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Os Frades de Garrett e Argumentação no Texto Literário

Ir. Anna Maria Fedeli

 

OS FRADES DE GARRETT E ARGUMENTAÇÃO NO TEXTO LITERÁRIO

 

Publicamos hoje um texto de análise literária como ilustração a vídeo aula sobre a argumentatividade da obra ficcional. O texto analisado é do escritor romântico português Almeida Garrett, um dos introdutores do Romantismo em Portugal e importante político liberal, que usava, como escritor, a obra ficcional para a difusão de ideias que encontravam muita resistência no público, quando defendidas de modo explícito.

 

Os frades de Garrett e argumentação no texto literário

 

Ivone Fedeli

Introdução

Se todo texto é, de per si, argumentativo, os textos da literatura romântica portuguesa o são voluntária e deliberadamente – e, de modo particular, os de Garrett – sem, no entanto, perderem o seu caráter estético.

Nessa aliança, entre argumentação e estética, nesse texto que argumenta sem parecer argumentar, que convence parecendo apenas agradar, reside o maior interesse para a análise, porque nele se encontram os procedimentos mais sutis, mais delicados e, por isso mesmo, mais eficazes.

O objetivo deste trabalho é a análise de alguns procedimentos argumentativos  encontrados na obra ficcional de Almeida Garrett, tomando textos de um de seus romances: O Arco de Sant’Ana.

Por um lado, destacaremos a afirmação da objetividade e, por outro, a intervenção subjetiva do autor na escolha, na modalização, na classificação desses elementos.

Para limitar a extensão da análise, tomaremos apenas, para esse segundo passo, as figuras de frades desenhadas por Garrett naquele romance.

porquê  e o quando, as razões do sujeito

Os frades são personagens importantes na obra de Garrett. Ele mesmo o afirma, e o prova, no capítulo XIII de seu Viagens na Minha Terra:

“Já me disseram que eu tinha o gênio do frade, que não podia fazer conto, drama, romance sem lhe meter o meu fradinho.

“O Camões tem um frade, Frei José Índio;

“A Dona Branca três, Frei Soeiro, Frei Lopo e S. Frei Gil – faz quatro;

“A Adosinda tem um ermitão, espécie de frade – cinco.

“Gil Vicente tem outro – isto ; e, verdadeiramente, não tem senão meio frade, que é André de Rezende, de mais a mais, pessoa muda – cinco e meio;

“O Alfageme três quartos de frade, Froilão Dias, chibato da Ordem de Malta – seis frades e um quarto;

“Em Frei Luís de Sousa tudo são frades: vale bem nesta computação, os seus três, quatro, meia dúzia de frades – são já doze e quarto;

“Alguns, não eu, querem meter nesta conta o Arco de Santana, em que há bem dois frades e um leigo:

E aqui tenho às costas nada menos de quinze frades e quarto.

Com este Frei Dinis é um convento inteiro”[1]

A razão dessa recorrência, o autor no-la dá em vários textos. Vejamos três, que se completam:

“…; a culpa não é minha. Desde mil cento e tantos que começou Portugal, até mil oitocentos e trinta e tantos que uns dizem que ele se restaurou, outros que o levou a breca, não sei que se passasse ou pudesse passar nesta terra coisa alguma pública ou particular, em que o frade não entrasse” [2]

Assim, pois, a primeira razão é de verossimilhança, marca de objetividade. Já que a história de Portugal tem sido dominada por frades ( ou por religiosos, de modo geral), o romance, diz Garrett, vê-se obrigado a refletir essa realidade.

Essa afirmação de um domínio onipresente – postulada como dado inconteste do real – é uma primeira marca de argumentação, já que, como ensina Perelmann,  “o fato de selecionar certos elementos e de apresentá-los ao auditório já implica a importância e a pertinência deles no debate. Isso porque semelhante escolha confere a esses elementos uma presença, que é um fator essencial da argumentação,…”.[3]

A direção dessa argumentação, torna-se mais clara com a citação seguinte:

“Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.”[4]

Além da pura verossimilhança, portanto, podemos já discernir o propósito argumentativo do autor, que ele mesmo explicita num outro texto:

“Hoje é útil e proveitoso lembrar como os povos e os reis se uniram para debelar a aristocracia sacerdotal e feudal.

“Não há medo, repito, que ela volte; mas há certeza que tenta voltar: e essa tentativa só por si, e só em si, é uma revolução terrível.

“Eis aqui porque hoje se publica e de pouco se concluiu o romance que aqui vai”[5]

E ainda:

“Com romances e com versos fez Chateaubriand, fez Walter Scott, fez Lamartine, fez Schiller, e fizeram os nossos também, esse movimento reacionário que hoje querem sofismar e granjear para si os prosistas e calculistas da oligarquia.

“Com romances e com versos lhe havemos de desfazer pois o vilão artifício”.[6]

É preciso lembrar que Garrett esteve profundamente envolvido no combate pelo Liberalismo, a que aderira desde os tempos universitários.

Participou,  do cerco do Porto (1820) quando da guerra civil que deu a vitória a D. Pedro – liberal – contra seu irmão D. Miguel e, durante toda a vida, ocupando cargos políticos nos governos liberais, atuando como parlamentar, ou através de sua atividade literária e jornalística, nunca deixará de ser um liberal militante.

Ora, segundo Oliveira Marques, por um lado:

“Entre as  mudanças fundamentais de estrutura levadas a efeito pelos governos liberais desde 1820, não pode esquecer-se a reforma religiosa. (…)

“O liberalismo triunfante dirigiu um de seus maiores ataques contra o clero, particularmente contra as ordens religiosas. (…)

“Monges, frades e sacerdotes sofreram variadas perseguições, até ao limite da violência e da morte”.[7]

E, por outro:

“Apesar das leis de confisco de 1820-34, a Igreja portuguesa era ainda uma das mais poderosas potências existentes no País.”[8]

Sendo assim, o combate à Igreja, aos frades, ao clero em geral, incluía-se num projeto ideológico e político do qual Garrett era um dos mais importantes representantes e defensores.

Segundo José Augusto França, falando do Arco de Sant’Ana:

“Tratava-se, portanto, de uma obra de combate: retomada já em 1841, quando as ameaças da reação se mostravam claramente, ela devia sublinhar os perigos que a liberdade corria e atacar os bispos ligados a Costa Cabral, como tinha atacado, em 1832, no seu primeiro esboço, os bispos miguelistas.(…) Mas o romance tinha outra finalidade, enquanto obra de arte. (…) O ‘romantismo liberal’ se erguia contra o ‘romantismo feudal’ (…). O Arco de Sant’Ana constitui simultaneamente uma arma na luta política e ideológica (…).”[9]

De posse desses dados, poderemos compreender melhor como, sem abandonar as exigências da ficção, Garrett utiliza a linguagem para obter a adesão de seus leitores, já que suas escolhas estarão sempre condicionadas pela finalidade a que se propõe, pois, como ensina Lineide Mosca:

“(…) todo discurso é uma construção retórica, na medida em que procura conduzir o seu destinatário na direção de uma determinada perspectiva do assunto, projetando-lhe o seu próprio ponto de vista, para o qual pretende obter adesão. Conforme se depreende, essa concepção de base pode ser o ponto de partida para o estudo da estrutura discursiva do texto, do inventário dos tópicos e das escolhas estilísticas efetuadas.”[10]

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1. Ficção e texto epidíctico

Se, como acabamos de ver , é o caráter argumentativo do discurso que lhe define as escolhas semânticas, estilísticas, fonéticas e outras; se – também Vignaux o afirma – entre outros –  todo enunciado é  necessariamente argumentativo, todo discurso é, inapelavelmente, retórico[11], não seria legítimo procurar aproximar o romance, ou o conto – , o texto ficcional, enfim – , já que ele é argumentativo,  de uma das categorias clássicas do discurso?

Se o autor da ficção, particularmente em alguns momentos da história da literatura, tem por finalidade a adesão de seu auditório, convencer, persuadir, levar seus leitores a uma determinada visão do mundo, ou mesmo, em alguns casos, a uma determinada ação sobre o mundo, poderíamos perguntar qual é o modelo que, normalmente, ele utiliza.

A questão é de grande interesse porque a relação autor/público é, do ponto de vista retórico, bastante delicada. Não se lêem romance ou contos com a mesma disposição com que se lêem tratados filosóficos, obras científicas ou programas partidários. O leitor de ficção, habitualmente, não busca o debate filosófico, científico ou ideológico, mas o texto agradável, o belo, o estético. Se for frustrado em sua expectativa, facilmente abandonará a obra e o autor, rompendo a primeira condição da argumentação, que á disposição do interlocutor para ouvir.

Para Aristóteles, é, justamente,  pelo tipo de sua relação com os ouvintes que os discursos devem ser classificados:

“As espécies de retórica são três em número; pois outras tantas são as classes de ouvintes dos discurso. Com efeito, o  discurso comporta três elementos: o orador, o assunto de que fala, e o ouvinte; e o fim do discurso refere-se a este último, isto é, ao ouvinte. Ora, é necessário que o ouvinte ou seja espectador ou juiz, e que um juiz se pronuncie ou sobre o passado ou sobre o futuro. O que se pronuncia sobre o futuro é, por exemplo, um membro de uma assembléia; o que se pronuncia sobre o passado é o juiz; o espectador, por seu turno, pronuncia-se sobre o talento do orador. De sorte que é necessário que existam três gêneros de discursos retóricos:  o deliberativo, o judicial e o epidíctico”[12]

Já aqui encontramos uma primeira razão para aproximar do gênero epidíctico o discurso ficcional: o julgamento do auditório/público, incide sobre o talento do orador/autor.

E mais, quanto à finalidade estética – em sentido amplo – do discurso:

“No gênero epidíctico temos tanto o elogio como a censura. (…)

“(…) Para os que elogiam e censuram, o fim é o belo e o feio, acrescentando, eles também, outros raciocínios acessórios.”[13]

Ou seja, como também ocorre na ficção, a perfeição estética – dentro e fora do texto – é a meta do orador.

Ao tratar do discurso epidíctico, Perelmann explicita algumas outras características que só tornam esse paralelo mais saliente:

“Um orador solitário que, com freqüência, nem sequer aparecia perante o público, mas se contentava em fazer circular sua composição escrita, apresentava um discurso ao qual ninguém se opunha, sobre matérias que não pareciam duvidosas e das quais não se via nenhuma conseqüência prática.”[14]

O autor não presente fisicamente, a matéria “neutra”, a aparente falta de “conseqüências práticas”, tudo que também – freqüentemente – se poderia afirmar do texto ficcional.

Quanto à capacidade persuasiva do discurso epidíctico, Perelmann tece sobre o assunto algumas considerações de grande interesse, que, aplicadas ao texto ficcional, tornam mais clara a importância do papel desempenhado pelas obras de ficção nas mudanças de mentalidade – e mesmo de comportamento – da sociedade.

“Com isso [ com a falta de noção de juízo de valor e da intensidade de adesão suscitada pelo discurso epidíctico, nos seguidores e comentadores de Aristóteles e com a super-valorização do aspecto estético do próprio discurso],  parecia prender-se mais à literatura do que à argumentação.(…).”

“Ora, acreditamos que os discursos epidícticos constituem uma parte central da arte de persuadir, e a incompreensão manifestada a seu respeito resulta de uma concepção errônea dos efeitos da argumentação”.[15]

Aqui, é interessante notar ,que ao negar a não argumentatividade do discurso epidíctico, Perelmann parece aceitar a não-argumentatividade do discurso literário. Nisso, não é possível concordar com ele.

Literário, parente próximo do discurso ficcional[16], o discurso literário é também – e com grande eficiência – argumentativo, persuasivo, tanto e tão bem quanto o discurso epidíctico.

Aliás, os comentários que Perelmann faz ao discurso epidíctico podem, com toda propriedade, aplicar-se também ao discurso de ficção:

“A intensidade da adesão que se tem de obter não se limita à produção de resultados puramente intelectuais, ao fato de declarar que uma tese parece mais provável que outra (…).”

“A intensidade de adesão visando à ação eficaz não pode ser medida pelo grau de probabilidade conferido à tese aceita, mas antes pelos obstáculos que a ação supera, pelos sacrifícios e escolhas que ela acarreta e que a adesão permite justificar. (…). É nessa perspectiva, por reforçar uma disposição para a ação ao aumentara adesão aos valores que exalta que o discurso epidíctico é significativo e importante para a argumentação.(…)

“Ao  contrário da demonstração de um teorema de geometria, que estabelece de uma vez por todas um vínculo lógico entre verdades especulativas, a argumentação do discurso epidíctico se propõe aumentar a intensidade de adesão a certos valores, sobre os quais não param dúvidas quando considerados isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não prevalecer contra outros valores que viessem a entrar em conflito com eles. O orador procura criar uma comunhão em torno de certos valores reconhecidos pelos auditório, valendo-se do conjunto de meios de que a retórica dispõe para amplificar e valorizar.

“É na epidíctica que são apropriados todos os procedimentos da arte literária, pois se trata de promover o concurso de tudo quanto possa favorecer essa comunhão do auditório.”[17]

Feitas tais considerações, é o  momento de passarmos a falar dos procedimentos argumentativos do romance de Garrett, sempre tomando por base as características do discurso epidíctico.

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2. O como, a criação do objeto

Como vimos, Aristóteles, ensina que o discurso epidíctico trata do louvor ou da censura. Também do louvor e da censura trata o Arco de Sant’Ana, de Garrett. Louva um tipo de comportamento (que atribui àqueles com os quais se identifica), critica outro (o que empresta àqueles que combate). Louva uma mentalidade diante dos clérigos (a que desejaria ver implantada), critica outra (aquela cujo perigo quer conjurar).

Perelmann mostra que o discurso epidíctico é próprio da educação e análogo ao da propaganda[18]. Garrett quer fazer de seu romance uma apologia pedagógica de como deve ser tratada – pelo governo e pelo povo – a hierarquia eclesiástica.

Vejamos, mais de perto, os recursos que utiliza.

Em primeiro lugar, para aumentar a força argumentativa de sua narrativa, criando um notável efeito de objetividade, alça-a da categoria de ficção à categoria de fato . Para isso, atribui a substância de seu relato não a sua imaginação, mas a um antigo manuscrito por ele encontrado num convento de frades, cuja história relata, afirma, “com escrupulosa fidelidade”.[19]

A importância argumentativa dessa estratégia é sublinhada por Perelmann ao tratar do fato como ponto de partida da argumentação.[20]

Ao tratar seu relato como fato, Garrett induz seu leitor a receber sob esse estatuto cada detalhe da narrativa e o conduz, com grande eficácia, à aceitação de suas conclusões.

Também contribuem para o mesmo efeito de objetividade as referências geográficas (topográficas, hidrográficas, etc.) que se multiplicam ao longo do texto, sendo o próprio nome do romance referente a um conhecido marco da cidade do Porto.

O mesmo se diga dos regionalismos lingüísticos, que o autor usa freqüente e conscientemente –

“algumas palavras, muitas frases, bastantes alusões não serão talvez perfeitamente entendidas senão pelo leitor portuense”[21]

e que, além disso, aumentado a identificação entre escritor e leitor, facilitam a adesão.

No, que se refere propriamente aos frades e eclesiásticos, Garrett constrói alguns personagens próprios a servir de suporte a sua argumentação anti–eclesiástica.

É  curioso notar quanto seus recursos se aproximam daqueles preconizados por Aristóteles, embora funcionando por oposição, já que o procedimento utilizado é o de censura.

Ele “censura” nos frades – sem censurar, apenas mostrando como existente, o que contribui para o efeito de objetividade e imparcialidade – todo o contrário daquilo que Aristóteles diz ser digno de louvor e de honra.

Vejamos alguns exemplos:

Aristóteles – Retórica[22] Garrett – O Arco de Sant’Ana
1.Os justos e corajosos devem ser honrados 1. Os eclesiásticos são injustos e covardes;
 “Por esta razão se honram, sobretudo, os justos e os corajosos, pois a virtude destes é útil aos demais na guerra, e a daqueles é útil também na paz”

“ – Sim, sim; e bem no digo eu. Tenho coisa cá dentro que me agoura grande mal a mim e aos meus: e não me vem senão daquele bispo, que é a perdição e ruína desta cidade, ele e os seus cônegos e os seus portageiros e os seus arqueiros e toda essa gente da Sé.

“– E mete na conta o reverendo padre Fr. João da Arrifana, que é boa peça.”[23]

“O terror, o susto, um reflexo das angustiadas desesperações do inferno crispava medonhamente as ignóbeis feições do almudeiro.” [24]

– “Ah! disse o bispo, e olhou para Fr. João, que se fez verde, vermelho, amarelo, negro… um arco-íris vacilante e cambiante de todas as cores do medo.”[25]

“Os cônegos recuaram em desordem:  o deão largou o hissope bento no meio do chão… quis erguer-se… caiu de joelhos diante do bispo, e ficou, como um deus egípcio, sentado sobre os próprios talares; mas em vez de colocar gravemente as mãos nos joelhos, como o seu tipo hieroglífico, ficaram-lhe esbandalhadas para trás e pendentes. Os arqueiros desordenadamente romperam a forma; tal houve que largou a escuma e fugiu para o sagrado da Sé…” [26]

1. Os liberais devem ser honrados

2. Os eclesiásticos são ávidos e avarentos “Segue-se a liberalidade: pois os liberais são generosos e não disputam sobre as riquezas, que é o que mais cobiçam os outros”

“Aí estava ele porém, esse bispo em toda a pompa do principado, sentado em seu trono, rodeado de seus ministros eclesiásticos e civis – à direita o arcediago, à esquerda o alcaide-mor do seu castelo – porque Ele era senhor e apóstolo, carniceiro e pastor do mesmo rebanho: anomalia repugnante das idades bárbaras que tanto esplendor deu à Igreja , tanta luz tirou à Fé!”[27]

“(…) ou [ a cidade] havia de recobrar os foros de cidade livre e real que a doação de D. Teresa lhe tinha feito perder, e que a dureza do domínio eclesiástico lhe fazia desejar cada vez mais.”[28]

3. Os temperantes devem ser honrados 3. Os eclesiásticos são intemperantes (gulosos e sensuais)” A temperança é a virtude pela qual uma pessoa se conduz como a lei manda em relação aos prazeres do corpo.” “Esconjurado seja ele! veio com os mesmos recados de costume. ‘Que tivesse eu mais juízo e prudência; que fosse onde me diziam, ou desse hora em que o bispo cá viesse, que não escorraçasse a fortuna que à porta me batia…“do Reverendo Prior dos Grilos, a quem Deus perdoe não ter deixado na sua cela, quando fugiu, nem uma caixa de doce, nem uma garrafa de vinho potável, nem gulodice de nenhuma espécie, das que eram de esperar naquele devoto aposento, (…)”.[29]

“(…) as vastas cozinhas [ do convento] recendiam com o cheiro confortativo da suculenta comezaina que volteava no espeto ou palpitava no fervedouro das amplas marmitas. Mas nem Pêro Cão aparecera ainda para fazer conduzir o substancial almoço ao refeitório privado do pouco abstinente príncipe da igreja (…).”[30]  “De suas devassidões e orgias brutais, [ o bispo] tinha um pequeno, um tal qual remorso, porque enfim era eclesiástico, era prelado: mas bestialmente pensava que uma absolvição de Fr. João de Arrifana, ou de outro frade seu cúmplice nas mesmas torpezas, bastava para o remir desses pecadilhos, porque enfim, enfim, não eram condessas nem ricas-donas que ele tinha roubado – seduzido ou comprado pela maior parte…”[31] “Frei João impeliu com o possante galgar das robustas pernas, a enorme barriga pela escada acima, aparentemente sem grande esforço nem canseira. Era a mais desembaraçada e valente gordura que ainda se desenvolveu debaixo do burel seráfico: não havia ali banha nem toucinho; era tudo músculo tuchado, de febra elástica, potente e cheia de vida: há gorduras assim. Picheis da Bairrada e canastras de Lamego tinham muita parte na construção daquela sólida e bem arcada máquina que podia servir de modelo ao Hércules Farnésio.”[32]

“Frei João de Arrifana, apesar dos sustos e cuidados que teve, continuou a engordar; e veio a morrer, pouco depois, de um fleimão ardente que lhe nasceu, salvo seja! entre os quadris, e que abafado na massa enorme das substâncias adiposas, lhe ateou um febrão que o levou.”[33]

1. Os prudentes devem ser honrados

2. Os eclesiásticos são estúpidos e tolos“A prudência é a virtude da inteligência mediante a qual se pode deliberar adequadamente sobre os bens e os males (…).” “Acabou-se a festa da santa, poupou-se ao capucho muita berraria e muita sandice, e os festeiros jantaram mais cedo.”[34]

“Dois franciscanos chegaram à porta do palácio; um gordo, anafado e vermelhão, com um sorriso malicioso e contente que lhe brincava nas roscas da barba e das bochechas; o outro, cabisbaixo e humilde, verdadeiro tipo de leigarraz estúpido e servil.”[35]

É fácil de ver, que, no conjunto – o acúmulo de exemplos tendendo a fazer supor uma amostragem suficiente e concludente[36] – , a conclusão implícita é a desqualificação dos eclesiásticos, objetivo retórico do autor.

Como seria de esperar, os recursos argumentativos da obra de Garrett não se resumem aos aspectos que levantamos neste esboço de análise. Muitos outros são empregados com maestria pelo escritor. É o conjunto deles que torna a obra tão rica de interesse e tão eficiente do ponto de vista argumentativo.

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3. Bibliografia

ARISTÓTELES ¨      Retórica – Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998.
FRANÇA, J. A . ¨      O Romantismo em Portugal, – Lisboa, Livros Horizonte, 1993 
GARRETT,  A. ¨      Viagens na minha terra, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1969.¨      O Arco de Sant’Ana, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966.

MOISÉS, M.¨      A análise literária, São Paulo, Cultrix, 10ªedição, 1996. O. MARQUES, A. H¨      História de Portugal – v. III – Das Revoluções Liberais aos nossos dias, Lisboa, Editorial Presença, 1998. PERELMANN, C.¨      Tratado de Argumentação – a Nova Retórica, São Paulo, Martins Fontes, 1996. VIGNAUX, G.      ¨      Le discours acteur du monde– Paris, Ophrys, 1988. MOSCA, L. L. S. ¨      Retóricas de Ontem e de Hoje – Lineide do Lago Salvador Mosca, org. – São Paulo, Humanitas Editora/FFLCH/USP, 1997 

[1] GARRETT – Viagens na minha terra – cap. XIII, p. 106

[2] GARRETT – Viagens na minha terra – cap. XIII, p. 106

[3] PERELEMANN – Tratado de argumentação – Segunda Parte – O Ponto de partida da argumentação – capítulo II – “A escolha dos dados e sua adaptação com vistas à argumentação”.

[4] GARRETT – Viagens na minha terra – cap. XIII, p. 102

[5] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – “Ao leitor benévolo ( na Primeira Edição)” – p. 26

[6] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – “Ao leitor benévolo ( na Primeira Edição)” – p. 25

[7] OLIVEIRA MARQUES, A . H. – História de Portugal – v. III Das Revoluções Liberais aos Nossos Dias , Parte 10, cap. 2, p. 131

[8] OLIVEIRA MARQUES, A . H. – História de Portugal – v. III Das Revoluções Liberais aos Nossos Dias , Parte 12, cap. 3, p. 351

[9] FRANÇA, J. A . – O Romantismo em Portugal, Segunda Parte, cap. III, p. 112

[10] MOSCA, L.L.S – Velhas e Novas Retóricas: convergências e desdobramentos in Retóricas de Ontem e de Hoje, p. 23

[11] cfr. VIGNAUX, G. – Le discours acteur du monde, cap. 8,  p. 218

[12] ARISTÓTELES – Retórica, L I, cap. 3, p. 56

[13] ARISTÓTELES – Retórica, L I, cap. 3, p. 57

[14] PERELMANN – Tratado de Argumentação – Primeira Parte – Os âmbitos da argumentação, ­11 – O gênero epidíctico, p. 53

[15] PERELMANN – Tratado de Argumentação – Primeira Parte – Os âmbitos da argumentação, ­11 – O gênero epidíctico, p. 54

[16] É oportuno lembrar que Massaud Moisés praticamente identifica os dois conceitos, o de literatura e o de ficção. Cfr. MOISÉS, Massaud – A análise literária, cap. I

[17] PERELMANN – Tratado de Argumentação – Primeira Parte – Os âmbitos da argumentação, ­11 – O gênero epidíctico, p. 57

[18] cfr. PERELMANN – Tratado de Argumentação – Primeira Parte – Os âmbitos da argumentação, 12 – Educação e propaganda.

[19] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – Cap. II – p. 35

[20] cfr. PERELMANN – Tratado de Argumentação – Segunda Parte – O ponto de partida da argumentação, 16 – Os fatos e as verdades.

[21] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – “Ao leitor benévolo ( na Primeira Edição)” – p. 26

[22] cfr. ARISTÓTELES – Retórica, L I, cap. 9, p. 75 e ss.

[23] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. II, p. 38

[24] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XIV, p. 82

[25] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XIV, p. 83

[26] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XV, p. 85

[27] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XXXV, p. 212

[28] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XXXV, p. 212

[29] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. II, p. 35

[30] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap.  XIII, p. 77

[31] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XXVII, p. 160

[32] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap.  XIII, p. 79

[33] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. XXXVII, p. 231

[34] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap. I, p. 34

[35] GARRETT,  O Arco de Sant’Ana – cap.XIII, p. 78

[36] cfr. PERELMANN – Tratado de Argumentação – Terceira Parte – Cap. III  As ligações que fundamentam a estrutura do real, 78 – Argumentação pelo exemplo, p. 399.