Marcelo Andrade
UM EXCERTO DA CIVILIZAÇÃO DA MONTANHA E DO OURO: A IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA DE OURO PRETO
Fig. 1. O caminho que leva à igreja é barroco.
Quem sai da belíssima Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto e vira-se à direita, enxerga num alto de um morro, após uma curva sinuosa, uma outra igreja, em posição majestática, é a Santa Efigênia dos Pretos. A vista é formosa, aprazível e demanda explicação.
A preleção já começa nesta bela paisagem, até as ruas de Ouro Preto são barrocas, o urbanismo desta cidade é realista moderado, não nega a realidade dos morros, não quer reescrever a geografia, compreende o relevo e em cima dele se fez as edificações, “não há ruas, há ladeiras, não há caminhos, há voltas no morro”[1], como a filosofia aristotélica-tomista, que não quer negar a realidade e tira as conclusões dela. A Igreja de Santa Efigênia pressupõe o morro, assim como a graça pressupõe a natureza. Ela não podia estar em nem um outro local do Universo, só podia estar lá, e o morro sem ela, era como um corpo sem alma. Assim como as esculturas e a arquitetura, o urbanismo do barroco mineiro é ritualístico e a bela paisagem vista de costas da igreja, que abarca a cidade e as montanhas, prova o alegado.
Depois de se andar por um “desce e sobe”, pelas sugestivas ruas de Aleijadinho, da Conceição e de Santa Ifigênia, depara-se com uma escadaria e dela se vê a fachada da Igreja de Santa Ifigênia, simples, humilde, de portada pouco trabalhada, com suas duas torres, ostentando dois relógios de cantaria[2] encrustados, situadas “um pé atrás” do frontispício, como que em posição de guarda da bela escultura situada no nicho frontal, atribuída a Aleijadinho, de Nossa Senhora do Rosário. A fachada esconde a riqueza do seu interior, simbolizando que a riqueza boa é a interior, ou ainda, que a riqueza está na Igreja Católica e não no mundo. O visitante conhecerá a alma do barroco mineiro somente após cruzar o portal, aliás, deve-se ir a pé até a Igreja para que o esforço físico da subida simbolize a prática das virtudes.
Fig 2. Fachada bonita porém, simples.
O Barroco mineiro é uma versão peculiar do estilo, na realidade, uma escola diversa, pois introduziu inovações e incorporou o rococó, de modo que o que vale para o barroco europeu nem sempre tem serventia para o mineiro. Nesta toada, muito do barroco europeu tende a retorcer as construções e desmentir o seu sentido funcional, porém, o barroco mineiro reconquista a noção de monumento sem sufocar a finalidade da arquitetura[3], possui uma metafísica mais correta que a do Velho Continente.
Intensamente adornado e opulento no seu interior, este estilo mineiro é acusado de ser exagerado e nisto haveria um abuso, mas pode-se impugnar esta acusação, pois na hipérbole barroca há um bom simbolismo. Por exemplo, a única forma de saber se se colocou o máximo de líquido num copo é fazê-lo transbordar, ora, o barroco “transborda”, ou seja, prova que se deu o máximo para Deus. Segundo São Bernardo, a medida para amar Deus é amá-lo sem medida. É o caso.
E mais, no Evangelho, foi utilizada a figura de linguagem da hipérbole, ora, esta figura de estilo possui a função de ressaltar, dar importância, marcar, o que se diz, no caso do barroco, por analogia, tem a função de engrandecer o destinatário desta arte: Deus.
O barroco se volta para o Concílio de Trento, que foi marcado pelos detalhes, riquezas e precisões de suas definições dogmáticas. O barroco é tão rico, detalhista em seus elementos decorativos que se tornou necessário fazer um dicionário de termos para abarcar todo o conteúdo.
O estilo mineiro tem nas curvas uma característica capital, o que se harmoniza com que Cristo ensinou: “sejais prudentes como a serpente”, ora, este réptil se locomove por trajetórias curvas, logo por simbologia, o barroco é prudente. Além do mais, as curvas ornam com o entorno acidentado ouro-pretano e com as ondas do “mar português”.
O interior da igreja de Santa Ifigênia é auto semelhante, desta forma, as capelas laterais estão para o Altar-mor, assim como os córregos estão para o rio e os galhos para a árvore. Nesta mesma linha, as esculturas e outros elementos arquitetônicos se entregam à sombra porque a orografia ouro-pretana tem sempre uma dobra envolta em penumbra[4], mais uma vez a boa metafísica se impõe.
A Igreja é feita para a missa e a missa é para Cristo, o qual, em vida, foi-Lhe negada a majestade merecida. O altar-mor é como uma manjedoura riquíssima, perfeito para “vingar a pobreza de Cristo”. De fato, o altar-mor da Santa Ifigênia pertence à fase “D. João V”, no qual se vê claramente como elementos decorativos o dossel em composição com a “tribuna do trono” e acima dele o “coroamento do retábulo”, tudo revestido com ouro, provando que Cristo é reconhecido como “o Rei” neste barroco. E também Nossa Senhora é tratada como a Rainha, já que o altar lhe pertence.
Fig. 3 Altar mor: perfeito para “vingar a pobreza de Cristo”.
Nesta linha de raciocínio, um padre fazer a consagração versum populom e dar as costas ao altar mor, pelo simbolismo, seria como subtrair de Cristo, a Sua realeza. Barroco e missa nova não se harmonizam, formam uma contradição em termos. De fato, o barroco se harmoniza perfeitamente com o profundo ritualismo da missa tridentina, na qual até os gestuais dos dedos do sacerdote tem importância, e também o solene canto gregoriano combina com o estilo.
As colunas barrocas da Igreja de Santa Ifigênia são salomônicas – torsas –, muito trabalhadas, intensamente sulcadas, cheias de sombras, são dramáticas e elas remetem à sabedoria, pois está escrito: “A Sabedoria edificou a sua casa, lavrou as suas sete colunas” (Prov. 9,1). Todo o ser de Cristo é a Sabedoria encarnada e todo o seu corpo foi talhado e retorcido, primeiro quando foi brutalmente flagelado atado a uma coluna, os chicotes romanos (flagrum) por possuírem metal e ossos nas pontas rasgavam pele, vasos sanguíneos, nervos e músculos; segundo quando foi crucificado e teve todo o seu corpo convoluto, tendo as pernas dobradas, deslocado pulso, cotovelo, ombro e forçado o tórax para fora. A imagem de Cristo na Cruz não deixa de ser “A Coluna da Sabedoria”. E o que Cristo retorceu por fora, Sua mãe retorceu por dentro, teve seu coração agudamente flagelado pela dor moral que nenhuma outra criatura sentiu nem suportaria na história.
O rosto do profeta, do sábio, do santo e do herói guerreiro, se a alma se espelha nele, só pode ser sulcado e com sombras porque irradia os anos de conhecimento, a dor, a prudência que é sempre curva, os embates, o desgaste por ter servido ao bem. As crianças, por causa de sua tenra idade e os néscios têm as faces lisas. As montanhas também são sulcadas, sofreram ação dos ventos, das tempestades, das erosões, dos cursos de água, também são figuras da sabedoria. Por isso, as colunas devem ser torsas e os capiteis tem de ser bem talhados.
Depois das montanhas, o outro talante sine qua non da região é o ouro, inexistiria Ouro Preto sem ele. As montanhas esconderam o ouro, em seus veios de rocha, assim como a Igreja de Santa Ifigênia oculta o interior rico. “Casa de Ouro” remete ao Templo de Salomão, assim como o Templo, a Santa Ifigênia também é dourada no seu interior. O ouro é denso, brilhoso, incomum, assim como o barroco, e é figura de Nossa Senhora[5]. Cobrir de ouro os elementos dá mais valor e beleza a eles, assim, como a cobertura mística do manto de Maria é que dá préstimo aos católicos.
Diz-se que o barroco congela os movimentos, ora isto é uma ponte com a eternidade, já que ela é a posse inteiramente simultânea e perfeita de uma vida interminável. Deus vê a história como uma fotografia e não como um filme. E mais, um bom sermão que está no tempo e se refere a verdades congeladas- eternas.
Os analfabetos podem aprender por meio de imagens e da audição. A Santa Ifigênia é um livro aberto por causa das imagens e da arquitetura. Por exemplo, os analfabetos podem ver a figura de um papa negro, para simbolizar que a Igreja é aberta para todos, podem ver uma pintura do batismo de Cristo e entender como este sacramento é vital para a salvação, podem ver a representação dos santos doutores mostrando a importância do saber e que a igreja é para os simples e para os sábios. Cada passagem da Sagrada Escritura possui riqueza ímpar nos seus mínimos detalhes, assim como a decoração barroca. Desta forma, podemos dizer que o barroco é caridoso. Aliás, um bom sermão de padre Antônio Vieira é como o barroco, ambos ensinam a mesma coisa.
Fig.4 Capelas laterais que se harmonizam com o altar-mor.
Ainda a história da igreja de Santa Ifigênia é interessante. A freguesia onde se situa remete ao bandeirante Antônio Dias, da lendária estirpe dos destemidos exploradores do território brasileiro, fundadores de cidades nas montanhas e descobridores do ouro.
A igreja primitiva se chamava “Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Capela da Cruz do Alto do Padre Faria”, mas, com o passar dos anos, ela passou a ser conhecida como Santa Ifigênia, muito embora consagrada à Nossa Senhora. Ela foi construída por uma irmandade, dita, “Confraria do Rosário”, no século XVIII, formada por negros escravos e alforriados, tendo à frente a pitoresca figura de Chico-rei. É importante dizer que os africanos trazidos ao Brasil já eram escravos na África, portanto, não se trocou liberdade por escravidão. Porém, no Brasil podiam alcançar a salvação eterna e progredir culturalmente e materialmente, coisa dificílima na África onde haviam as malditas gentilidades eivadas dos hábitos mais repugnantes e diabólicos.
Era muito comum que os negros se reunissem em irmandades religiosas, muitas das quais era defesa a entrada de homens brancos. Estas irmandades que são autênticos “corpos intermediários” – termo caro para o Direito Natural- eram importantíssimas no Brasil colonial. No caso, a “confraria do Rosário” tinha dinheiro suficiente para bancar artistas competentes do porte de Manuel Francisco Lisboa (pai de Aleijadinho), o que prova a possibilidade de ascensão social dos negros no Brasil.
Assim, os africanos e seus descendentes, diante da pesada carga da vida, podiam oferecer seu sacrifício Àquele que sofreu mais que todos e por todos: Cristo. Podiam ver nesta igreja barroca uma antecipação da abundância que iam encontrar no céu, caso perseverassem na fé católica.
Fig. 5. Teto, onde os analfabetos podiam aprender pelas imagens.
A santa que acabou por dar o nome à Igreja é a Santa Efigênia da Etiópia convertida por ninguém menos que São Mateus. Muitos séculos depois, Portugal fez apostolado no altiplano etíope, e na então portuguesa “Antônio Dias”, a memória da santa etíope foi trazida à luz. A civilização portuguesa depois de vencer o nervosismo dos mares, venceu as ondulações das montanhas, uniu terras da Ásia, da África e da América numa mesma fé, espalhando filiais civilizacionais por onde andou.
A boa arte é mais que a terra e menos que o céu e a Igreja de Santa Ifigênia, expoente da civilização da montanha e do ouro, faz a ponte entre os dois com maestria, afiançando as promessas de Cristo.
Marcelo Andrade, 6 de abril de 2019.
Referências:
[1] Machado, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, Perspectiva, 1973.P. 188-189
[2] Cantaria é a arte de talhar blocos de pedra com o fim de se obter formas geométricas ou curvas destinadas para a decoração.
[3] Op. Cit. P. 218
[4] Op. Cit. P. 188
[5] Ver aula da Profa. Laura Palma em: https://www.youtube.com/watch?v=UsyVhdOsvDA