Marcelo Andrade
A ROMARIA, O TEMPO E O VALE
(..)a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas(..)
Em 1717, uma imagem de Nossa Senhora da Conceição foi encontrada por pescadores no rio Paraíba. Desde esta época, a imagem de Aparecida, como é chamada, foi reconhecida como milagrosa, dando causa a incontáveis graças. Tornou-se alvo de peregrinações, ou melhor, de romarias[1].
Na Europa Medieval se consolidou o hábito das peregrinações, os principais destinos eram a grande tríade formada por: Terra Santa, Roma, e Santiago de Compostela. No Brasil, há vários locais sagrados que são destinos de viajantes com propósito religioso, mas o principal é o de Aparecida do Norte.
A romaria é a vida.
É interessante a cidade de Aparecida do Norte (o nome impõe uma condição simbólica, também, pois Nossa Senhora é que nos dá o norte da vida) situar-se em um vale, no caso, o do rio Paraíba; ele é delimitado por duas cadeias de montanhas, a do Mar e a da Mantiqueira, como as duas margens de um rio. Isto pode representar as virtudes cardeais que estão no meio entre dois erros opostos, quem quiser chegar à Aparecida não pode extrapolar os morros que definem o vale, quem quiser se aproximar de Nossa Senhora, não pode ultrapassar os limites impostos pelas virtudes.
Na Salve Rainha cantamos o trecho “vale de lágrimas”, o liame não podia ser mais estreito, também por causa do rio. Toda a vida principia com lágrimas, os rios são o pranto da terra.[2] Começaram com olhos d´água, ganharam volume, contornaram obstáculos e por causa da humildade mereceram a grandeza do oceano. (Orlando Fedeli).
As romarias podem ser feitas a pé ou não, podem contar com veículos de apoio ou não, as que são feitas a pé sem carro de apoio parecem ser as mais difíceis e simbólicas; neste caso é necessário o uso de mochila, pois só podemos levar o absolutamente necessário para a jornada, por causa do peso, assim, a mochila pode representar a carga da vida, a Cruz que todos carregamos e por transportar poucos bens, pode simbolizar a “pobreza espiritual” e a necessidade de não dar valor exagerado aos bens deste mundo. Assim, como a romaria, a vida é de passagem.
O cajado, acessório típico, acrescenta uma “terceira perna” ao romeiro, atenuando a carga destinada às pernas, formando uma tríade, o que pode simbolizar a devoção à Santíssima Trindade. Ele também remete ao envelhecimento, evento fatal para os viventes. O cajado antigamente era somente de madeira, mais simbólico, hodiernamente há as versões metálicas mais leves. Associado mais fortemente aos pastores, serve para disciplinar e resgatar ovelhas.
Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. (Salmo 23, 4). Desta forma, no vale rumo a Aparecida, o cajado remete à Providência, a única realmente necessária na jornada.
Há a filosofia do chapéu, indumentária absolutamente necessária na romaria dado o sol acima, “a escolha do chapéu é regida por um princípio metafísico (…) um prolongamento da cabeça” (Capítulo do chapéu, Machado de Assis). Ele dá entorno e ornamento à cabeça, a parte mais importante do corpo, sede do moral.
O chapéu separa o “embaixo” e o “acima”, assim, faz a ponte com o Altíssimo, pode ser usado como sinal de reverência, conforme a situação, para o próximo ou para Deus. O chapéu realça o ser do homem, definindo qualidades e defeitos, realçando desigualdades justas, definindo status de leigo ou de religioso. Assim como o estilo, o chapéu é o homem. O mundo moderno perdeu o hábito frequente do uso do chapéu, claro, pois, “perdeu a cabeça”, assim, a indumentária perdeu sua razão de ser.
Nas jornadas longas de dezenas de quilômetros diários e ao longo de vários dias, o tempo dos pés do romeiro é bem diferente do ciclo dos motores. Prossegue-se lentamente, às vezes, dá a impressão de se estar parado em comparação com os veículos automotores que trafegam em paralelo. Nisto, há um simbolismo, pois, a eternidade é o tempo que não passa e se está rezando, o liame com o sagrado é solidificado. Inicia-se a vida engatinhando, depois engata-se poucos passos até conseguir longas caminhadas, análogo ao rio.
A romaria é um retiro ambulante, se há momentos de companhia, há muitos momentos de recolhimento “sui generis” dada as circunstâncias, ora, porque se distanciou dos companheiros, ora porque a conversa findou, ora por causa dos barulhos dos carros. Nestes intercursos, é de rigor a meditação e a oração, aliás, pode-se medir o tempo pelas contas do rosário.
As dores nas longas romarias, pelo menos para quem não tem excepcional preparo físico, são inevitáveis, ao longo do trajeto, podem se manifestar nos pés, nas costas nos ombros etc., é comum “trocar de dores”. Elas são aliviadas por uma lufada de ar, por medicamentos etc. As dores nos fazem refletir sobre a fragilidade da existência, são as “lágrimas do vale”. Nas jornadas há momentos melhores e piores, há horas de desânimo e de ânimo, há atrasos e avanços, como a vida.
A dor constante pode nos levar a meditar, também, sobre o Inferno, onde elas são desproporcionalmente mais intensas. Se não aguentamos as dores da romaria, como aguentaríamos as do inferno?
A cultura da romaria é intensa no Vale do Paraíba, é comum que caminhoneiros, motoristas de toda sorte, cavaleiros e pedestres deem apoio externados com toques de buzinas, sinais com os braços e palavras, isto também ajuda a aliviar o cansaço e o desânimo. Os habitantes desta região têm suas próprias histórias de romarias, seus próprios quilômetros contados, suas dores etc. Aparecida é omnipresente.
Na romaria, o essencial é mais valorizado e o supérfluo esquecido. Desta forma, cada parada de descanso, cada almoço, cada jantar e cada noite de sono assumem dimensão grandiosa. Ela é auto similar, também, já que um dia de caminhada é uma miniatura de uma romaria completa, como as árvores, nas quais um galho é como uma árvore inteira.
A finalidade da existência é a salvação de nossas próprias almas e, por meio do apostolado, lutar pela salvarão do próximo. É uma conta de chegada, de modo que por mais fracassada que uma pessoa tenha sido na vida, se alcançou a eternidade, ela é uma vitoriosa. De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? (Mc 8,36). Assim como, a finalidade da romaria a Aparecida é chegar, ajoelhar e rezar ante a imagem milagrosa, pouco importa quem chegou melhor ou pior, quem sofreu mais ou menos.
Se chegar em Aparecida no pôr do sol, fica mais simbólico, quer por causa da beleza estética, quer por causa do simbolismo; o crepúsculo realça o horizonte, que pode ser figura de Nossa Senhora, já que Ela é o liame da terra com o céu.
Por Nossa Senhora Aparecida!
De Aparecida do Norte para São Paulo, 21 de julho de 2019
Marcelo Andrade
[1] Romaria é termo mais típico no Brasil, remete à Roma (afinal somos católicos romanos), é mais próprio para a jornada em grupo e focada em pagamento de promessa ou para pedir graças.