuro. Para Bengel, Deus revelava-se a si mesmo na História, através de um plano providencial, que era combatido pelo demônio. Bengel chegava às raias do dualismo ao imaginar uma oposição simétrica entre a Santíssima Trindade e uma Maligníssima Trindade infernal que se combateriam na História. Todas as ações dos homens, mesmo as piores, acabariam concorrendo para a realização do plano divino. Em Hegel, um pensamento parecido será expresso na teoria da “astúcia da razão”.

“Em Bengel, é Deus que se realiza na História da Humanidade, passo a passo, conforme um plano providencial preciso, visando edificar o seu Reino que efetivamente será atingido no final da História sob o comando de Cristo, no reino de mil anos” (Ernst Benz – op. cit. p. 46).

Esse mesmo autor mostra como o evolucionismo histórico dos místicos e filósofos idealistas alemães tem caráter gnóstico.

Este processo da auto manifestação de Deus implica e compreende também sua manifestação no universo; é um processo tanto criador e conservador quanto esotérico. A evolução do universo através dos diferentes reinos da matéria inorgânica, das plantas, dos animais, do homem, aparecem tanto nesse processo teogônico quanto na soteriologia, que forma uma espécie de prolongamento ou continuação da evolução criadora no reino da História. Hoje, quando há uma discussão apaixonada sobre a evolução soteriológica do Padre Teilhard de Chardin, é preciso lembrar que o termo evolução não foi introduzido primeiramente pelos sábios das ciências naturais do século XIX em torno de Charles Darwin, mas que o termo foi introduzido como um termo teológico e soteriológico pelos teósofos do século XVIII. Foi assim que ele foi adotado pelos filósofos do idealismo alemão, Hegel, Schelling, Baader, como termo soteriológico para descrever o processo teogônico no qual Deus manifesta a si mesmo tanto no universo quanto na soteriologia ‘a fim de que Deus seja tudo em todos’ (I Cor. XV, 28). Este versículo de São Paulo, que se acha tantas vezes citado por Teilhard de Chardin, é o versículo favorito de Schelling, de Baader, e, antes deles, de Oetinger. Foi Baader quem publicou um escrito sobre “A evolução e o revolucionismo” ou sobre a evolução positiva ou negativa da vida em geral e da vida social em particular nos Anais da Baviera, 1834, n. R. 28, pp. 219-224 e N. R. 62, pp. 423-430 (E. Benz – op. cit. pp. 57-58).

Para Bengel, o Apocalipse daria a chave para se compreender a História, assim como também seria a Revelação da própria natureza de Deus. Como Joaquim de Fiore, Bengel procurava fazer paralelismos entre personagens bíblicos e históricos, e dedicou-se a cálculos numéricos para determinar a data do início do Reino de Deus. Acabou concluindo que o reinado da Besta começara em 1143 e, como esse período duraria 666 anos, ele marcou o início do milênio para 1809, tendo mais tarde adiado esse início para 1836.

Friedrich Christopf Oetinger (1692-1782), por sua vez, foi o principal discípulo de Bengel. Estudou em Tubingen, onde se interessou por obras rabínicas e Cabala. Entrou em contato com um grupo cabalista de Frankfurt, ao qual pertenceram o pietista Johann Jacob Schütz e o conselheiro Fende. Este grupo estudava o Zohar e a “Cabala denudata” de Christian Knorr Von Rosenroth. Foi ainda em Frankfurt que Oetinger teve contato com o cabalista judeu Kopel Hecht que, como vimos, o aconselhou a ler Jacob Boehme para conhecer a Cabala.

Como Bengel, Oetinger defende a tese de que Deus se revela na História, especialmente de homens carismáticos como Boehme ou Swedenborg.

Oetinger procurava na História as regras da ação da Providência que permitiriam compreender seguramente a História:

“…regras que se reencontrarão na metafísica histórica do idealismo alemão” (E. Benz – op. cit. p. 44).

No final do processo histórico, Deus seria em cada homem o alfa e o ômega. Haveria então uma grande efusão do Espírito Santo e realizar-se-ia o Reino do Amor, a idade de ouro. Nesse tempo, o homem teria uma “ciência natural” que lhe permitiria compreender perfeitamente a Medicina, o Direito e a Teologia. Schelling dirá a mesma coisa, anos depois.

Oetinger, como todos os teósofos, não acreditava num Deus imutável. Como a Cabala, ele distinguia Divindade e Deus, e não aceitava as processões divinas no sentido Trinitário.

Logicamente a doutrina cabalística dos Sephiroth conduz Oetinger a criticar o dogma oficial da Igreja a propósito da Trindade; ele acaba por declarar, por isso, que a segunda pessoa da Trindade cristã é, na verdade, a Shekinah (magnificência) tornada homem, enquanto que a identificação da terceira pessoa com o Espírito Santo é devida a uma interpretação errônea da doutrina judaica da Hochmah (Sabedoria). Talvez tais ideias tenham sido inspiradas a Oetinger por Kopel Hecht, que tinha evocado diante dele o caráter estranho dos dogmas cristãos; em todo caso, elas conduziram o autor a evitar, na exposição de sua própria concepção da Trindade, a palavra ‘pessoa’, a fim de que não desse a impressão de triteísmo (E. Benz La kabbale chrétienne en Allemagne du XVI au XVIII siècle, in “Cahiers de l’Hermétisme, kabbalistes Chrétiens, Albin – Michel, Paris, p. 253).

Por isso, Oetinger prefere usar os termos ‘sefiroth’ ou emanações, e não ‘pessoas’, ao tratar das processões divinas.

Oetinger, como Jacob Boehme e todos os gnósticos, tinha uma concepção dialética do movimento de Deus:

[…] em seu comentário sobre os sete sephiroth inferiores, Oetinger vai considerar o movimento em Deus, como uma luta entre duas forças contrárias, com uma resolução na perspectiva de uma paz final. O repouso será então o fruto de uma vitória simbolizada pelo nome da sétima sefirá: Netzah. Ora, é esta passagem do estado de guerra ao estado de repouso que Oetinger chamará de actus purissimus. Não se poderia afastar-se mais da noção metafísica de ato puro (Pierre Deghye – La philosophie sacrée d ‘oetinger”- cahiers de l’Hermétisme, Kabbalistes chrétiens, Albin-Michel, Paris, 1979, p. 253).

Para Oetinger, o Espírito Santo, “aquele que há de vir”, o Amor, reuniria não só o Pai e o Filho, mas também Deus com o universo e com todos os homens.

Assim como os cabalistas e, mais tarde, os idealistas, Oetinger considerava que todo espírito sem corpo, ou que não pudesse tê-lo, seria mau. O universo seria o corpo do qual Deus seria a alma. Os conceitos de espírito e matéria seriam correlatos e reversíveis. O espírito seria matéria sublimada. Era em termos alquímicos que Oetinger se expressava:

O volátil se fixa, e o fixo se volatilisa. Isto significa que o espírito se torna corpo, e o corpo, espírito (…) O perfeito símbolo desta alquimia é Jesus Cristo: em sua pessoa, o espírito revestiu uma forma corporal, e o corpo de carne se espiritualizou com a ressurreição. Esta pessoa é, por excelência, o lugar de encontro entre o espírito e o corpo (…) É universalizando esta verdade que Oetinger declara, de um lado, que tudo é espírito; de outra parte, que tudo o que é espírito, é também corpo (Pierre Déghaye – op. cit. p. 247).

Estas ideias de que Deus seria a alma do mundo, e de que haveria correspondência entre matéria e espírito, são reencontradas entre os românticos. Segundo elas, a criação teria permitido que a Divindade se refletisse na natureza e, sendo senhora dela, se tornasse Deus e, querendo bem a ela, se tornasse Amor. É isto que explica o culto que os românticos tinham pela natureza.

A natureza seria então boa, enquanto meio necessário para revelar a divindade, embora tivesse sido a sua criação que determinara a existência do mal no próprio Deus. O Reino de Deus viria sanar esse mal, redimindo a natureza e o homem. Nesse Reino, Deus, o Universo e o homem seriam um.

O Mal, não é a criação em si mesma, como pensavam os gnósticos. O Mal é esta brecha que a Divindade abriu em si mesma para que um mundo distinto pudesse existir. O Reino de Deus é o vazio preenchido. O Reino de Deus exalta a criação em vez de aboli-la. Deus une-se à sua criação na Ekklesia, que é seu corpo espiritual. A alma do Messias, malkulth, é o corpo místico que tem a sutileza da alma com relação à materialidade grosseira, e que é um corpo com relação ao espírito puro (Pierre Déghaye – op. cit. p. 272).

Oetinger dizia opor-se violentamente aos gnósticos, principalmente a Cerinto, que negava qualquer valor à matéria, mas seu próprio sistema é gnóstico, embora moderado, no que tange ao problema da matéria. Por isso, Déghaye afirma que:

“… a filosofia sagrada de Oetinger deveria ser considerada mesmo como uma gnose anti-gnóstica” (P. Déghaye – op. cit. p. 237).

O milenarismo de Oetinger chega até a defender a apocatastasis, isto é, a redenção do próprio demônio, para tornar real a frase: “que Deus seja tudo em todos” (I Cor. 15,28).

Inspirando-se no tempo dos lírios de Boehme e nas teorias de Bengel, Oetinger tem uma concepção do Reino de Deus, ou Reino do Amor, igualitário e comunista, que vai repercutir nos românticos e em Marx.

Em certo sentido, o quadro da idade de ouro esboçado por Oetinger constitui o molde no qual serão fundidos os esboços do Estado final da sociedade, do Estado ou da sociedade ideal, tais quais nós os encontraremos em Hegel, em Schelling, em Baader, como também em Karl Marx, e é impressionante ver que não só conceitos importantes de Hegel, mas também de Marx figuram na descrição da Idade de Ouro de Oetinger (E. Benz – Les sources mystiques de la philosophie romantique allemande, Vrin, paris, 1968, pp. 50-51).

Traços característicos desse Reino do Amor de Oetinger são o sacerdócio universal e a igualdade completa dos homens. Por isso, não haverá nesse Reino do Amor propriedade privada. Tudo será possuído em comum.

A terceira condição de felicidade desse Reino é a inexistência de governo e de moeda.

Será o amor que presidirá todas as relações humanas, depois que os homens estiverem libertados da propriedade, e do governo.

 

IV. Franz Von Baader

O teósofo Franz von Baader:

é o último anel de uma cadeia que desde a Idade Média, através do século XIV, e Mestre Eckhart no século XV, e Nicolau de Cusa no século XVI, e a Reforma, e enfim, a teosofia de Jacob Boehme no século XVII, chegou ao século XIX e ao Romantismo (Eugène Susini, Franz von Baader et le romantisme mystique, Vrin, Paris, 3 vol, Vol. II, p. 48).

Ele se proclamava discípulo de Boehme, mas esteve bastante penetrado pelas ideias de Saint Martin e da Cabala.

Héritier de la Kabbale juive, de Saint Martin e de Martines (de Pasqualys) qu’il prolonge, il est de la famille spirituelle de tous les illuminés, de tous les théosophes et de tous les occultistes qui foissonnent au XVIII siècle et l’époque romantique tant en France qu’en Allemagne. Il incarne la tradition ésoterique des sociétés sécrètes et de la maçonnerie […] (E. Susini – op. cit. vol II, p. 14).

Baader foi amigo ou conhecido de quase todos os grandes vultos do Romantismo alemão, do qual ele é uma figura muito característica, embora de importância, até certo ponto, secundária.

Nous sommes étonnés de voir l’estime dans laquelle ont pu le tenir Novalis, Tieck, Ritter, Schelling, Fr. Schlegel, Görres, Sailer, Varnhagen, Lenau et tant d’autres, et par ailleurs et le peu de place qu ‘il a occupé dans le romantisme allemand dont il est pourtant, sans aucun doute, une des figures les plus grandioses, malgré ses faiblesses, ses insuffisances, et l’impression d’inachèvement et d’esquisse que nous laisse toute son oeuvre (E. Susini, op. cit. Vol II, p. 29).

Nesta relação de nomes ligados a Baader, é preciso salientar o de Sailer, que terá um papel importante no caso Anna Katharina Emmerick-Brentano.

Sailer influenciou muito na religiosidade de Baader.

Não se dirá nunca demais o que o Baader do ‘Journal’ deve à influência do ilustre prelado: toda a sua religião, sua maneira de conceber Deus, o papel que ele dá à História, às Escrituras enquanto tais e ao cristianismo enquanto revelação, o lugar que ele dá a Jesus, filho de Deus e mediador, o desejo de apreender Deus pelo coração de modo vivo e não de deduzi-lo por meio de um certo número de argumentos lógicos, por outro lado, o valor dado – uma vez admitida a revelação – à razão, porque ela nos esclarece sobre a verdadeira natureza de Deus, tudo isso é penetrado pelo método e pelo espírito de Sailer […]

Sabe-se, doutra parte, que a síntese curiosa e tão característica do ‘Diário’ de Baader, entre fontes propriamente cristãs ou católicas (Sailer) e fontes menos ortodoxas (mística de Claudius, Lavater, Saint-Martin), tinha sido realizada pelo próprio Sailer que, também neste ponto, serviu de modelo para Baader.

Sailer era muito ligado a Lavater ‘que se lhe assemelhava por suas luzes e por suas virtudes’, e esta amizade valia para Lavater a acusação de ser ‘um afilhado oculto dos jesuítas’ (Sailer era um antigo jesuíta), enquanto que se taxava Sailer de ser um cripto-protestante, porque ele era ligado a Lavater”(Souvenirs de Charles Henri, Barão de Gleichen, precedidas por uma ‘notice’ por M. Paul Grisublot, Paris, 1868, p. 146, Cap. Lavater) (E. Susini, op. cit., Vol II, p. 84).

O próprio Baader proclama que seu pensamento tem por fonte a Cabala:

“Em 1796, ele escreve à von Oppe”:

“Não se espante, então, com o meu naturalismo; você notará que ele é bastante inocente e, a rigor, menos herético que o spinozismo – porque eu o tirei da mesma fonte de que o tirou Spinoza (apenas não tão profundamente) – a velha Cabala judaica – esse tronco da mais antiga ciência da natureza” (E. Susini. – Op. cit. Vol I, p. 212).

E comenta Susini:

“Naturweisheit”; a palavra é característica. Não se trata de uma “ciência” natural pura e simples, mas de uma “sabedoria”, de um conhecimento religioso, místico, esotérico, de uma teosofia” (E. Susini– op. cit. Vol. II, p. 277).

Ora, a Cabala é reconhecidamente uma gnose judaica (Cfr. Gershom Scholem – Les origines de la Kabbale, Aubier-Montaigne, Paris, 1966, p. 200).

Desse modo, é indubitável que se deva classificar o pensamento de Baader como gnóstico. É o que diz Susini:

O misticismo de Baader, ou se quiser, sua teosofia, se aproxima da gnose. A antiga gnose era um conhecimento de ordem superior capaz de trazer a compreensão de mistérios religiosos. A gnose tinha isso de particular, que ela pretendia mudar a crença em conhecimento e penetrar, pela especulação, os mistérios envolvidos na fé. A gnose cristã, a de Orígenes, por exemplo, não tinha outro fim senão o de sustentar a fé cristã pelo recurso da especulação. Como a antiga gnose cristã, se bem que não haja relação entre esta gnose e a doutrina de Baader, esta doutrina é também uma elaboração dos dados da religião, uma especulação relativa ao dogma. “O mistério”, diz Baader, e a palavra é importante e merece que se a retenha, “não é uma verdade impenetrável, mas simplesmente uma verdade escondida” (E. Susini – op. cit. Vol. I, p. 49).

A Gnose, em suas formas mais radicais, negava qualquer valor à criação, e opunha o Deus verdadeiro a um demiurgo criador e mau, que teria encarcerado a Divindade na matéria. Destarte, a matéria era considerada como um produto do deus do mal, e a criação, uma obra de Satã.

Na Gnose cabalista, assim como em Boehme e nos pensadores românticos, a conceituação da criação e da matéria são mais matizadas.

1) porque a criação teria sido uma manifestação necessária de Deus;

2) porque se distinguiria uma matéria superior e espiritual de outra matéria inferior. A primeira seria obra da Divindade para sua manifestação, enquanto que a segunda, a matéria inferior atual, seria resultante da queda de Lúcifer e de Adão.

Por isso, Cabala, Boehme, Baader, Schelling, e em geral os românticos, se de um lado não condenam a matéria de modo absoluto, de outro, fazem questão de condenar o panteísmo, por não distinguir Deus e a criação, ao mesmo tempo que afirmam a presença da Divindade na matéria, por via de emanações.

Da confusa doutrina teosófica e gnóstica da Baader, limitar-nos-emos a citar sumariamente alguns pontos de natureza cabalista e ocultista que tiveram repercussão no romantismo.

Muitos desses pontos nós os reencontraremos em Brentano e Anna Katharina Emmerich.

a) Deus

Baader pretende dar uma concepção de Deus que não é nem monoteísta, nem panteísta, nem maniquéia (E. Susini – op. cit. Vol. II, pp. 452-453). Ele não aceita uma separação absoluta entre espírito e matéria, tal a que existia entre maniqueus, gnósticos e platônicos. Para ele, Deus e criação, espírito e matéria, eram coisas unidas, mas que não se deviam confundir, como o faziam os panteístas, nem opor, como faziam os gnósticos. Logo, em sua concepção, Deus existe em si, mas torna-se Deus na criação, que o manifesta e explicita (Cfr. E. Sisini – op. cit. Vol II, p 455). O homem teria, então, a missão de continuar e de completar Deus, não em si mesmo, mas no “mundo das emanações” (E. Susini– op. cit. Vol II p. 457). Por isso, o homem deveria ser visto como “microtheos”:

“Assim, pode-se dizer que o homem completa Deus. Somente quando Deus se encontra no homem, se reflete nele, é que a natureza pode festejar o seu sabbat” (VIII, 59, nota 3).

Ou ainda:

“Se o homem devia ter sido criado inicialmente, antes que Deus pudesse repousar em sua criação, a manifestação de Deus no mundo não pode ser completada sem o homem” (VIII, 61). Baader dirá também que “a inabitação perfeita de Deus no mundo por intermédio do homem, e o reflexo de Deus refletido [reenviado] pelo mundo, constituem a essência do sabbat” (VIII, 62) (E. Susini – op. cit Vol. II, p.460).

Se o mundo se distingue de Deus, se a multiplicidade saiu da unidade, mas se distingue dela, é preciso que a criação retorne harmonicamente ao Criador, assim como a multiplicidade volte a se reduzir à unidade, mas permanentemente distintas. Isso só seria possível através do Amor, que reconcilia harmonicamente Deus e a criação, o uno e o múltiplo. Daí, para Baader, assim como para a Cabala, a união sexual ser o grande mistério do universo.

b) Satã e Lúcifer

Baader, como Boehme, distingue Satã de Lúcifer, afirmando que este último é uma criatura, enquanto Satã não seria (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 299).

O mal (Satã) seria um potencial, uma virtualidade que Deus tolerou que se atualizasse na vontade de Lúcifer, por sua livre escolha.

c) Criação

A criação teria sido consequência da revolta de Lúcifer, segundo Baader.

“A catástrofe universal”, diz ele, “foi provocada por Lúcifer. Em consequência dessa revolta (Zerwürfssis) aparece, como complemento da criação, o universo terrestre, o céu e a terra. A criação da terra coincide com a queda de Lúcifer” (E. Susini – op. cit. Vol III, p. 302).

Entretanto, o universo material teria sido criado como único remédio possível, como um dique para deter a irrupção do mal. Como consequência dessa primeira queda de Lúcifer teriam surgido também o espaço e o tempo (E. Susini – op. cit. Vol II, p. 358).

d) A matéria

Baader distingue dois tipos de matéria:

1) a matéria incorruptível do ser eterno;

2) a matéria corruptível do ser temporal (E. Susini – op. cit. Vol II. pp. 352-353).

Para ele, o corpo espiritual, feito de matéria incorruptível, não é nem espírito, nem corpo animal. A encarnação de Cristo ter-se-ia dado não num corpo material corruptível, mas sim num corpo espiritual. Com base nessa concepção de uma matéria espiritual é que Baader pensa evitar quer o panteísmo, que diviniza a matéria bruta, quer a gnose que despreza toda matéria (E. Susini – op. cit Vol II, p. 358).

Confundir ou separar espírito e matéria, como fazem o panteísmo e o espiritualismo, constitui um erro; fazer do espírito e da matéria dois princípios hostis constitui outro erro […] Não há separação entre o espírito e a matéria, pelo fato que se faça distinção entre eles; também não há hostilidade entre eles (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 454).

e) O primeiro Adão

O primeiro Adão, conforme Baader, seria andrógino, masculino e feminino ao mesmo tempo, e seria superior aos anjos (E. Susini – op. cit. Vol. III, p. 283).

A ideia de um primeiro homem andrógino, isto é, que teria reunido em si mesmo as duas potências, masculina e feminina, existe na filosofia de todos os países e de todos os tempos. Ela existe na filosofia de Jacob Boehme, para quem Adam Kadmon, ou Adão Celeste, era, ao mesmo tempo, homem e mulher, sem ser entretanto nem um nem outra, e Boehme ele mesmo a encontrara na Cabala e em Paracelso. Ela existe também em Saint-Martin, e Baader, de resto, não foi o único de sua geração a retomar este tema que se arrasta através de todo o romantismo alemão (E. Susini – op. cit. Vol. III, p. 358).

Este Adão andrógino não passou na primeira prova, quando Deus lhe apresentou a natureza animal. Em consequência disso, depois dela, Deus criou Eva, isto é, separou o sexo feminino de Adão, que assim deixou de ser andrógino (E. Susini – op. cit. Vol. III, p. 365).

Antes dessa queda, Adão se reproduzia de modo superior. Depois, tendo ele caído em “corporização terrestre”, ficou incapaz de se reproduzir superiormente, pois, vendo o reino animal, não resistiu ao desejo de reprodução sexual. Ele desejou ter, como os animais, uma companheira exterior. Por isso, Eva foi retirada dele.

Mais tarde, Adão e Eva caíram juntos, ao comer o fruto proibido; o que fez com que o homem atingisse a situação atual, em que o corpo materializado domina o homem, cujas entranhas são de algumas coisas “interpoladas” (E. Susini – op. cit. Vol III, p. 372). Antes, porém,

“O homem era destinado em sua origem a se nutrir e a se reproduzir de um modo paradisíaco. Agora, e depois de sua queda, ele é obrigado a se conformar nisso aos animais da terra” (Cfr. Franz von Baader, apud E. Susini – op. cit. Vol II, pp. 333-334).

“Este homem era originalmente um “microthéos” e não um microcosmos” (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 459).

f) Adão e a “Virgem Celeste”

Para Baader, porque Adão era andrógino…

“a ‘Virgem Celeste’, a ‘ideia ou o Ideal da humanidade’ habitava nele, e ele tinha o dever de tornar esta ideia concreta” (III, 302)

Boehme mostrou como o homem paradisíaco, o homem virgem, imagem de Deus, tendo desejado a imagem terrestre do homem e da mulher, se corrompeu. Mas, a Virgem Celeste, Sofia, a humanidade celeste, veio em socorro do homem decaído; […]

O homem, escreve Baader em 1835, tinha nascido para permanecer junto de Deus. Ele devia permanecer na Ideia, em Sofia, viver conforme a ela e fixar-se nela. Por sua queda, pelo contrário, o homem abandonou Sofia; Sofia deixou o homem; ela retornou ao seu estado incriado (Uncreatürlichkeit) e o homem permanece em seu estado de simples criatura (Creatürlichkeit) (E. Susini – op. cit. Vol III, p. 575).

Por nossa culpa, a ‘Ideia’, Sofia, se esvaneceu. Tal como um espírito separado deste mundo, Sofia perdeu seu caráter concreto, sua forma corporal (IV, 213). A queda do homem, diz Baader em 1837, resultou do fato de que sua alma ou sua vontade recusou penetrar na ‘Ideia’ que lhe tinha sido dada por Deus como companheira, e, associando-se a ela, tornar-se, com ela, uma criatura única (IV, 335-336). A ‘Ideia’, desde então, separou-se do homem como de um homem adúltero; ela se retirou ‘na calma da não criação’ […]

Desde então, a Virgem Sofia, enquanto Ideia ou Espírito, está ainda em estado ‘incorporal’ (unleibhaft). Mas ela aspira, desde que pela culpa do homem ela perdeu seu caráter concreto, a reencontrá-lo. Ela tende a voltar à posse de sua ‘corporeidade’ (Leibhaftigkeit) (IV, 214) (E. Susini – op. cit. Vol. III, p. 581).

g) Mística sexual

Assim, para Baader como para a Cabala, a união sexual encerra o grande mistério do universo, porque é por meio dessa união que o homem recupera, pelo menos temporariamente, sua unidade andrógina primitiva, estabelecendo, por um instante, sua união com a Sofia Celeste.

O amor, explica Baader, o amor entendido no sentido de atração de um sexo pelo outro, tem por fim último reconstituir a humanidade celeste, a humanidade integral, isto é, a ‘androgenidade’ primitiva. O amor deve destruir a humanidade inferior, o ‘homem velho’, a fim de gerar ou de regenerar o homem paradisíaco”(…) “A ‘cruz de amor’ é representada pelo caráter masculino e feminino, pelo sexo propriamente dito, que é sinônimo de ‘abstração’ e não de unidade, e que, enquanto tal, é egoísta e inteiramente diferente do amor. Carregar esta ‘cruz de amor’, tal é, aqui em baixo, o destino do homem e da mulher; lutar contra o estado de divisão, tendo em vista preparar a restauração da ‘androgenidade’ primitiva, tal é a missão que lhes incumbe (E. Susini- op. cit. Vol. III, p. 588).

Outro texto confirma esse mesmo pensamento:

“O fim superior do amor, fim que ultrapassa o tempo, não é outro senão a ‘restauração solidária’ (a encarnação) nos dois amantes da imagem de Deus tornada para o homem espírito incorpóreo (III, 308). Com efeito, a imagem de Deus tornou-se, pela queda, sem essência, sem substância.

Esta imagem de Deus ‘aparece’ somente ao homem, isto é, ela não é para ele senão uma aparência (III,309). O fim superior do amor é de fixar esta imagem de Deus tornada fugitiva, o fim é torná-la essencial e permanente, o fim é regenerar em Deus os dois amantes” (III, 308-309) (E. Susini – op. cit. Vol III, pp.373-374).

Esta função do amor não existiria apenas no homem, mas teria um alcance cósmico, pois procuraria unir o corporal e terrestre ao que é sideral e celeste. Deste modo é que Baader pode falar da “maravilhosa alquimia do amor” (I, 2290) (E. Susini – op. cit. Vol. III, p. 529).

h) Pensamento dialético

Como bom seguidor de Boehme, da Cabala e da alquimia, Baader tem uma noção dialética do ser:

A preocupação de Baader é de estabelecer, pelo método da etimologia em particular, a ideia de que a origem do ser, tanto material quanto interior, é um conflito entre uma certa tese (atração no mundo material, desejo no mundo moral) e uma antítese (expansão de um lado, contração no outro), conflito que se resolve numa combinação dos dois movimentos, uma síntese que é movimento circular, giratório no mundo concreto, e angústia, calor angustiante no mundo interior (E. Susini – op. cit. Vol II, p. 317).

A concepção que Baader faz da natureza é dialética e dualista. No universo haveria uma oposição dialética da luz e das trevas, ideia que existe também na Cabala:

É assim que ele fala da ‘tríade da sombra’ (Finnster-Ternar) para designar a base tenebrosa das coisas, o calor obscuro de onde saiu a criação, o polo negativo do universo, e ele representa graficamente esta tríade negativa por um triângulo com o vértice dirigido para o alto. A esta tríade se opõe uma ‘tríade de luz’ (licht-Ternar), figurada por um triângulo com o vértice dirigido para baixo. O que quer dizer antes de tudo que a luz não é senão sombra invertida. A substância permanece de algum modo idêntica; apenas os sinais mudaram […] É provavelmente a razão pela qual Baader representa, no frontispício de seu opúsculo “Sobre o relâmpago, pai da luz”, um hexagrama (II, 270) no qual, sem dúvida, ele vê a possibilidade de representar gráfica e simbolicamente sua doutrina, e de traduzir o mistério mais profundo da criação (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 323).

i) Espaço e tempo

Ligadas ao problema da matéria estão as questões de espaço e de tempo. Assim como Baader considerava a matéria não como um mal em si, mas sim um mal menor, como um dique necessário para impedir a queda no mal completo, assim também o tempo era um mal menor e manifestação do mal.

“A gravitação (o peso), o tempo, o espaço são, em suma, uma manifestação do mal, isto é, da impotência da criatura que perdeu seu centro” (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 426).

Tempo e espaço são, pois, consequências da queda original que produziu o universo material.

j) Analogia e conhecimento

Baader não aceitava a ideia de que se deviam distinguir duas “regiões” da realidade: a espiritual e a material. Ele lembrava que alguns filósofos antigos distinguiam cinco regiões ou esferas: a divina, a espiritual, a natural, a material e a impura (Cfr. E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 367).

O conhecimento do mundo exterior e material seria obtido através do corpo e dos órgãos dos sentidos (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 367). Mas o mundo superior, paradisíaco, que deveria ter sido o mundo real do homem e do qual ele caiu, não seria possível conhecer por meio dos sentidos, pois que ele se tornou, para o homem, um mundo figurado ou mágico (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 368).

Mundo mágico, para Baader, é o mundo ideal, que não pode ser alcançado pelos sentidos e sim pelo êxtase, pelos fenômenos do magnetismo, pelo sonambulismo (E. Susini – op. cit. Vol II, p. 373).

Entre o mundo superior e o paradisíaco, ou mágico, haveria analogia, e sendo o universo um organismo, qualquer ação tem repercussão universal. Quando o homem faz qualquer coisa no mundo natural, ele estaria como que manipulando uma ponta de um pantógrafo. Mas, movendo um dos braços do pantógrafo, o homem estaria, ao mesmo tempo, realizando a mesma ação, em escala maior, através do braço maior do pantógrafo que ele utiliza (E. Susini – op. cit. Vol. III, pp. 288-289).

k) Deus e a razão

Embora baader chegue a dizer que a razão é Deus em nós (E. Susini – op. cit. Vol II, p. 196), ele nega que se possa alcançar Deus pelo entendimento. É pela fé, pelo coração que chegamos a Deus (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 131). Deus falaria no coração do homem e não na sua razão (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 134).

Nossa posse de Deus não é, pois, o resultado do entendimento. Deus responde a um apelo do coração. É preciso não reconhecer o valor da história, o valor da revelação; mas a presença de Deus em nós é revelada por uma intuição direta. (…) Uma intuição direta nos revela a presença de Deus em nós (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 142).

Por isso, ele não crê que a verdade religiosa seja monopólio de uma igreja.

“A verdadeira Igreja de Cristo é para ele invisível; ela não é uma instituição oficial organizada; ela não vive senão ‘na alma de alguns sábios’. Ou, pelo menos, ela não poderia ser organizada em um modo ‘autocrático'” (E. Susini – op. cit. Vol. II, p. 150).

V. Os filósofos idealistas

O idealismo alemão – cujas figuras exponenciais foram Fichte, Schelling e Hegel – é uma explicitação filosófica da experiência dos místicos alemães, tais como Mestre Eckhart, Tauler, e Jacob Boehme. Desses místicos, o idealismo herdou a “visão central” e adotou a sua terminologia.

(…) A ‘visão central’ da filosofia idealista é o reflexo direto da experiência mística. Enfim, a terminologia da própria filosofia idealista religiosa foi conscientemente tirada da linguagem dos místicos, na qual eles interpretaram sua experiência mística de divinização (E. Benz – Les sources mystiques de la philosophie romantique allemande, Vrin, Paris, 1968, p. 31).

E diz ainda esse autor:

“poder-se-ia demonstrar que o conceito idealista do ‘Eu’, em Fichte, foi diretamente influenciado pela especulação do misticismo alemão da Idade Média, como Von Bracken o provou em seu livro sobre Fichte e mestre Eckhart” (E. Benz, idem, p. 30).

Uma outra fonte do idealismo alemão foi a Cabala. Esta foi introduzida nos ambientes cristãos na Alemanha, por Reuchlin, no século XVI. Como vimos, quem melhor escreveu sobre a Cabala nesse país, foi Jacob Boehme. Foi através de Boehme e de Oetinger que a Cabala chegou até os filósofos idealistas e aos românticos, especialmente a Schelling (Cfr. E. Benz, op. cit. p. 56). Franz von Baader é quem foi o grande divulgador de Boehme na Alemanha, de cujas obras ele preparou uma edição em 1813 (Cfr. E. benz, op. cit. p. 7), enquanto Hegel foi adepto de Boehme e o elogiou muitas vezes (Cfr. E. Benz, op. cit. p. 20).

Desde muito cedo ficou patente que o idealismo alemão, cujas raízes se estendiam a Eckhart, a Boehme e à Cabala, devia ser visto como uma forma de Gnose.

Em 1835, apareceu a monumental obra de Ferdinand Christian Baur, Die Christilich Gnosis, oder die Religion philosophie in ihrer geschchlichen Entweckung. Sob o título “Gnosticismo antigo e filosofia moderna da religião”, a última parte dessa obra examina: 1) a teosofia de Boehme; 2) a filosofia da natureza, de Schelling; 3) a doutrina da fé, de Schleiermächer; 4) a filosofia da religião, de Hegel. A especulação do idealismo alemão é justamente enquadrada em seu contexto no âmbito do movimento gnóstico, cujas origens remontam à Antigüidade (Eric Voegelin, Il mito del mondo nuovo, Milano, Rusconi, 1976, p. 58).

Voegelin afirma ainda que Baur não estava sem fundamento nessa sua posição. os trabalhos de Johann Lorenz von Mosheim, de Johann August Neander e de Jacques Matter permitiram concluir que:

“com o iluminismo e com o idealismo alemão o movimento gnóstico tinha adquirido um grande relevo social” (Cfr. Eric Voegelin, op. cit. p. 58).

Não cabe fazer aqui uma análise pormenorizada do pensamento de todos os idealistas alemães. Ressaltaremos apenas a relação de alguns pontos de contato da filosofia de Schelling com a Cabala e com a teosofia de Boehme. Escolhemos Schelling, por ser ele o filósofo idealista mais próximo dos românticos alemães.

  1. O Deus de Schelling

O Absoluto, para Schelling, seria pura identidade entre sujeito e objeto. Ele poderia ser intuído, mas não compreendido. Como a Cabala, Eckhart e Boehme, Schelling distingue, no Absoluto, a Divindade impessoal – o Ungrund de Boehme – que seria a contração, à qual se oporia a expansão, ou o Amor (Cfr. Schelling – Conférences de Stuttgart, in Essais de Schelling, tradução e prefácio de S. Jankelovitch, Aubier-Montaigne, Paris, sem data, pp. 320-321). Ve-se por aí que schelling utiliza a terminologia de boehme (Cfr. A. Koyré, op. cit., p. 506).

Haveria, portanto, um dualismo em Deus, que seria, ao mesmo tempo, como dizia Eckhart, ser e não-ser (Cfr. Schelling, Conférences de Stuttgart, op. cit., p. 319; Cfr. Vladimir Lossky, Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maître Ekhart, Paris, Vrin, 1973,, pp. 38, 200, 244; Cfr. Maître Eckhart -Sermons, introdução e tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, Seuil, Paris, p. 102, Sermão № 9, “Quasi stella matutina”).

Assim como a Cabala, Schelling fala de um dualismo de trevas e luz na Divindade, e que a luz nasceria das trevas (Cfr. Schelling, Conférences de Stuttgart, op. cit. p. 315; Cfr. Gershm Scholem, A mística judaica, ed. cit., pp. 219-220).

Esse dualismo de um princípio obscuro e outro de luz terá repercussões na metafísica idealista e em todo o Romantismo. Veremos repercussões dele em Brentano e em Anna Katharina Emmerich.

Schelling afirma ainda que o processo teogônico seria dialético e catárquico, uma purificação e um autoconhecimento da Divindade (Cfr. Schelling – Conférences de Stutttgart,pp. 316-317). Ora, o mesmo pensamento existiu no sistema cabalista (Cfr. G. Scholem, A mística judaica p. 220).

  1. O problema do mal

Ao examinar o problema do mal em Filosofia e religião, Schelling procura demonstrar que o mal tem origem na própria essência divina e proviria de uma queda de Deus. Na opinião de Hartama, Schelling teria tirado sua ideia de Jacob Boehme (Cfr. Nicolai Hartman, op. cit. p. 169). Entretanto, a origem real dessa tese é cabalista (Cfr. Gershom Scholem – Kabbalah, Ketter, Jerusalém, 1974, pp. 122 a 128).

  1. A criação do universo

Para os idealistas, a criação do universo foi resultante de um processo necessário, existente na Divindade, para que ela se autoconhecesse (Cfr. Schelling, Conférences de Stuttgart, p. 315). A criação, porém, era vista como uma queda necessária da Divindade para poder auto revelar-se (Cfr. Schelling, Philosophie et religion, in Essais pp. 195-196). Schelling pretende que essa teoria da queda divina no universo tem origem em Platão e nos mistérios gregos. Ele não cita, porém, que essa mesma ideia aparece em Boehme e na Cabala (Cfr. A. koyré – op. cit. p.421).

A esse respeito diz Scholem:

“(…) para todos, esse conceito de Zimzum era de fato muito próximo que, mais tarde, foram desenvolvidas pelas modernas filosofias idealistas, como as de Schelling e de Whitehead” (G. Scholem – Kabbalah, p. 134).

  1. A matéria, princípio obscuro de Deus

O elemento obscuro e inferior, que Deus procurou eliminar de si mesmo e que teria produzido o universo, seria a matéria, mas, procurando purificá-la e atraí-la de novo a si, procurando despertar nela, que é inconsciente, o consciente (Cfr. Schelling Conférences de Stuttgart,p. 317). Doutrinas semelhantes se encontram no sistema cabalista de Isaac Luria (Cfr. G. Scholem, A mística judaica, p. 270).

  1. O elemento divino encarcerado na matéria

Como todos os gnósticos, Schelling afirma que a queda de Deus provocou o aprisionamento de um elemento divino (existente no mais íntimo das almas) no corpo material. Estaríamos neste mundo para pagar uma falta anterior ocorrida enquanto estávamos em Deus (Schelling, Philosophie et religion, in Essais, p. 204).

  1. Matéria, individuação, tempo, espaço e morte

Da matéria provém a individuação, a limitação ao espaço e ao tempo. De tudo isso, a partícula divina que há no homem seria libertada através da morte (Schelling – Philosophie et religion, pp. 216-217).

  1. A evolução e a História como processos de auto revelação e autolimitação de Deus

Havendo em todo ser criado um elemento material obscuro e um elemento luminoso divino, em tudo há um processo dialético que faz a luz libertar-se das trevas, o divino libertar-se do que é material. Nesse processo dialético, a matéria bruta é inconsciente e evolui para a matéria viva e consciente. No homem, o espírito divino readquire autoconsciência e procura libertar-se definitivamente de sua casca material, para alcançar, pela morte, a divinização (Cfr. Schelling – Conférences de Stuttgart, pp. 325 e 340).

Esta autoconscientização de Deus no homem, isto é, o conhecimento do Absoluto, não seria possível de ser alcançada através da reflexão, mas sim por meio de uma intuição dialética que apreende os contrários como idênticos, e que faz coincidir sujeito e objeto, o Eu e a coisa (Cfr. Schelling – Bruno [M. 328-3229] ed. Abril, São Paulo, 1973, p. 314).

  1. O homem, redentor de si mesmo e da natureza

Fazendo isto, o homem se auto redimiria e seria o redentor da natureza, levando-a ao seu fim último, que seria a reintegração no Absoluto (Cfr. Schelling – Nature de al liberté humaine, in Essais, ed. cit. p. 297).

Ora, esse tema do homem redentor de si mesmo é tipicamente gnóstico, e será um dos grandes temas do Romantismo (Cfr. Hans Jonas – La religion gnostique, Flammarion, Paris, 1978, p. 93 e 111).

  1. A História é o processo de retorno e de reconstituição do Absoluto

Depois da queda de Deus no universo, a evolução começou o processo de retorno ao Absoluto. Na História, esse retorno se torna consciente. Em decorrência, na História, Deus revela-se ao homem e a si mesmo. Mais do que isso: Deus realiza-se no processo histórico (Cfr. Schelling – Philosophie et religion, p.42). O espírito divino tomaria, então, consciência de si mesmo; primeiro, no homem, individualmente considerado; depois, o Absoluto divino alcançaria um estágio superior de consciência e de libertação, no Estado.

Jacob Boehme considerava que todo espírito necessitaria de um corpo para não se tornar diabólico. Daí os filósofos idealistas afirmarem que todo espírito coletivo nacional – a alma de um povo – necessitaria encarnar-se num Estado. Foi dessa tese que nasceram o nacionalismo, o pangermanismo, e, mais tarde, o nazismo racista.

10 – O Reino milenarista ecumênico

A última etapa do processo histórico seria a formação de um Reino universal e ecumênico. As nações são limitadas e não podem realizar a união última de todos os espíritos. Por isso, ao final do processo histórico, a realização do Absoluto exigiria a formação de um Estado Universal, que eliminaria tudo o que é particular, individual, nacional. Seria a realização do “Lilienzeit” profetizado por Jacob Boehme, e aspirado por correntes das mais diversas, desde os tradicionalistas, como Joseph de Maistre (Cfr. J. De Maistre – Du Pape, ed. cit., p. XXXIX), e pietistas, como Oetinger, até os marxistas, passando antes pelos românticos. Esse Reino universal exigiria ainda uma fusão de todas as religiões, porque um só é o Absoluto que elas cultuaram com nomes diversos. Surgiria então uma só Igreja – a Igreja ou Religião do Amor, ou do Espírito – profetizada por Joaquim de Fiore, por Jacob Boehme e por Novalis.

“É surpreendente, portanto, encontrar Schelling dando uma interpretação da história da Cristandade que, sob certos aspectos, é uma reminiscência do Abade do século XII, Joaquim de Fiore. De acordo com Schelling, há três períodos principais no desenvolvimento da Cristandade.

O primeiro seria o Petrino, caracterizado e correlacionado com o nível final do ser em Deus, que é identificado com o Pai da teologia trinitária. O segundo período, o Paulino, principia com a Reforma Protestante. Ele é caracterizado pela ideia de liberdade e corresponde com o princípio ideal em Deus, identificado com o Filho. E Schelling vê adiante, no futuro, um terceiro período, o Joanino, no qual haveria uma síntese mais elevada dos dois primeiros períodos. E unirá conjuntamente a lei e a liberdade numa única comunidade cristã. Este terceiro período é correlacionado com o Espírito Santo, o Amor divino, interpretado como uma síntese dos dois primeiros momentos da vida divina interior” (Cfr. F. Copplestone, S.J. – A History of Philosophy, Image Books, New York, 1965, Vol. VII, p. 175; Cfr. Marjorie Reeves – The influence of prophecy in the later Middle-Ages, Oxford- Clarendon Press, 1969, pp. 135-137).

Scholem relaciona essa expectativa milenarista com o conceito de Shemittah, do livro Temunah (Cfr. G. Scholem– A mística judaica, p. 181).

Concluindo, podemos dizer que, sem dúvida alguma, o Romantismo alemão teve raízes esotéricas, gnósticas e cabalistas. Por isso, em quase todos os autores românticos alemães, é possível encontrar ideias dessa natureza. Veremos que Clemens Brentano não foi exceção a essa regra.

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