Os Caminhos de Maria Santíssima – parte 3

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Ir. Anna Maria Fedeli

OS CAMINHOS DE MARIA SANTÍSSIMA – PARTE 3

 

Este artigo é uma continuação de Os caminhos de Maria Santíssima, parte 1 e parte 2

 

No dia 2 de fevereiro comemorou-se a festa da Purificação de Maria Santíssima que encerra o ciclo de Natal. É a assim chamada festa de Nossa Senhora das Candeias, devido à procissão com velas que faz parte da cerimônia litúrgica que se realiza em memória dos ritos cumpridos pela Sagrada Família, quarenta dias após o nascimento de Jesus, em obediência à Lei de Moisés: a purificação da mãe, a apresentação de todo recém-nascido no Templo e a consagração dos primogênitos. Em homenagem à Virgem Santíssima, publicamos, ao findar este mês de fevereiro, já quaresma, tempo em que se prepara a “espada de dor” prevista por Simeão, a terceira parte do pequeno estudo Os Caminhos de Maria Santíssima, comentando agora a ida da Sagrada Família ao Templo. Como vimos nos artigos anteriores, os eventos da vida de Maria Santíssima – e aqui estamos analisando particularmente os caminhos em que o Evangelho a apresenta – podem e devem ser tomados como modelos de santidade para nossas próprias vidas.

Terceiro caminho: o cumprimento dos mandamentos “Concluídos os dias da sua purificação”, a de Maria Santíssima, “segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém”, ao Menino Jesus, “para o apresentarem ao Senhor, conforme o que está escrito na lei do Senhor: Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor[1] e para oferecerem o sacrifício prescrito pela lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos.” [2] É o Evangelho de São Lucas que, assim, nos apresenta a Santíssima Virgem, e aqui toda a Sagrada Família, pela terceira vez, a caminho. O curto caminho – aproximadamente oito quilômetros – que há de Belém a Jerusalém. São Tomás precisa o sentido das cerimônias mencionadas no Evangelho: “Ora, a respeito dos recém-nascidos, a lei ditava dois preceitos: um geral, referente a todos os nascimentos: no fim dos dias da purificação da mãe, devia-se oferecer um sacrifício pelo menino ou pela menina, assim como prescrevia o Levítico. Esse sacrifício tinha por fim expiar o pecado no qual a criança tinha sido concebida e tinha nascido e também consagrar, de alguma maneira, a criança que era então apresentada no Templo pela primeira vez. Por isso se fazia uma oferenda pelo holocausto e uma pelo pecado”. Mas no caso de Nosso Senhor, primogênito, havia uma segunda lei que também se aplicava e até de modo muito especial: O outro preceito, especial, só dizia respeito aos primogênitos, seja entre os homens, seja entre os animais; o Senhor tinha, com efeito, reservado para si todo o primogênito em Israel, porque, quando da libertação dos Israelitas, Ele tinha atingido [com a morte] todos os primogênitos do Egito, desde os homens até os animais, mas tinha conservado a vida dos primogênitos Israelitas. Esse mandamento se encontra no Êxodo (12, 2-12).

 

 

Vê-se também aqui uma figura de Cristo, “primogênito entre muitos irmãos”.[3] Também Nossa Senhora, embora deles estivesse isenta dado o caráter extraordinário da concepção de Nosso Senhor Jesus Cristo por obra do Espírito Santo, quis submeter-se e submeteu-se aos ritos da purificação das mães. E embora, como explica ainda o Doutor Angélico, a Virgem Santíssima dê prova neste episódio de muitas virtudes[4], o que ressalta do texto, a razão pela qual Ela se põe a caminho, é sobretudo o desejo de cumprir a Lei: “conforme está escrito na Lei do Senhor”. O Padre Landucci explica quanto esse desejo de cumprir a lei, a obediência aos seus preceitos, se radica no amor de Deus e é a sua natural consequência. Onde não há amor à vontade de Deus, expressa antes de tudo e do modo mais universal nos Mandamentos, não há nem pode haver verdadeiro amor a Deus. Diz o autor de Maria Santíssima no Evangelho: “A norma reguladora daquele escondimento [da Sagrada Família, que se submetia à lei comum, como uma família comum] – como o de todos os escondimentos ativos por motivo de humildade – não podia ser senão o positivo querer de Deus e a santa obediência. E essa, no caso, falava claro através da Lei (cfr. S. Hilário, Hom. 18, in Evang.I).

Os santos esposos poderiam ter facilmente deduzido, das circunstâncias especialíssimas daquele divino nascimento, que não estavam propriamente sujeitos àquela lei. Mas havia uma ordem de fatos, atinente aos grandes mistérios neles cumpridos, em que tudo, até agora, tinha sido minuciosamente estabelecido pelo Céu e à qual eles queriam continuar completa e heroicamente abandonados a Deus. Se fosse o caso de fazer uma exceção agradável a Deus – supondo que fosse evitado o perigo de escândalo daqueles que, ignorando as circunstâncias, os vissem não cumprir a lei – o mensageiro celeste não teria deixado de propô-la ou, pelo menos, de insinuá-la. Na falta de qualquer sinal nesse sentido, não restava senão aplicar perfeitamente toda a lei; o que eles fizeram, nesse caso, como já tinham feito para o rito precedente da circuncisão.” [5] E comenta, ainda, a preocupação de São Lucas em deixar clara essa deliberação da obediência, do cumprimento da lei – mesmo daquela lei da qual poderiam isentar-se – por parte da Sagrada Família: São Lucas, por sua vez, parece mesmo querer sublinhar esse espírito de profunda obediência que anima a heroica humildade dos dois santos esposos, repetindo por quatro vezes o motivo obrigatório da lei. Di-lo, primeiramente, três vezes, referindo-se a todas as várias prescrições: “Depois, cumpridos os dias da sua purificação, SEGUNDO A LEI DE MOISÉS, o levaram a Jerusalém para oferecê-lo ao Senhor, COMO ESTÁ ESCRITO NA LEI DO SENHOR: todo primogênito masculino seja consagrado ao Senhor, e para oferecer em sacrifício, ASSIM COMO ESTÁ ESCRITO NA LEI DO SENHOR, um par de rolas ou dois pombinhos.” (Lc 2, 22-24); onde a primeira vez se trata da lei da purificação, em gênero, a segunda da apresentação do primogênito e a terceira da dupla oferta que devia fazer a mãe. Repete-o ainda uma quarta vez: “E quando os genitores aí levaram o Menino Jesus para cumprir QUANTO ORDENAVA A LEI a seu respeito…” (2, 27); o que, justamente porque é uma repetição, põe maximamente em evidência o intento do Evangelista de inculcar como motivo a conformidade à lei”. [6]

Convém ainda notar que Nossa Senhora faz voluntariamente não apenas aquilo a que obrigava a Lei Mosaica, que não prescrevia que a apresentação fosse realizada no Templo, mas também aquilo que era ditado pelo costume, que se estabelecera depois do exílio, como o comprova o livro de Neemias (10, 37), mostrando mais uma vez a sua submissão a tudo aquilo em que se manifestasse a vontade de Deus, mesmo que fossem apenas os legítimos costumes estabelecidos entre os judeus mais piedosos.[7]

A lição é clara e importantíssima e tanto mais necessária em nossos dias em que reina, nos meios católicos, um antinomismo prático, quando não também teórico.[8] Depois da Redenção, tendo Nosso Senhor realizado tudo o que a Antiga Lei simbolizava, foram abolidas, é claro, todas as leis litúrgicas e rituais dadas a Moisés. Não, porém, os Mandamentos, que foram, pelo contrário, levados por Nosso Senhor à mais exigente perfeição, já que com a vida da graça, que nos faz participantes da própria vida divina, temos muito mais força para fazer o bem do que tinham os homens antes da Redenção. Nosso Senhor mesmo o afirma, para combater o antinomismo de seu tempo, sobretudo, para ensinar a verdade em todos os tempos: Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para aboli-los, mas sim para levá-los à perfeição. Pois em verdade vos digo: passará o céu e a terra, antes que desapareça um jota, um traço da lei. Aquele que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar assim aos homens, será declarado o menor no Reino dos céus. Mas aquele que os guardar e os ensinar será declarado grande no Reino dos céus. [9]

A doutrina católica sempre insistiu na importância dessa observância e em sua facilidade quando se conta com a onipotente graça de Deus. Assim, ensina o Catecismo de Trento: No entanto, se alguém der por escusa que a fragilidade de sua natureza o impede de amar a Deus [cumprindo os mandamentos], é preciso dizer-lhe que Deus, exigindo amor, infunde nos corações a força de amar pelo Espírito Santo. O Pai Celestial dá esse bom Espírito a quem lho pede, assim como Santo Agostinho teve toda a razão de pedir: “Dai o que mandais e mandai o que é de vossa vontade.” Estando, pois, o auxílio de Deus a nossa disposição, mormente após a morte de Cristo Nosso Senhor, pela qual o príncipe deste mundo foi lançado fora, já não há motivo para alguém esmorecer com as dificuldades dos Mandamentos.

Nada é difícil a quem ama.[10] Não ignorando, porém, que a vontade se fortifica quanto a inteligência está convencida e que, naquele tempo como hoje, não faltavam doutores de iniquidade que ensinassem a não necessidade do cumprimento dos Mandamentos, o Catecismo insiste: De outro lado, muito contribuirá para despertar idênticas disposições, se falarmos claramente da necessidade de se obedecer à Lei; tanto mais que, em nossa época, não faltam pessoas que, para sua grande desgraça, se atrevem a declarar impiamente, que a Lei, quer seja fácil quer seja difícil, não é de modo algum necessária para a salvação. Essa opinião ímpia e abominável, deve o pároco refutá-la com os testemunhos da Sagrada Escritura, principalmente do mesmo Apóstolo, em cuja doutrina querem estribar a sua impiedade.[11] Mas que diz o Apóstolo? “O que importa não é ser incircunciso ou circunciso, mas o que vale é observar os Mandamentos de Deus”.[12] […] De fato, quem tem os Mandamentos de Deus, e os põe em prática, esse ama a Deus, conforme diz o próprio Nosso Senhor no Evangelho de São João: “Quem me ama, guarda a minha palavra”.[13]

São Tomás de Aquino, ao comentar as profecias de Isaias, mostra como Deus não se agrada de nada do que fazem os israelitas – seus sacrifícios, suas festas e solenidades, e mesmo suas orações – porque eles abandonaram o cumprimento da Lei: são assassinos, adúlteros, ladrões. E é apenas o cumprimento das boas obras, o cumprimento dos Mandamentos que pode agradar a Deus. Sem eles, os próprios atos de culto não passam de hipocrisia e são rejeitados por Deus: “Detesto vossas solenidades e festas; tornaram-se uma carga que não suporto mais. Quando estendeis as mãos, fecho os olhos; ainda que multipliqueis as orações não vos escutarei. Vossas mãos estão cheias de sangue.” Mas o remédio é simples, como mostra o Doutor Angélico, e consiste em duas coisas: na fuga do mal e na prática do bem, ou seja, no cumprimento dos Mandamentos.[14] Assim, depois de nos ter ensinado, assim que concebeu o Verbo, o amor e o serviço do próximo – na visita a Isabel –  e a inteira conformidade com a vontade de Deus, manifestada por suas criaturas, em todas as circunstância – em sua viagem para Belém – a Santíssima Virgem nos ensina neste seu terceiro caminho que a caridade, o amor verdadeiro a Deus, manifesta-se, sempre, no cumprimento fervoroso de suas leis.

 

____________________________

[1] Ex 13, 2.

[2] Lc 2, 22.

[3] TOMÁS DE AQUINO, Santo. La Moelle de Saint Thomas d’Aquin. Paris: P. Lethielleux Éditeur, 1930. Org. MEZARD, OP., Padre. V. 1, p. 141.

[4] São Tomás chama atenção para sete: sua humildade, sua pureza, sua obediência, seu respeito por Nosso Senhor, sua devoção pelos lugares santos, sua gratidão e sua pobreza. Ibidem, p. 139.

[5] LANCUCCI,  Pier Carlo. Maria Santissima nel Vangelo. Milano: San Paolo, 2000. P. 157. Tradução nossa.

[6] LANDUCCI, op. cit. p. 158. Tradução nossa. As maiúsculas e itálicos estão no original.

[7] Cfr. LANDUCCI, op. cit. p. 157 nota 5.

[8] Cfr., apenas à guisa de exemplo, o antinomismo pouco velado do Padre Storniolo, comentado pelo Prof. Orlando Fedeli, colateralmente, neste artigo:http://www.montfort.org.br//index.php/cadernos-de-estudo/desigualdade-igualdade-consideracoes-sobre-um-mito/

[9] Mt 5, 17-19.

[10] Catecismo Romano. Anápolis: Serviço de Animação Eucarística Mariano,  sd, p. 384.

[11] Os luteranos afirmavam que São Paulo pregara o abandono dos Mandamentos, quando, na verdade, ele ensinava apenas a ab-rogação das leis rituais judaicas. Cfr. Rm 2, 6 ss.

[12] 1Cor 7, 19.

[13] Catecismo Romano, p. 384.

[14] Cfr. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Commentaire sur le Prophète Isaïe. Tradução dos Monges da Abadia de Fontgombault. Introdução Pe. J. Elders, SVD. Paris – Saint Maur (Val de Marne): Presses Univesitaires de l’IPC, 2011. p. 16 e SS.

 

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