Dominus Iesus – parte III

Data

Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no email
Compartilhar no whatsapp
Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no email
Compartilhar no whatsapp
image_pdfConverter em PDFimage_printPreparar para impressão

Orlando Fedeli

 

DOMINUS IESUS III: ANÁLISE DA DECLARAÇÃO

 

 

A Declaração Dominus Iesus é um documento complexo. De um lado, ela afirma de modo infalível dez verdades de Fé em que todos os católicos – clérigos e simples fiéis – devem crer. De outro, ela se estende em explicações nas quais se procura demonstrar que as verdades de Fé definidas estão de acordo com o que foi ensinado pelo Concílio Vaticano II. O que não é nada fácil.

Em geral, o documento condena as interpretações modernistas dos textos conciliares, procurando-se interpretá-los em harmonia com as verdades de Fé definidas pela Dominus Iesus.

Desse esforço hermenêutico resultam, por vezes, novas ambiguidades e até contradições.

É o que procuraremos demonstrar.

Evidentemente, destas ambiguidades e contradições, provocadas por um “tour de force” interpretativo, certamente procurarão se aproveitar os modernistas e ecumênicos – para manter tudo como estava -, na política eclesiástica.

Entretanto, as verdades de Fé foram definidas, e isso terá consequências, quer eles queiram ou não.

E é nisso que consiste o recuo.

A Declaração Dominus Iesus começa lembrando o mandato de Cristo à sua Igreja de evangelizar todos os povos, e cita São Paulo – “Ai de mim se não evangelizar” – para demonstrar a gravidade que tem o mandado de Nosso Senhor.

Como houve quem dissesse, após o Vaticano II, que a missão – como fora sempre entendida – era proselitismo, e que ela deveria ser substituída pelo diálogo ecumênico, a Declaração Dominus Iesus lembra que “… o diálogo interreligioso (…) certamente não substitui, mas acompanha a missio ad gentes…“.

Noutras palavras, o famoso diálogo não pode anular a missão de fazer apostolado e de converter o próximo à verdadeira Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica Apostólica Romana, fora da qual não há salvação.

Ora, durante os últimos trinta anos se condenou fazer “proselitismo”.

O próprio Cardeal Ratzinger defendeu a tese de que a unidade na diversidade impedia querer impor aos protestantes a aceitação do Papado:

“Pertence a esta “unidade através da diversidade” também a vontade de não querer impor ao outro aquilo que (ainda) o ameaça no centro de sua identidade cristã. Os católicos não deveriam procurar impelir os protestantes ao reconhecimento do Papa e da sua compreensão da sucessão apostólica” (Cardeal Joseph Ratzinger, Chiesa, Ecumenismo e Política, Edizioni Paoline, 1987, p. 136).

Ora, em contradição completa com o que escreveu Ratzinger nesse trecho citado, agora ele assina a Carta aos Bispos da Igreja Católica, na qual se lê:

“Neste empenho ecumênico, assumem prioritária importância a oração, a penitência, o estudo, o diálogo e a colaboração para que numa renovada conversão ao Senhor se torne possível a todos reconhecer a perenidade do Primado de Pedro nos seus sucessores, os Bispos de Roma” – Bendita mudança! Mas que é seguida por palavras atenuantes – “e ver realizado o ministério petrino, tal como é entendido pelo Senhor, como universal serviço apostólico, que está presente no interior de todas as igrejas e que, salvaguardada a sua substância de instituição divina, pode exprimir-se de diversos modos, de acordo com os lugares e os tempos, como atesta a história” (Carta da Congregação para a Doutrina da Fé aos Bispos da Igreja Católica, n. 18).

Por que Ratzinger não se penitenciou de ter escrito o oposto do que agora assinou?

Ou a afirmação de que “o ministério petrino (…) pode exprimir-se de diversos modos, de acordo com os lugares e os tempos, como atesta a história”, admite que o Papado pode deixar de ser o que sempre foi?

Ambiguidade de novo. Hesitação em admitir francamente que se errou nos últimos trinta anos, e tentativa de salvar a fórmula ambígua?

Lembra o documento assinado pelo Cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e por seu Secretário Dom Tarcísio Bertone, que a Declaração “não pretende tratar de forma orgânica a problemática da unicidade e universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo e da Igreja, nem apresentar soluções aos problemas e questões teológicos que são objeto de livre debate, mas voltar a expor a doutrina da fé católica em propósito, indicando, ao mesmo tempo, alguns problemas fundamentais que se mantém abertos a ulteriores aprofundamentos, e confutar (refutar) algumas posições errôneas ou ambíguas. É por isso que a Declaração retoma a doutrina contida nos anteriores documentos do Magistério, para reafirmar as verdades que constituem o patrimônio de fé da Igreja.” (Dominus Iesus, n. 3. Os negritos são nossos).

Curioso o uso dos verbos voltar, retomar e reafirmar…

Por que voltar? Por que retomar? Por que reafirmar?

Por acaso se havia abandonado “a exposição da doutrina da fé católica”?

Por acaso se havia abandonado “a doutrina contida nos anteriores documentos do Magistério”?

Muito curiosa formulação…

No número 4 da Dominus Iesus se apresenta o rol dos erros atuais que o novo documento do Vaticano pretende confutar:

  1. “Teorias de índole relativista que pretendem justificar o pluralismo religioso, não apenas de facto, mas também de jure (ou de princípio)”. Como se “o perene anúncio missionário da Igreja” estivesse superado.

Noutras palavras, a Dominus Iesus condena o relativismo e o princípio de que a pluralidade de religiões deve ser aceita como algo legítimo, e não apenas como fato concreto.

  1. A tese de que “a revelação de Jesus Cristo não seria completa, nem definitiva”.

Isto é, que a revelação de Cristo deve ser completada ainda na História por novas revelações, feitas sabe-se lá por que pseudo profeta.

  1. “A natureza da Fé cristã em relação com a crença nas outras religiões”.

Isto é, a equiparação da Fé católica com as crenças existentes em outras religiões.

  1. A negação do “caráter inspirado dos livros da Sagrada Escritura”.
  2. “A unidade pessoal entre o Verbo eterno e Jesus de Nazaré”.
  3. “A unidade da economia do Verbo encarnado e do Espírito Santo”.

Isto é, a teoria falsa de que uma foi a economia de salvação usada por Cristo na Igreja, e outra a que é usada pelo Espírito Santo em outras religiões.

  1. A negação da “unicidade e universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo”.

Isto é, o erro dos que afirmam que a salvação não vem unicamente por meio de Cristo, ou que a salvação de Cristo não é universal, estendendo-se objetivamente a todos os homens.

  1. A negação da “mediação salvífica universal da Igreja”.
  2. “A não separação, embora com distinção, do reino de Deus, Reino de Cristo e Igreja”.
  3. “A subsistência na Igreja Católica da única Igreja de Cristo”.

(Dominus Iesus, n. 4). (O negrito é nosso).

Essa lista de erros será o objeto da análise do documento Dominus Iesus.

A Declaração aponta como causa desses erros – e com muita razão – as “teorias de índole relativista”, tão em voga hoje.

Como outras causas de tais erros são apontados:

  1. “a convicção de não se poder alcançar nem exprimir a verdade divina, nem mesmo através da revelação cristã”;
  2. “uma atitude relativista perante a verdade, segundo a qual o que é verdadeiro para alguns não o é para outros”.

Não podemos deixar de assinalar a verdade dessa acusação: hoje, o maior obstáculo à aceitação da Fé Católica é a crença absurda de que cada homem possui sua verdade particular, e que, por isso, deve-se respeitar e aceitar qualquer opinião. A única posição que não se aceita e nem se tolera é a de que existe a verdade objetiva, que não depende de nossa opinião pessoal.

  1. “a contraposição radical que se põe entre a mentalidade lógica ocidental e a mentalidade simbólica oriental. Como se não fosse uma só a natureza dos homens no ocidente e no oriente”. Tolice essa muito difundida para justificar as elucubrações dos falsos misticismos orientais na moda, hoje, entre pseudo intelectuais, madames que não têm o que fazer ou certos monges beneditinos que creem mais nos métodos orientais de meditação do que no que sempre ensinou e praticou a Igreja Católica.
  2. “o subjetivismo de quem, considerando a razão como única fonte do conhecimento, se sente “incapaz de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser”.
  3. “a dificuldade de ver e aceitar na história a presença de acontecimentos definitivos e escatológicos”.
  4. “O vazio metafísico do evento da encarnação histórica do Logos eterno, reduzido a um simples aparecer de Deus na história”.
  5. “O ecletismo de quem, na investigação teológica, toma ideias provenientes de diferentes contextos filosóficos e religiosos sem se importar da sua coerência e conexão sistemática, nem da sua compatibilidade com a verdade cristã”.
  6. “a tendência, enfim, de interpretar a Sagrada Escritura à margem da Tradição e do Magistério da Igreja”.

O documento mostra que por trás dessa gravíssima série de erros – que é fácil de encontrar, hoje, em quase todos os autores mais cotados pela mídia – está a ideia de que a Igreja Católica não possui a verdade absoluta, nem tem poder de salvação universal.

A Declaração Dominus Iesus vai raciocinar dizendo que, sendo Jesus Cristo o único salvador e a encarnação do Verbo de Deus, e sendo a Igreja o seu único Corpo Místico, assim como não há salvação que não seja por meio de Jesus Cristo, não há também salvação fora da Igreja.

Cristo é o único e universal salvador. A Igreja Católica Apostólica Romana, Corpo Místico de Cristo, é também o único e universal meio de salvação.

Daí uma verdade de Fé é definida, com obrigação de ser aceita por todos os membros da Igreja, clero e fiéis:

“Antes de mais, deve crer-se firmemente que a “Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação; ora, Ele torna-Se-nos presente no seu Corpo que é a Igreja; e, ao inculcar por palavras explícitas a necessidade da fé e do Batismo (Cfr. Mc 16,16; Jo 3,5), corroborou ao mesmo tempo a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo tal como por uma porta” (Dominus Iesus, n. 20).

Para combater o relativismo que desgraçadamente se difundiu nos últimos trinta anos até mesmo entre os católicos, a Declaração Dominus Iesusafirma:

“Há que reafirmar, antes de mais nada, o caráter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo. Deve, de fato, crer-se firmemente na afirmação de que no mistério de Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado, que é “o caminho, a verdade e a vida” (Cfr. Jo 14,6), dá-se a revelação da plenitude da verdade divina” (Dominus Iesus, n. 5).

Esta é a primeira verdade de Fé definida no documento em pauta.

Daí a condenação de erros opostos a esta última verdade de Fé citada:

“É, por conseguinte, contrário à Fé da Igreja a tese que defende o caráter limitado, incompleto e imperfeito da revelação de Jesus Cristo, que seria complementar da que é presente nas outras religiões. A razão de fundo de uma tal afirmação buscar-se-á no fato de a verdade sobre Deus não poder ser compreendida nem expressa na sua globalidade e inteireza por nenhuma religião histórica e, portanto, nem pelo cristianismo e nem sequer por Jesus Cristo. Semelhante posição está em total contradição com as precedentes afirmações da Fé” (Dominus Iesus, n. 6).

Depois de proclamar que a revelação de Jesus Cristo é única, plena, e completa, a Declaração Dominus Iesus ensina que a fé exige a adesão a Deus revelador e adesão ao conteúdo da revelação.

Afirma-se como verdade de Fé definida que tal Fé só existe na Igreja Católica Apostólica Romana e não existe de modo algum em outras religiões:

“Deve, portanto, manter-se firmemente a distinção entre a fé teologal e a crença nas outras religiões. (…) “Nem sempre se tem presente essa distinção na reflexão hodierna, sendo frequente identificar a fé teologal, que é aceitação da verdade revelada por Deus Uno e Trino, com crença nas outras religiões, que é experiência religiosa ainda à procura da verdade absoluta e ainda carecida de assentimento a Deus que Se revela. Essa é uma das razões por que se tende reduzir, e por vezes até anular, as diferenças entre o cristianismo e as outras religiões” (Dominus Iesus, n. 7).

Caberia perguntar ao Cardeal Ratzinger se não foi exatamente isso o que se fez durante trinta anos em nome dos textos do Vaticano II, que ele agora cita numa interpretação positiva, condenando a negativa.

Também foi muito difundida, nos últimos trinta anos, a tese modernista de que Deus Se revela no interior de cada homem, e que, portanto, Jesus teria sido apenas um homem que tomou consciência de Deus Se revelando em seu interior. O mesmo fenômeno teria ocorrido com outras figuras históricas como Buda e Maomé, por exemplo. Desse modo, a revelação de Deus em Cristo deveria ser equiparada com a revelação de Deus em Maomé, Buda e outros fundadores de religiões.

Essa heresia é lembrada e condenada agora, mais uma vez, pela Dominus Iesus:

“Na reflexão teológica contemporânea é frequente fazer-se uma aproximação de Jesus de Nazaré, considerando-o uma figura histórica especial, finita e reveladora do divino de modo não exclusivo, mas complementar a outras presenças reveladoras e salvíficas. O Infinito, o Absoluto, o Mistério último de Deus manifestar-se-ia assim à humanidade de muitas formas e em muitas figuras históricas: Jesus de Nazaré seria uma delas. Mais concretamente, seria, para alguns, um dos tantos vultos que o Logos teria assumido no decorrer dos tempos para comunicar em termos de salvação com a humanidade”(…) “Semelhantes teses estão em profundo contraste com a fé cristã. Deve, de fato, crer-se firmemente na doutrina de fé que proclama que Jesus de Nazaré, filho de Maria, e só Ele, é o Verbo do Pai” (Dominus Iesus, n.9 e 10).

Eis mais uma verdade de Fé definida, que se torna obrigatório para todos os católicos aceitarem, mesmo que sejam membros da CNBB, como Dom Ivo Lorscheider, por exemplo.

Realmente, essa parece uma velha canção, há muito esquecida, e que agora retorna, graças a Deus, a ser ouvida!

De novo: foi isso um avanço no caminho do ecumenismo? Ficou-se na mesma posição? (o Cardeal Martini acha que sim; que ficou tudo na mesma) Ou foi dado um passo atrás?

Houve, então, um recuo.

Recuo hesitante – e sem entusiasmo, cheio de restrições e tentativas de harmonização com o que tem sido dito e feito nos últimos trinta anos, sem dúvida. Mas recuo.

A Declaração Dominus Iesus faz menção – e condena – a duas outras teses ecumenistas: a primeira seria a de que se deve distinguir uma ação do Verbo de Deus encarnado em Cristo no cristianismo, e uma atuação do Logos divino nas religiões não cristãs; a segunda seria a de que se deve distinguir uma economia de salvação própria do Verbo na Igreja Católica, e uma economia de salvação do Espírito Santo nas outras religiões.

Contra essas teses heréticas, diz a Dominus Iesus:

“Portanto, não é compatível com a doutrina da Igreja a teoria que atribui uma atividade salvífica ao Logos como tal na sua divindade, que se realizasse “à margem” e “para além” da humanidade de Cristo, também depois da encarnação” (Dominus Iesus, n. 10).

“Há ainda quem sustente a hipótese de uma economia do Espírito Santo com um caráter mais universal que a do Verbo Encarnado, crucificado e ressuscitado. Também esta afirmação é contrária à fé católica, que, ao contrário, considera a encarnação salvífica do verbo um acontecimento trinitário” (Dominus Iesus, n. 12).

Contra esses erros, é definida como verdade de Fé a seguinte tese:

“Do mesmo modo, deve crer-se firmemente na doutrina de fé sobre a unicidade da economia salvífica querida por Deus Uno e Trino, em cuja fonte e em cujo centro se encontra o mistério da encarnação do Verbo, mediador da graça divina no plano da criação e da redenção (Cfr. Cl 1,15-20) “recapitulador de todas as coisas” (1Co 1,30) (Dominus Iesus, n. 11).

O ponto crucial do ecumenismo é o da unidade e o da unicidade da Igreja. Com relação a esse ponto é que se tem errado tanto nos últimos trinta anos, exatamente por causa do ecumenismo nascido do Vaticano II. Tem-se repetido de todos os modos que a Igreja de Cristo é uma espécie de federação de todas as religiões, e que a fé católica deveria ser complementada pelas verdades existentes em outras crenças.

A respeito desse problema eclesiológico diz a Dominus Iesus:

“É igualmente freqüente a tese que nega a unicidade e a universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo. Tal posição não tem nenhum fundamento bíblico. Deve, invés, crer-se firmemente, como dado perene da fé da Igreja, a verdade de Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor e único Salvador, que no seu evento da encarnação, morte e ressurreição realizou a história da salvação, a qual tem nEle a sua plenitude e o seu centro” (Dominus Iesus, n. 13).

Eis aí a proclamação e definição de uma verdade de Fé bem necessária em nossos ecumênicos tempos. E quantos a negam hoje, especialmente no clero!

E eis esta outra verdade de Fé, agora mais obrigatória:

“Deve, portanto, crer-se firmemente, como verdade de Fé católica, que a vontade salvífica universal de Deus Uno e Trino é oferecida e realizada de uma vez para sempre no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus” (Dominus Iesus, n. 14).

A Declaração Dominus Iesus lembra, com propriedade, que “não é raro que se proponha evitar na teologia termos como ‘unicidade’, ‘universalidade’, ‘absoluto’, cujo uso daria a impressão de se dar uma ênfase excessiva ao significado e valor do evento salvífico de Jesus Cristo em relação às demais religiões. Ora, essa linguagem não faz mais do que exprimir a fidelidade ao dado revelado, uma vez que constitui uma evolução das próprias fontes da fé. Desde o início, efetivamente, a comunidade dos crentes atribuiu (sic?) a Jesus um valor salvífico de tal ordem, que apenas Ele, como Filho de Deus feito homem, crucificado e ressuscitado, por missão recebida do Pai e no poder do Espírito Santo, tem por finalidade dar a revelação e a vida divina à humanidade inteira e a cada homem” (Dominus Iesus, n. 15).

A tese da unicidade e universalidade da redenção de Cristo é defendida pelo documento da Congregação da Doutrina da Fé. Lamentável é que se use o termo “evolução” para algo relativo ao conteúdo da Fé. Esta não evoluiu. Desde o princípio ela foi aceita inteira, tal qual foi revelada inteira por Cristo. A verdade revelada foi explicitada, aprofundada, mas não evoluiu.

Também é lamentável o dizer-se que “a comunidade dos crentes atribuiu a Jesus um valor salvífico”. Cristo, Deus e homem verdadeiro, não se tornou tal por atribuição dos crentes.

Por fim, é imprecisa a expressão de que Cristo veio dar “a vida divina à humanidade inteira e a cada homem”, porque não faz a distinção necessária entre redenção universal objetiva e redenção subjetiva. Cristo, pelos seus méritos infinitos, redimiu todos os homens. Porém a nem todo homem aproveita o benefício da redenção.

Unicidade e unidade da Igreja.

Na Enciclopédia Católica, publicada em 1949 no Vaticano, o verbete Ecumenismo – escrito pelo Padre Gordillo S.J., afirma o seguinte:

“Ecumenismo: No seu sentido próprio (…) Ecumenismo é a teoria mais recentemente inventada pelos movimentos interconfessionais, mais particularmente protestantes, para produzir a união das igrejas cristãs.

O Ecumenismo pressupõe, como base própria, a igualdade de todas as igrejas colocadas em face da questão da união, e isto sob um tríplice aspeto: psicológico, histórico e escatológico.

  1. Psicologicamente, todas as igrejas devem se reconhecer a si mesmas como igualmente culpáveis pela separação, e em lugar de jogarem a culpa umas às outras devem pedir reciprocamente perdão;
  2. Historicamente, desde a separação nenhuma igreja pode considerar a si mesma como sendo a única e total Igreja de Cristo, mas somente uma parte desta única Igreja. Consequentemente, nenhuma entre elas pode arrogar-se o direito de obrigar as demais a retornar para ela, mas todas precisam sentir a obrigação para reunir-se a fim de reconstituir a Única Santa Igreja fundada pelo Salvador;
  3. Escatologicamente, a Santa Igreja Ecumênica que deve surgir deste novo Pentecostes deve ultrapassar do mesmo modo, cada uma das confissões cristãs.

Pode-se perceber desde o início que tais teorias são contrárias à Fé Católica”.

Ora, estes três princípios ecumênicos, condenados em 1949, passaram a ser professados pelos ecumenistas após o Vaticano II, com base nos textos desse Concílio Pastoral.

O texto da Dominus Iesus condena de novo esses três princípios. Daí a fúria dos progressistas contra a nova declaração de Roma.

Nos últimos trinta anos, deixou-se bem à sombra o dogma que afirma que “fora da Igreja não há salvação”. Pelo contrário, procurou-se ensinar persistentemente que a Igreja Católica não é a única Igreja verdadeira, que ela não tem o monopólio da verdade, nem o monopólio da revelação divina. Ela não seria a única esposa de Cristo, e que os homens podem se salvar na prática de qualquer religião, ainda que conheçam a religião católica. Exatamente no tom e no estilo empregado pelo Cardeal Martini em sua última entrevista. Desse modo, se nega a unicidade da Igreja e sua missão salvífica universal.

A Declaração Dominus Iesus mostra que, havendo um único mediador entre Deus e os homens pelo qual eles possam ser salvos, e que sendo a Igreja o Corpo Místico de Cristo, então, a Igreja tem que ser, também ela, única. Não há salvação fora da Igreja, como proclamou dogmaticamente o IV Concílio de Latrão, que é timidamente citado pelaDominus Iesusapenas numa nota (a de número 82).

Leiamos o que diz a Declaração citada:

“Assim, e em relação com a unicidade e universalidade da mediação salvífica de Jesus Cristo, deve-se crer firmemente como verdade de Fé católica a unicidade da Igreja por Ele fundada. Como existe um só Cristo, também existe um só seu Corpo e uma só sua esposa: “uma só Igreja Católica e apostólica” (Dominus Iesus, n.16. O negrito e o sublinhado são nossos. E entusiasmados!)

E na nota 51, que é posta no final dessa citação, se lê: “Símbolo da fé: Denzinger n.48. Cfr. Bonifácio VIII, Bula Unam Sanctam: Denz. n. 870-872; Conc. Vaticano II , Const. Dogm. Lumen Gentium, n.8″.

Que extraordinária novidade, que há trinta anos jazia esquecida: citar a Bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII. E que contraste citá-la junto com a Lumen Gentium!

Tendo em vista o que foi explanado, a Dominus Iesus conclui com a definição da verdade de Fé que mais atormentou e doeu nos ecumenistas e modernistas de todos os naipes e seitas:

“Os fiéis são obrigados a professar que existe uma continuidade histórica – radicada na missão apostólica – entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica: “Esta é a única Igreja de Cristo […] que o nosso Salvador, depois da ressurreição, confiou a Pedro para apascentar” (Dominus Iesus, n. 16).

Eis aí o grande recuo: “a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo”.

Desde o Vaticano II se substituíra o verbo ser, nessa afirmação, pelo verbo subsistir.

E por que se fizera essa substituição?

O próprio Cardeal Ratzinger explicou o porquê dessa troca de verbos em seu livro Teoria dos Princípios Teológicos.

“Esta Igreja… permanece [subsiste] na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele”. O texto latino – explica Ratzinger – contém muito finos matizes, graças aos quais se conseguiram marcar diferenças face à equação absoluta dos primeiros esquemas conciliares, que punham um sinal de igualdade total entre a Igreja de Jesus Cristo e a Igreja Católica Romana. Aqui não se tira nem um til da concreção do conceito de Igreja; a Igreja permanece ali onde estão os sucessores do Apóstolo Pedro e dos restantes apóstolos, que encarnam visivelmente a linha de continuidade com a origem. Porém, esta concreção plena não diz que tudo o mais deva considerar-se como não Igreja. O sinal de igualdade não é uma magnitude matemática, porque ao Espírito Santo não se O pode fechar em um símbolo matemático, nem sequer ali onde se vincula e se acredita de forma concreta” (Cardeal Joseph Ratzinger, Teoria de los Princípios Teológicos, Herder, Barcelona, 1985, p. 278).

A troca, na frase citada, do verbo ser pelo verbo subsistir foi feita, então, no Vaticano II, para permitir que a Igreja Católica deixasse de ser identificada com a igreja de Cristo. O verbo subsistir permitia pensar que além da Igreja Católica, outras religiões podiam pertencer também à Igreja de Cristo.

Assim como nenhum homem pode dizer que é a humanidade, mas que a humanidade subsiste nele, assim também a Igreja de Cristo subsistiria na Igreja Católica, mas não apenas nela.

Agora o Cardeal Ratzinger assina a Declaração Dominus Iesus que, de fato, vai contra o que ele mesmo escreveu no livro acima citado, como vai contra também o texto do Vaticano II que diz que “a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica”.

Para salvar-se, e principalmente para salvar o texto do Concílio, Ratzinger lembra que o verbo subsistir pode ter também o sentido de “continuar a existir”. Por exemplo, quando se diz: “José subsiste apenas com o salário mínimo”. Ou: “os náufragos subsistiram comendo raízes”.

“Com a expressão “subsistit in”, o Concílio Vaticano II quis harmonizar duas afirmações doutrinais: por um lado, a de que a Igreja de Cristo, não obstante as divisões dos cristãos, continua a existir plenamente  na Igreja Católica – [Coisa que procurou mais que fazer esquecer, mas até combater nos últimos trinta anos] – “e, por outro, a de que “existem numerosos elementos de santificação e de verdade fora da sua composição”, isto é, nas Igrejas e Comunidades eclesiais que ainda não vivem em plena comunhão com a Igreja Católica” (Dominus Iesus, n. 16).

Essa última frase remete à nota 56 da Declaração, nota que diz o seguinte:

“É, portanto, contrária ao significado autêntico do texto do Concílio a interpretação que leva a deduzir da fórmula subsistit in a tese, segundo a qual, a única Igreja de Cristo poderia também subsistir em Igrejas e Comunidades eclesiais não católicas. “O Concílio, invés, adotou a palavra “subsistit” precisamente para esclarecer que existe uma só “subsistência” da verdadeira Igreja, ao passo que fora da sua composição visível existem apenas “elementa ecclesiae“, que – por serem elementos da própria Igreja – tendem e conduzem para a Igreja Católica” (Congregação para a Doutrina da Fé, Notificação sobre o volume: “Igreja, carisma e Poder” do P. Leonardo Boff. AAS 77 (1985) 756-762.) (O sublinhado é nosso.)

O texto da nota acima citada é a condenação da interpretação do próprio Cardeal Ratzinger, em seu livro Teoria dos Princípios Teológicos, a respeito da expressão subsistit in.

Está aí a confissão da duplicidade de sentidos que foi buscada propositadamente nos textos do Vaticano II, duplicidade de sentidos que deu aso ao desenvolvimento dos erros que agora a Dominus Iesus condena.

O que espanta é como se tem a coragem de dizer e de se desdizer, sem pedir desculpas, com a maior … frieza. E isso é feito exatamente pelos que pedem tão facilmente desculpas pelos pecados dos outros.

O que nos deixa perplexos é a publicação desta Declaração agora. Por que agora? O que aconteceu para que se voltasse a publicar uma citação da Unam Sanctam? Por que publicar agora esse desvelamento da duplicidade de sentido do texto conciliar?

E por que não pedir perdão pelo que foi feito e que causou tanta confusão?

O que espanta é que mesmo entre essa nota e o texto que ela pretende iluminar há uma certa contradição, pois no texto se diz que “a Igreja de Cristo subsiste plenamente só na Igreja Católica…”, enquanto que na nota se diz que “existe uma só “subsistência” da verdadeira Igreja”, sem usar o advérbio plenamente. A utilização do advérbio plenamente, no documento em foco, mantém a ambiguidade, o que é uma lástima.

Muito provavelmente, graças a essa e a outras contradições produzidas pelas citações, se persistirá a dizer e a fazer o oposto do que é definido nas verdades de Fé proclamadas pela Dominus Iesus. Infelizmente.

O texto da Declaração condena a afirmação de que a Igreja de Cristo é a soma das igrejas, ou a de que a Igreja de Cristo não existe hoje. E cita o Vaticano II:

“Os elementos desta Igreja já realizada existem, reunidos na sua plenitude, na Igreja Católica e, sem essa plenitude, nas demais Comunidades”.

“Por isso, as próprias Igrejas e Comunidades separadas, embora pensemos que têm faltas, não se pode dizer que não tenham peso no mistério da salvação ou sejam vazias de significado, já que o Espírito não se recusa a servir-Se delas como instrumentos de salvação, cujo valor deriva da mesma plenitude da graça e da verdade que foi confiada à Igreja Católica”.

Portanto, a Igreja de Cristo se encontraria, embora não em sua plenitude, nas ‘demais comunidades’. O que vai contra o que foi definido antes na própria Dominus Iesus como verdade de Fé:

“Os fiéis são obrigados a professar que existe uma continuidade histórica – radicada na sucessão apostólica – entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica”: “Esta é a única Igreja de Cristo” (O negrito, entusiasmado, é nosso!)

Assinado, Cardeal Joseph Ratzinger. Com a aprovação do Papa João Paulo II. Na Festa da Transfiguração do Senhor.

Está escrito. Morreu o famoso ‘subsistit’. Seu atestado de óbito foi dado pela significação encontrada por Ratzinger: continua a existir.

E isso é, de fato, um verdadeiro recuo. Queiram ou não queiram os Bispos da Suíça, por exemplo, ou os da CNBB, isso é um verdadeiro recuo. Em que pese ao Cardeal Martini.

Pouco importa que o texto de Ratzinger prossiga dizendo coisas diversas. Ele afirmou que “Existe, portanto, uma única Igreja de Cristo que subsiste [continua a existir] na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele” (Dominus Iesus, n. 17).

A formulação assim expressa – e no contexto da Dominus Iesus – perde seu veneno ecumênico. Já não é permitido afirmar que na Igreja de Cristo subsistem também as demais “comunidades” cristãs. As seitas derivadas da Reforma não fazem parte da Igreja de Cristo.

E isso é confirmado por outro texto da Dominus Iesus:

“As igrejas que embora não estando em perfeita comunhão com a Igreja Católica, se mantém unidas a esta por vínculos estreitíssimos, como são a sucessão apostólica e uma válida eucaristia [as igrejas orientais cismáticas], são verdadeiras Igrejas Particulares. Por isso, também nestas igrejas está presente e atua a Igreja de Cristo, embora lhes falte a plena comunhão com a Igreja Católica, enquanto não aceitam a doutrina do Primado que, por vontade de Deus, o Bispo de Roma objetivamente tem e exerce sobre toda a Igreja” (Dominus Iesus, n. 17)

Esse texto exclui claramente da Igreja todas as “comunidades” nascidas da Reforma, inclusive os Anglicanos que não têm sucessão apostólica, como foi decretado pelo Papa Leão XIII no século passado.

É o que confirma o seguinte texto da Declaração que estamos analisando:

“As comunidades eclesiais, invés, que não conservaram um válido episcopado e a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, não são igrejas em sentido próprio” (Dominus Iesus, n. 17. O negrito é nosso).

A Declaração prossegue tratando de outra tese modernista: a de que a Igreja seria a soma, ou uma síntese federativa de todas as igrejas ou religiões:

“Os fiéis não podem, por conseguinte, imaginar a Igreja de Cristo como se fosse a soma – diferenciada e, de certo modo, também unitária – das Igrejas e Comunidades eclesiais, nem lhes é permitido pensar que a Igreja de Cristo hoje já não exista em parte alguma, tornando-se assim, um mero objeto de procura por parte de todas as Igrejas e Comunidades” (Dominus Iesus, n. 17).

Pois essa proibição atinge até mesmo o próprio Cardeal Ratzinger. Oscar Cullmann, o famoso teólogo protestante com quem Ratzinger teve longo carteio, e de quem era amigo pessoal, em uma entrevista publicada em 30 Giorni (30 Dias) declarou:

“No meu livro A unidade através da Diversidade propus um novo modelo de ecumenismo, uma “comunidade das Igrejas” que criam uma estrutura de comunhão no respeito das diversidades recíprocas. Ratzinger me escreveu, e o repetiu publicamente no dia 29 de janeiro, que esse modelo é a única possibilidade de realizar o ecumenismo hoje” (Oscar Cullmann, in 30 Giorni, n.3, Março de 1993, p. 12, 1ª coluna).

Ratzinger nunca desmentiu essa declaração. Agora, a tese de Cullmann, que Ratzinger apoiou, é condenada na Dominus Iesus assinada pelo mesmo Ratzinger.

Será que o Cardeal Joseph Ratzinger esqueceu o que sempre defendeu?

Sobre o problema da salvação, a Dominus Iesus define como verdade de Fé:

“Antes de mais, deve crer-se firmemente que a “Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação; ora, Ele trona-Se-nos presente no seu Corpo que é a Igreja; e, ao inculcar-nos por palavras explícitas a necessidade da fé e do Batismo (cf. Mc 16,16; Jo 3,5), corroborou ao mesmo tempo a necessidade da Igreja na qual os homens entram pelo Batismo tal como por uma porta” (Dominus Iesus, 20).

Depois disso, infelizmente, a Declaração ziguezagueia de novo, citando textos do Vaticano II e posteriores, procurando dizer que a salvação pode ser obtida mesmo fora dos limites visíveis da Igreja, o que só é possível excepcionalmente, e apesar da religião falsa.

E, por isso, cita-se o documento Nostra Aetate, do Vaticano II:

“A Igreja não rejeita absolutamente nada daquilo que há de verdadeiro e santo nessas religiões” (não católicas) (Dominus Iesus, n. 2);

“O diálogo inter-religioso importa numa “atitude de compreensão e uma relação de recíproco conhecimento e mútuo enriquecimento, na obediência à verdade e no respeito à liberdade” (Dominus Iesus, n. 2)

“(…) a crença nas outras religiões é o conjunto de experiência e pensamento, que constitui os tesouros humanos de sabedoria e de religiosidade, que o homem na sua procura da verdade ideou e pôs em prática em referência ao Divino e ao Absoluto”.

“Em relação aos “textos sagrados de outras religiões”, “certamente deve admitir-se que alguns elementos presentes neles são de fato instrumentos, pelos quais multidões de pessoas puderam, através dos séculos – e podem ainda hoje-, alimentar e manter a sua relação religiosa com Deus”. Daí dizer o Vaticano II que “muitas vezes [as outras religiões] refletem um raio daquela Verdade, que ilumina todos os homens” (Dominus Iesus, n. 8)

“Além disso, a ação salvífica de Jesus Cristo, com e pelo seu Espírito, estende-se para além dos confins visíveis da Igreja, a toda a humanidade. (…) O Concílio afirma: ‘E isto vale não apenas para aqueles que creem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais, invisivelmente, opera a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é realmente uma só, a saber divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal” (Dominus Iesus, n. 12).

Citando a Redemptoris Missio, de João Paulo II: “A presença e a ação do Espírito Santo não atingem apenas os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas, as religiões. (…) É ainda o Espírito que infunde as ‘sementes do Verbo’ presentes nos ritos e nas culturas, e as faz amadurecer em Cristo” (Dominus Iesus, n. 12).

“Tendo presente este dado de fé [a vontade salvífica universal de Deus], a teologia hoje, meditando na presença de outras experiências religiosas e no seu significado no plano salvífico de Deus, é convidada a explorar se e como também figuras e elementos positivos de outras religiões reentram no plano divino de salvação” (Dominus Iesus, n. 14).

O que teria sido preciso lembrar, antes de mais nada, é o que ensina a doutrina tradicional católica sobre a possibilidade de salvação dos que estão fora da Igreja.

Se alguém, pertencendo de boa-fé a uma religião falsa, cumpre entretanto a lei natural e se encontra em situação de ignorância invencível em relação à doutrina católica, poderá se salvar porque, sem saber, pertence à alma da Igreja (o Espírito Santo que concede a graça santificante), embora não pertença ao corpo da Igreja. Mantém-se íntegra a norma extra ecclesiam nulla salus: para salvar-se, é preciso pertencer ao corpo da Igreja, ou ao menos à sua alma. Deus não condena ninguém sem culpa.

Entretanto, é preciso sempre ressaltar duas coisas:

  1. a salvação dos que não pertencem ao corpo da Igreja é excepcional, porquanto, como diz o Syllabus, é um erro afirmar que se pode esperar bem da salvação deles;
  2. os que se salvam estando em outra religião não se salvam por obra dela, mas apesar dela.  Assim, por exemplo, um protestante jamais pode se salvar por causado protestantismo, mas apesar do protestantismo.

O ziguezagueio é nítido também nesta afirmação da Declaração em pauta:

“Com a vinda de Jesus Cristo Salvador, Deus quis que a Igreja por Ele fundada fosse o instrumento de salvação para toda a humanidade (Cfr. Act XVII, 30-31). Esta verdade de Fé nada tira ao fato de a Igreja nutrir pelas religiões do mundo um sincero respeito, mas, ao mesmo tempo, exclui de forma radical a mentalidade indiferentista “imbuída de um relativismo religioso que leva a pensar que “tanto vale uma religião como outra” (Dominus Iesus, n. 22. O itálico e o negrito são nossos).

E aí está mais uma verdade de Fé. E mais uma condenação de um erro contrário a ela: o de que tanto faz escolher uma religião quanto outra; todas se equivaleriam.

Mas, evidentemente, há um ziguezagueio – para não dizer incoerência e até contradição – entre a parte citada em itálico e a parte citada em negrito.

Como pode-se dizer que a Igreja tem “sincero respeito” pelas religiões do mundo, se “exclui de forma radical a mentalidade indiferentista“…etc.?

O respeito pode ser pelas pessoas que se deseja converter à verdadeira e única Igreja de Cristo, a Igreja Católica Apostólica Romana, mas nunca pelas falsas religiões que, não podendo salvar, perdem as almas. O médico respeita o doente, mas nunca pode afirmar que tem “um sincero respeito” pelo câncer que o afeta. E é, aliás, o que a própria Declaração afirma, graças a Deus, com as seguintes palavras:

“A paridade, que é um pressuposto do diálogo, refere-se à igual dignidade pessoal das partes, não aos conteúdos doutrinais e muito menos a Jesus Cristo – que é o próprio Deus feito Homem – em relação com os fundadores das outras religiões” (Dominus Iesus, n. 22).

Em todo caso, o que está afirmado é que não se pode sustentar “que tanto vale uma religião como outra”, e que não se pode colocar no mesmo nível Jesus Cristo com os fundadores de religiões falsas.

Vemos por essas condenações dos erros que grassam entre os católicos desde o Vaticano II – causados pela ambiguidade de seus textos – que, como bem lembra a Declaração Dominus Iesus, a causa fundamental de tanta confusão doutrinária é o relativismo e o subjetivismo face à verdade (cfr. Dominus Iesus, n. 4).

Ora, a condenação do indiferentismo e do relativismo – e, portanto, a afirmação que a verdade é uma só e cognoscível pelo homem – vai contra muita coisa que o próprio Cardeal Ratzinger defendeu nos anos pós conciliares.

Assim, em seu livro que já citamos, Teoria de los Princípios Teológicos, ele escreveu:

“Isto significa, ao mesmo tempo, que a verdade é sempre uma direção, uma meta, nunca uma posse definitiva. Cristo que é a verdade, é, neste mundo, caminho: porque é a verdade” (Cardeal Joseph Ratzinger, op cit. p. 72).

E ainda, esta defesa do relativismo ecumênico – agora condenado – feita pelo Cardeal Ratzinger:

“Nesta perspectiva, tanto a interpretação católica como a protestante do cristianismo – cada uma em sua posição e com sua importância – são verdadeiras em sua hora histórica, porém só permanecem sendo tais quando, chegado ao ponto final de sua hora, se as abandona e se as insere no todo, que está em transe de nova formação. A verdade é função do tempo” (Cardeal J. Ratzinger, op cit. pp. 16-17. O negrito é nosso).

Linhas depois, nesse mesmo livro, disse o Cardeal Ratzinger:

“Sob este ponto de vista, a fidelidade à verdade de ontem consiste em abandoná-la, em “superá-la”, elevando-a à verdade de hoje” (Cardeal J. Ratzinger, op. cit. p. 17).

Vê-se aí, por essas citações, como Ratzinger defendia o relativismo da verdade em função do tempo – o que hoje é verdade, amanhã não o será mais – e paridade da interpretação católica e protestante do que significa o que é cristão.

Graças a Deus, o texto da Dominus Iesus,assinada pelo Cardeal Ratzinger com a aprovação do Sumo Pontífice João Paulo II, diz o oposto do que escreveu o Cardeal Ratzinger, em 1982.

Concluindo.

Na Dominus Iesus,é preciso distinguir, muito claramente, as verdades de Fé definidas das exposições doutrinárias e citações que as fundamentam.

As definições das dez verdades de Fé publicadas são excelentes. As citações com as quais se procura fundamentá-las falham por sua ambiguidade.

Dessa contradição entre as verdades de Fé definidas e proclamadas com as citações pelas quais se tenta explicá-las é que nascem as controvérsias atuais em torno da nova declaração vaticana: os progressistas e modernistas se apoiam nessa citações do Vaticano II para afirmar que nada mudou e que o ecumenismo deve prosseguir como antes, sem considerar as dez verdades de Fé que contrariam o núcleo do movimento ecumênico.

Outros, progressistas e modernistas mais radicais e líderes de religiões falsas, salientam essas dez verdades como sendo um tiro no movimento ecumênico.

Alguns direitistas e tradicionalistas ante ecumênicos, apesar de apoiarem as dez verdades de Fé definidas e proclamadas – graças a Deus – pela Dominus Iesus,se impressionam pelas citações ambíguas do Vaticano II que as contrariam, e têm dificuldade em dar uma adesão plena ao novo documento.

A ambiguidade das citações é real e sua contradição com as verdades de Fé definidas, por vezes, é bem flagrante.

Fica-se com a nítida impressão de que se buscou salvar as frases equívocas do Vaticano II – causadoras dos erros que agora se condenam – ao mesmo tempo que se condenava a interpretação modernista que elas propiciavam.

Nós julgamos que, apesar das citações ambíguas do Vaticano II, houve, de fato, um recuo na política seguida desde o Vaticano II.

As dez verdades de Fé definidas devem ser aceitas de todo o coração e de toda alma por todos os católicos, e a elas damos nossa adesão filial e inteira.

Proclamando essas verdades de Fé, a Dominus Iesus, em concreto, foi um recuo. E um recuo que terá consequências sérias já em futuro próximo. Possa este recuo levar ainda a outros que façam a nave da Igreja voltar a seu porto de partida. Tal como profetizou Dom Bosco.

image_pdfConverter em PDFimage_printPreparar para impressão