Carta a um demo-cristão

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Orlando Fedeli

 

CARTA A UM DEMO-CRISTÃO SOBRE UM VELHO AGGIORNAMENTO

 

(artigo escrito em julho-1973)

Primo Maximiliano,

Recebi sua carta dando continuação à polêmica que tivemos sobre a pena de morte — considerada em tese — na casa de Tia Pacífica. Sei, sei, não foi polêmica, diz Você, foi diálogo.

Mas permita que eu não aceite, por bom senso e por respeito próprio, que tenha sido um diálogo. Por bom senso, porque ele me diz que um diálogo em que há troca veemente de argumentos se chama polêmica, embora isto doa a seu pacifismo. Por autorrespeito, porque diálogo, o demo-cristão e o progressista só o mantêm com comunistas, anarquistas, hereges etc. E eu não sou herege, graças a Deus, nem sou da esquerda. Sou católico e da direita. Estou vendo Você rugir com toda a sua caridade demo-cristã: — Da direita só, não, da extrema direita, da extremíssima direita! E fanático! — E nisto Você, no seu extremismo classificatório, se engana. Você sabe muito bem que sempre fui inimigo do nazismo e do fascismo (que Você namorou), do comunismo e do socialismo (que Você namora). Mas também sempre me repugnou o extremismo do centro. E esse centrismo, primo Maximiliano, é ambulante, é andarilho, é nômade. Mas só em direção à esquerda. Veja bem: a democracia-cristã está sempre indo para a esquerda, sem sair do centro. E como pode ser isto? Parece-lhe absurdo? É que a esquerda, meu primo, se desloca continuamente para posições mais revolucionárias, e lá vai o demo-cristão atrás, levando o centro cada vez mais para a esquerda.

Quando a democracia-cristã começou a namorar o socialismo, eu lhe disse que na verdade ela queria amasiar-se com o comunismo. Você jurava: — “É falso! Com o comunismo, nunca!” E falava em socialismo cristão. Hoje, a democracia-cristã está se divorciando do socialismo, por lhe parecer moderado e reformista, para correr atrás do comunismo e do guevarismo. Olhe o Chile, Maximiliano, olhe o Chile!

O mesmo fenômeno se verifica no campo eclesiástico. Que é um Padre progressista moderado? É aquele que defenderá amanhã o que a extrema esquerda radical da Igreja propõe hoje. Sempre em nome do Concílio Vaticano II, é claro.

Perguntará Você: — E que faz o Padre terceira-força, enquanto isso? Respondo: — Arranja desculpas para justificar as capitulações do centro e sua omissão própria, — em nome da prudência…

Assim, o progressista extremado propõe a heresia hoje, o progressista do centro a defenderá amanhã, o conservador-sem-exageros desculpa o centrista, e depois de amanhã todos juntos estarão praticando o que o extremista propôs a princípio. É preciso manter a unidade…

Assim marcha o trem da esquerdização na Igreja, puxado pela fumarenta e poluidora locomotiva do progressismo. Coisa parecida ocorre na política. Porque estas coisas são ligadas, primo Maximiliano, e todo progressista em Religião é esquerdista em política, e vice-versa.

Evidentemente isto leva à contradição, aprovando-se hoje o que se condenou ontem. Pressuroso, Você acode: — Não! não é contradição! É aggiornamento, é adaptação dos princípios à nova realidade.

Positivamente, é estender as reformas de base à lógica e ao dicionário. Desse jeito Você, que condena a pena de morte hoje, acabará por defendê-la amanhã e, se tiver poder, a aplicará depois de amanhã.

Estou até ouvindo o seu: — Nunca!!! Se eu tivesse poder, aboliria a pena de morte! — Lá tenho minhas apreensões…

Você sabe, primo, na História há paradoxos… Você quer provas atuais disso? Veja a Democracia-Cristã italiana: ela condenava o divórcio … antes das eleições… Quer outra prova? Hoje se sabe que não há ninguém mais belicoso do que um pacifista e, assim, não fique espantado se afirmo que seu pensamento evolucionista poderá levá-lo a ser um feroz Maximiliano… Robespierre.

E, além disso, em Você não há só contradição de pensamento, mas também de prantos: Você chora só com o olho esquerdo. Como? Lembre-se dos “crimes” históricos que Você cita nas horas de “zelo.” Você ataca a Inquisição, as Cruzadas, a repressão ao protestantismo no reinado de Maria Tudor, que Você chama de “Maria, a Sanguinária”. Jamais critica os verdadeiros crimes, as carnificinas feitas pelos inimigos da Igreja. Por que Você nunca fala — e detesta que se fale — dos crimes da Revolução Francesa contra os católicos? Por que Você não fala dos crimes e do paredón de Fidel Castro, Você que é tão contrário à pena de morte? Repito: Você chora só com o olho esquerdo. Seu olho direito é seco.

Ah! se um dia Você tiver poder…

* * *

Para os progressistas, os “excessos” (não foram crimes) da Revolução Francesa foram praticados por alguns extremistas levados ao desespero pelos aristocratas “que exploravam cruelmente o povo”. De modo que a culpa, no fundo, não foi dos revolucionários. Estes representavam a violência segunda, provocada pela primeira: a das instituições “desumanas e retrógradas”. Para Você, primo, o verdadeiro espírito da Revolução Francesa era o dos moderados, que certamente eram contra a pena de morte.

Ora, depois de nossa discussão, lendo, antes de dormir, a Histoire Parlementaire de la Révolution Française, de Bouchez et Roux, obra que, como Você sabe, traz as atas dos debates nas assembleias revolucionárias, encontrei os discursos pronunciados na Assembleia Nacional quando se discutiu a pena de morte. Está lá, no volume X páginas 66 a 70.

Sou obrigado a confessar: Você tinha razão. Havia revolucionários moderados contrários à pena capital. Devo confessar mais. Fiquei impressionado com a concordância entre os argumentos que Você expandiu na casa de Tia Pacífica e os que foram defendidos por um revolucionário na sessão de 30 de maio de 1791. É impressionante: Você e ele pensam do mesmo modo. Um é o eco do outro.

Lembra-se de que Você definiu a pena de morte como um “assassínio jurídico”? Compare com esta consideração do tal revolucionário moderado: “Quando em Atenas chegou a notícia de que cidadãos haviam sido condenados à morte na cidade de Argos, correu-se aos templos e conjuraram-se os deuses a que afastassem dos atenienses pensamentos tão cruéis e tão funestos. Eu venho rogar, não aos deuses, mas aos legisladores, que devem ser os órgãos e os intérpretes das leis eternas que a Divindade ditou aos homens, que apaguem do código dos franceses as leis de sangue que ordenam assassinatos jurídicos, e que repugnam a seus costumes e à sua nova constituição”.

Que tal? Creio que Você aprova totalmente, não é? Note que ele até parece aggiornato, pois faz alusão a um deus vago e ecumênico, que serve a todas as seitas.

Para ser franco, o começo do discurso me soa um pouco pedante e ponho muito em dúvida a tal corrida piedosa dos atenienses aos templos…

(Entre parêntesis, e falando baixinho, repare como, de manso e de manso, o nosso tribuno promove os deputados da Assembleia revolucionária de 1791 ao nível dos deuses. Pois se o cavalo de Calígula foi senador romano, por que um deputado jacobino não podia ser deus?).

Mas não posso negar que, no resto, o orador concorda inteiramente com Você, até mesmo na tal brumosa e ecumênica divindade…

Prossigamos na citação: “Assim, aos olhos da verdade e da justiça, essas cenas de morte que ela [a sociedade] ordena com tanto aparato, não são outra coisa senão covardes assassínios, crimes solenes cometidos não por indivíduos, mas por nações inteiras, sob formas legais. Por mais cruéis ou extravagantes que sejam essas leis, não vos espanteis: elas são a obra de alguns tiranos, são as cadeias com que eles oprimem a espécie humana, são as armas com as quais a subjugam: foram escritas com sangue. “Não é permitido condenar à morte um cidadão romano”: essa era a lei feita pelo povo. Mas Sila venceu e disse: “Todos os que tomaram armas contra mim são dignos de morte”. Otávio e os companheiros de seus crimes confirmaram essa lei”.

Ah! se este orador tivesse triunfado, outra teria sido a História da Revolução! Hoje Você não precisaria fazer proezas para ocultar os crimes, isto é, os “excessos” dos jacobinos. Veja como esse paladino da liberdade atacava os tiranos: “Sob Tibério, o fato de ter louvado Brutus foi considerado um crime digno de morte. Calígula condenou à morte os que eram tão sacrílegos que se despiam diante da imagem do Imperador. Quando a tirania inventou os crimes de lesa-majestade, que eram ou ações indiferentes ou ações heroicas, quem teria ousado pensar que essas ações mereciam pena mais suave que a morte, sem se tornar também culpado do crime de lesa-majestade?”

O autor do discurso parece-me dar aí um leve escorregão, pois que, atacando a pena de morte, fala de “ações heroicas” praticadas contra os “tiranos”. Que ações heroicas eram essas? Não seriam atentados contra os governantes? Dessa forma, hoje o nosso tribuno defenderia o terrorismo… Você vê? Ele já está choramingando com o olho esquerdo…

* * *

“Quando o fanatismo, nascido da união monstruosa da ignorância e do despotismo, inventou, por sua vez, crimes de lesa-majestade divina; quando ele concebeu, em seu delírio, o projeto de vingar o próprio Deus, não teve que oferecer sangue também à Divindade e colocá-la ao nível dos monstros que se diziam suas imagens?”

Se Você não entendeu, traduzo. O fanatismo de que aí fala o deputado é o Catolicismo, fruto “da ignorância e do despotismo”, que inventou a Inquisição e a pena de morte para vingar a Deus.

Não acredito que Você ou qualquer demo-cristão discorde dele na questão da Inquisição, Vocês que são tão laicos e tão pouco vingativos… quando se trata de vingar a Deus.

Exatamente como um eco antecipado de sua argumentação, o eloquente tribuno prosseguiu o discurso, procurando demonstrar a ineficácia da pena capital na prevenção do crime:

“A pena de morte é necessária, dizem os partidários da antiga e bárbara rotina; sem ela não há freio suficientemente poderoso para o crime. Quem vos disse isso? Calculastes todos os recursos pelos quais as leis penais podem agir sobre a sensibilidade humana? Ah! antes da morte, quantas dores físicas e morais não pode o homem sofrer!

O desejo de viver cede o passo ao orgulho, a mais imperiosa de todas as paixões que dominam o coração do homem [os revolucionários são profundos conhecedores desse ponto…]. A mais terrível de todas as penas para o homem social é o opróbrio, é o esmagador testemunho da execração pública. Quando o legislador pode ferir os cidadãos em tantos lugares sensíveis e de tantas maneiras, como poderia ele considerar-se reduzido a aplicar a pena de morte? As penas não são feitas para atormentar os culpados, mas para prevenir o crime pelo temor de incorrer nelas”.

E mais: “A pena de morte é necessária, dizeis. Se é assim, por que vários povos souberam abster-se dela? Por que fatalidade esses povos foram os mais sábios, os mais felizes e os mais livres? Se a pena de morte é a mais própria para prevenir os grandes crimes, é preciso que estes tenham sido mais raros entre os povos que a adotaram e a prodigalizaram. Ora, é exatamente o contrário. Vede o Japão: em nenhum lugar a pena de morte e os suplícios são aplicados tão largamente; em nenhum lugar os crimes são tão frequentes e tão atrozes […]. As repúblicas da Grécia, onde as penas eram moderadas, onde a pena de morte era ou infinitamente rara ou absolutamente desconhecida, apresentavam mais crimes e menos virtude do que os países governados por leis de sangue?”

* * *

Esse argumento também Você externou, não é Maximiliano? Entretanto, esse deputado tão demo-cristão, tão profundo conhecedor da criminalidade… no Japão do século XVIII e na Grécia antiga, desconhecia o que se passava em Paris em sua época.

Meu Deus, Maximiliano, sua incredulidade me obriga a citações infindáveis! Entre 1749 e 1789, durante quarenta anos pois, em Paris, que tinha então cerca de 600 mil ou 700 mil habitantes, um historiador só encontrou notícia de dois homicídios. Dois. Dois apenas. Não dois mil, dois só. E em quarenta anos! Você não acredita? Esse historiador é Hugues de Montbas, que conta isso nas páginas 221-222 de seu livro La Police Parisienne sous Louis XVI, editado pela Hachette em 1949.

E na França do século XVIII, havia a pena de morte! Nossas metrópoles atuais vão batendo sucessivos recordes de criminalidade, apesar de termos uma escola em cada bairro, apesar dos métodos mais modernos de recuperação dos criminosos, apesar da abolição dos castigos corporais, apesar da abolição da pena de morte em quase todos os países etc., etc. De que vale tudo isso se não há mais fé nem moral?

* * *

Um argumento muito aventado contra a pena de morte é o de que pode haver um erro no julgamento e ser executado então um inocente. É este um de seus argumentos prediletos, Maximiliano. É o que lembrou também o deputado que estou citando (calma! calma! no final eu digo o nome). Assim falava ele, no longínquo e revolucionário ano de 1791: “Escutai a voz da justiça e da razão, ela vos grita que os julgamentos humanos nunca são suficientemente certos para que a sociedade possa dar a morte a um homem condenado por outros homens sujeitos a erro”.

Esse demo-cristão avant la lettre, como bom discípulo de Rousseau, vê na justiça apenas um meio para recuperar os criminosos e lembra que a pena de morte tira do homem “a possibilidade de expiar seu crime pelo arrependimento ou por atos de virtude”.

E conclui afirmando: “Observou-se que nos países livres, os crimes eram mais raros e as leis penais mais suaves. Todas as ideias se ligam entre si. Os países livres são aqueles em que os direitos do homem são respeitados e onde, por consequência, as leis são justas. Por toda parte onde as leis ofendem a humanidade por um excesso de rigor, eis uma prova de que aí a dignidade humana não é conhecida [viva! está aí a marca do demo-cristianismo: a preocupação com a dignidade humana], que a do cidadão não existe: é uma prova de que o legislador não é senão um amo que manda em escravos e que os castiga impiedosamente segundo sua fantasia. Eu concluo por que a pena de morte seja ab-rogada”.

* * *

Eu creio, primo Maximiliano, que Você, se estivesse presente nessa tão interessante sessão parlamentar, aplaudiria, com entusiasmo, tal discurso.

Imagine: ser contra a pena de morte em nome da dignidade humana! Mas é um precursor! É um precursor! Você me pergunta ansioso: — Mas quem é? quem é esse deputado? Você não quererá propô-lo post mortem como membro honorário da democracia-cristã?

* * *

Pois sabe Você quem é esse orador de ideias tão arejadas, tão modernas, de espírito tão parecido com o seu em tantos pontos, que se pode até dizer que foi realmente um precursor do espírito progressista e demo-cristão? Lá vai o seu nome: — Maximiliano Robespierre.

Sim, Robespierre, — Você leu direito! Robespierre, inimigo da pena de morte! Ele que foi o maior responsável pelos crimes do Terror! Ele, o homem que redigiu a Lei dos Suspeitos, que proibiu a defesa dos acusados perante o Tribunal Revolucionário, que dispensou o interrogatório prévio e o depoimento de testemunhas! O homem que fez condenar à morte por simples suspeita, e suspeita apenas, de não pensar como ele! O homem que fez o Terror em 1794, discursava contra a pena de morte em 1791, com os mesmos argumentos que Você usou outro dia!

“Sila venceu e disse: — ‘Todos os que tomaram armas contra mim são dignos de morte’. Otávio e os companheiros de seus crimes confirmaram essa lei”. Assim falava o democrático Robespierre em 1791. Mas três anos depois, não era preciso ter tomado as armas contra ele para ir para a guilhotina: bastava ser suspeito de não querer adorá-lo.

“A pena de morte é um covarde assassínio jurídico”. Assim pensava o manso, o misericordioso Robespierre de 1791. Depois… Depois, veio o Terror.

* * *

Não é esse um caso muito interessante de evolução do pensamento jurídico de uma pessoa? Essa mudança de 180 graus em três anos não é o que Você chama de aggiornamento, isto é, “adaptação dos princípios a uma nova realidade”? Tal é a lógica dos revolucionários.

Você não estava lá para aplaudir entusiasticamente seu xará, mas houve quem fizesse a claque por Você.

Na História Universal de J. B. Weiss, vol. XV, página 762, lê-se que outro deputado aplaudiu muito a Robespierre: foi Marat! O sanguinário Marat, o louco Marat que defenderia mais tarde a tese de que para salvar a França era preciso matar 260 mil pessoas, inocentes ou culpadas, pouco importava, — ele também era, em 1791, contra a pena de morte!

A História tem paradoxos, Maximiliano, e a Revolução Francesa nos dá muitas lições. Uma que eu aprendi é que se deve desconfiar dos sentimentais que só choram com o olho esquerdo.

De seu primo, para sempre extremamente refratário e extremamente antiprogressista.

Orlando Fedeli (julho-1973)

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