Escribas, Doutores da Lei e Fariseus

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Orlando Fedeli

Escribas, Doutores da Lei e Fariseus

Quomodo dicitis: ‘Sapientes sumus et lex Domini nobiscum est’?

Vere mendacium operatus est stylus scribarum (Je 8,8)

1 – Introdução

Nos Evangelhos, Nosso Senhor Jesus Cristo atacou com extrema energia os escribas, os doutores da Lei e os fariseus, lançando contra eles oito maldições solenes, que se opõem às oito bem-aventuranças. Normalmente, ouvem-se a respeito apenas surrados chavões que reafirmam terem sido os fariseus hipócritas, acrescentando-se poucas informações.

Ora, a luta acirrada entre Cristo Redentor e os fariseus é um dos pontos centrais da narrativa histórica dos Evangelhos, luta que veio a culminar com o deicídio, no Calvário. Importa, pois, sobremaneira compreender o que foram e o que pensaram esses escribas, doutores da Lei e fariseus. Qual era a sua origem? Qual a sua doutrina? Por que Cristo se lhes opôs com tanta força? Por que recusaram eles o Messias? Como se tornaram “cegos ao meio-dia” (Is 59,10)? Por que não aceitaram a Sabedoria, e por que fecharam seus olhos e ouvidos a Cristo, apesar de reconhecerem os seus milagres (“Que havemos de fazer? Este homem faz muitos milagres”, Jo 11,41). Por que não O viram, quando “lançaram o olhar para aquele a quem transfixaram” (Jo 19,37)?

O crime do deicídio foi o resultado final de uma longa decadência e corrupção. Na própria Sagrada Escritura encontramos a prova de que o mal vinha de longe. Foram os grandes pecados do povo eleito que provocaram a ira de Deus e fizeram vir pesados sofrimentos sobre Israel e Judá. Por esses pecados, os principais responsáveis foram os sacerdotes e os soberanos. E, em consequência, Deus fez Jerusalém ser conquistada, o Templo ser destruído e o povo ser levado em cativeiro, servindo os pagãos.

Em 598 a.C., Nabucodonosor, rei dos caldeus, invadiu pela primeira vez a Palestina, a pretexto de que o rei de Judá, Joaquim, recusara pagar-lhe tributos. Jerusalém foi cercada e o rei Joaquim acabou por ser deposto, sendo colocado em seu lugar seu tio Sedecias. Tragédia maior, Nabucodonosor saqueou o Templo de Deus e levou o rei, seus familiares e muitas famílias nobres para o exílio, em Babilônia.

Anos depois, recusando os conselhos do profeta Jeremias e seguindo a falsa sabedoria de maus conselheiros, o rei Sedecias aliou-se aos egípcios do faraó Hofra, esperando da força humana a vitória sobre Nabucodonosor e a libertação dos exilados na Caldéia.

A rebelião de Sedecias causou uma segunda invasão caldaica. Nabucodonosor venceu os egípcios e cercou Jerusalém pela segunda vez. Após dezoito meses de luta, a cidade de Deus foi conquistada (junho de 587 a.C.). Desta vez, tudo foi destruído. Nem o Templo de Salomão foi poupado pelo incêndio. A população de Jerusalém foi levada para o cativeiro de Babilônia. Muitos outros judeus, que se haviam comprometido com a aliança egípcia, fugiram para as terras do faraó. Poucos puderam ficar na Palestina, mas, devido a novas intrigas políticas, os caldeus, pela terceira vez, tomaram o país, executando uma terceira deportação.

Qual foi a causa maior de tamanhas desgraças políticas e religiosas? No livro do profeta Ezequiel se encontra a resposta a essa questão. Lá se lê que o próprio Deus mostrou ao profeta Ezequiel a razão da destruição de Jerusalém e do Templo de Deus: a idolatria a que secretamente entregaram os sacerdotes de Deus. Enquanto no Templo e publicamente eles diziam adorar o Criador do céu e da terra, nas trevas, secretamente, eles adoravam os ídolos do Egito. No capítulo VIII do livro de Ezequiel há uma descrição muito viva e curiosíssima desse culto secreto: Deus ordena ao profeta que raspe uma parede, e, quando ele o faz, aparece uma porta oculta. Deus e o profeta entram por ela e chegam a um local escondido, onde os sacerdotes do Altíssimo e os Anciãos da casa de Israel estavam adorando os ídolos (cfr. Ez 8,7-13).

Havia, pois, desde o século VI a.C., um culto secreto aos ídolos nos porões do Templo. Tal foi a causa da destruição do Templo e do reino de Judá. Essa idolatria secreta praticada pelos sacerdotes de Deus e pelos Anciãos do povo tinha que ser sustentada por uma doutrina religiosa que os sacerdotes e Anciãos não revelavam ao povo simples. Essa doutrina, muito provavelmente, era gnóstica.

Tendo perdido a pátria e o Templo, não tendo mais nem rei nem Estado nacional, deportados para Babilônia, exilados no Egito, dispersos entre os estrangeiros, estrangeiros em sua antiga terra, os judeus, agora, só tinham a religião como traço de união.

Os caldeus permitiram aos deportados uma certa liberdade, deixando-os ser dirigidos por seus próprios líderes e por seus profetas. Para manter o povo unido, o profeta Ezequiel e seus sucessores organizaram casas de oração – as sinagogas – e já que não era mais possível sacrificar no Templo (pois fora destruído), a sinagoga se tornou, desde então, o centro da vida religiosa judaica. Nelas se rezava, liam-se e comentavam-se as Escrituras. Junto a elas, logo se desenvolveram escolas para estudar a Lei e os Profetas. Segundo consta, o próprio profeta Ezequiel teria organizado também um órgão dirigente dos expatriados, constituído de setenta elementos, do qual se originará o Sinédrio.

O exílio de Babilônia durou de 587 a.C. até o edito de Ciro, rei dos persas, que, tendo vencido os caldeus, deu permissão a que uma primeira leva de judeus retornasse à sua pátria, em 538 a.C, organizando uma satrapia persa na Palestina. Já essa primeira leva teve licença para reconstruir o altar de Deus em Jerusalém. Em 520 a.C., Dario I permitiu a saída de um segundo grupo de judeus, sob a direção de Zorobabel, concedendo-lhes ainda o rei persa que reconstruíssem o Templo de Jerusalém. Este segundo Templo foi concluído em 515 a.C.

Em 458 a.C., Esdras trouxe o resto do povo para Jerusalém e fez uma solene promulgação da Lei de Moisés, renovando o pacto do povo judeu com Deus. Os judeus acreditam que, o que eles chamam de A Grande Sinagoga, foi constituída no tempo de Esdras, porém essa tradição é carente de fundamento histórico (cfr. A. Merk S. J., Introductionis in S. Scripturae Libros, Lethielleux, Paris, 1940, Vol. I, p.95).

Os setenta anos de exílio em Babilônia não corrigiram totalmente o povo. Até pelo contrário, ao que parece, alguns judeus trouxeram de Babilônia muitas ideias religiosas pagãs, que iriam provocar a formação de uma gnose judaica.

Além disso, o fato de terem ficado tantos anos sem pátria, sem Estado e sem Templo, fez com que os judeus passassem a centrar sua religião na pura prática escrupulosa da Lei e em seu estudo. Disso nasceu um desvio que supervalorizou a letra da Lei em detrimento de seu espírito.

Até o cativeiro de Babilônia, os próprios sacerdotes eram os guardiães da Torah (a Lei de Moisés, isto é, o Pentateuco). Depois do exílio, começaram a ganhar cada vez mais autoridade e importância como mestres explicadores e guardiães da Lei os chamados sábios ou escribas, os Soferim.

Em consequência da centralização da religião na Lei, formaram-se, pouco a pouco, especialistas na interpretação da Lei e em sua aplicação judicial: eram os mestres ou doutores da Lei. A aplicação casuística da Lei, a jurisprudência legalista, a adaptação dos princípios aos casos concretos foram paulatinamente dando supremacia à letra sobre o espírito. Foi a essa deturpação da religião que São Paulo fez referência, quando escreveu: “A letra mata, é o espírito que vivifica” (IICo 3,6).

Em breve, uma jurisprudência foi se formando segundo as chamadas “tradições dos Antigos” ou “tradições dos anciãos”. Essas tradições e costumes formaram a Lei Oral – a Torah Oral – que, aos poucos, ganhou tal força que suplantou em valor e respeito a própria Torah de Moisés, da qual ela tinha se originado. É a essa “tradição humana” que farão referência condenatória Cristo e o Apóstolo São Paulo: “E assim, vós, por causa de vossa tradição, mudastes o mandamento de Deus” (Mt 15,6). E ainda: “É em vão que me honram, ensinando doutrinas e mandamentos dos homens.” (Mt 15,9). São Paulo escreveu aos Colossenses: “Vede que ninguém vos engane por meio da filosofia inútil e enganadora, segundo a tradição dos homens” (Cl 2,8).

Que a chamada Torah Oral superou em respeito e valor a própria Torah mosaica é confirmado por todos os testemunhos históricos e pelos estudiosos da questão. Na Mishnah se lê:

“Maior obrigação se aplica à (observância) das palavras dos escribas do que às palavras da Lei (escrita)” (Mishnah, Sanhedrim, XI, 3).

“Se um homem disser: ‘Não há obrigação de usar filactérias’, ele transgride as palavras da Lei, e ele não é culpado; mas, se ele disser: ‘Deve haver nelas [nas filactérias] cinco repartições’, então ele acrescenta algo às palavras dos escribas, e é culpado” (Mishnah, Sanhedrim, XI,3).

A respeito da Torah Escrita e da Torah Oral diz G. G. Scholem: “De acordo com o uso comum nas fontes talmúdicas, a ‘Torá escrita’ é o texto do Pentateuco. A Torá Oral é a soma total de tudo o que foi dito por eruditos ou sábios a título de explicação deste corpus escrito, pelos comentadores talmúdicos da Lei e por todos os demais que interpretaram o texto. A Torá oral é a tradição da Congregação de Israel, ela desempenha o papel necessário de completar a Torá escrita e torná-la mais concreta. De acordo com a tradição rabínica, Moisés recebeu, ao mesmo tempo, ambas as Torás, no monte Sinai, e tudo quanto um erudito subsequente encontra na Torá ou legitimamente dela deduz, já estava incluído nesta tradição oral fornecida a Moisés. Assim, no judaísmo rabínico, as duas Torás são uma só. A tradição oral e a palavra escrita completam-se mutuamente, uma não é possível sem a outra” (G. G. Scholem, A Cabala e seu Simbolismo, Perspectiva, São Paulo, 1978, p.61).

A autoridade extraordinária alcançada pelos escribas e doutores da Lei diante do povo ganhou-lhes um título de respeito. A forma costumeira com que o povo começou a chamá-los foi a de “meu senhor”, isto é, Rab, que em grego se disse Rabbi. Com o tempo, esse termo passou a ser um verdadeiro título, como se verifica nos textos evangélicos. Porém, antes dos tempos evangélicos, não se tinha estabelecido ainda o costume de chamar os grandes mestres de Rabi. Assim, por exemplo, jamais se usou chamar chefes de escola, tais como Hilel ou Shammai, de Rabi (cfr. Emil Schürer, The History of the Jewish people in the age of Jesus Christ (175B.C.-135A.D.), T.&T. Clark, Edinburgh, 1979, vol. II, 325-326-327).

A tradição hebraica costuma enumerar os grandes mestres, chefes de escola, aos pares, sendo um de uma tendência mais rigorista, e o outro, de uma corrente menos exigente. Entre Esdras e Cristo, essa tradição cita apenas dez mestres, que teriam sido: Yosef ben Ioezer e Yosef ben Iochanan; Yoshua ben Parachiah e Mattai de Arbela; Iehuda ben Tabai e Simeon ben Satach; Shammai e Hilel. A estes mestres não era ainda costume atribuir o título de Rabbi.

Os estudiosos da Lei – os escribas e doutores da Lei – atribuíam-se uma tríplice missão:

1a – Definir e aperfeiçoar os princípios legais decorrentes da Torah, a Lei Escrita.

A lei mosaica, como toda lei escrita, requeria, em muitos casos, uma interpretação, para ser aplicada com mais justiça. Os escribas e doutores da Lei examinavam os casos concretos e aplicavam as determinações da Torah procurando harmonizá-las aos costumes, à realidade concreta de cada caso, e à jurisprudência que, aos poucos, se formou. Disto tudo nasceu um intrincado sistema legal casuístico, que, a princípio, foi transmitido apenas oralmente, e que, por seu crescimento cada vez maior, exigiu, afinal, ser redigido.

2a – A segunda missão que os escribas se arrogavam era a de ensinar não apenas a Lei escrita, mas também, e principalmente a jurisprudência casuística que eles haviam elaborado e que tomou o nome de Torah Oral ou “Tradição dos Antigos”, ou dos “Sábios”.

Enquanto a Lei Oral não foi codificada e redigida, o método utilizado pelos escribas para transmiti-la foi a memorização e a repetição. Repetir e ensinar são palavras equivalentes na linguagem rabínica. Os discípulos dos mestres (Rabis) tinham a obrigação de decorar a Torah Oral, assim como as soluções legais adotadas pelos Antigos, sem nada alterar do que fora recebido. O discípulo, por isso, era obrigado a expressar-se usando sempre as mesmas palavras de seu mestre. Desse ensino mnemônico e repetitivo é que proveio a palavra Mishnah, que significa repetição. Os mandamentos dessa Tradição Oral dos antigos eram chamados os Mishnaioth.

3a – A terceira missão que os escribas e doutores da Lei se impuseram e assumiram foi a administração da justiça pela aplicação escrupulosíssima dos Mishnaioth.

Cada mestre dava uma interpretação da Lei. As várias interpretações eram cotejadas, preponderando a interpretação da maioria ou a dos mestres de maior autoridade. O esforço mnemônico foi se tornando imenso e, por fim, impraticável. Cada mestre ou doutor começou a fazer anotações que, afinal, tiveram que ser codificadas. Foi a codificação da tradição legalista dos vários escribas, doutores da Lei, isto é, dos grandes Rabinos que se chamou de Mishnah. O sentido literal da palavra Mishnah é doutrina ou tradição, segundo explica A. Merk S. J. (Cfr. A. Merk, op. cit. vol I, p.89).

2 – Saduceus e Fariseus

A invasão grega, no século IV a.C., trouxe novas complicações ao processo religioso que os judeus atravessavam. A dominação grega, graças à força e ao prestígio de sua cultura e de sua filosofia, pouco a pouco, influenciou largas e importantes camadas do povo judeu. Os vencidos tendem, apesar do ódio, a admirar os vencedores. Entre os judeus começou-se a adotar a língua, os modos de ser e os costumes dos gregos, mesmo quando alguns desses costumes eram contrários à Lei Mosaica. Diante do invasor cheio de prestígio, os judeus se dividiram. Formaram-se partidos. O partido dos saduceus mostrou-se aberto às influências estrangeiras, procurando conciliar judaísmo e helenismo, teologia hebraica e filosofia grega. Esse partido teve forte penetração entre os sacerdotes. O partido fariseu, pelo contrário, opôs tenaz resistência aos costumes e ao pensamento grego, entrincheirando-se na observância zelosa e rigorista da letra da Lei escrita e oral. A grande maioria dos escribas e doutores da Lei aderiu ao farisaísmo e obteve o apoio quase total do povo judeu, graças ao prestígio moral e religioso que alcançaram.

As principais diferenças doutrinárias entre saduceus e fariseus foram:

1ª. A questão da Ressureição:

Os fariseus admitiam a imortalidade da alma, a existência de uma recompensa e de um castigo após a morte, assim como a ressureição dos corpos, depois de um juízo universal.

Os saduceus, pelo contrário, negavam a ressureição e a existência de uma vida eterna após a morte, afirmando que a alma perecia junto com o corpo. Nos Atos dos Apóstolos (23,6) se lê que São Paulo se aproveitou dessa divergência entre saduceus e fariseus para dividir o Sinédrio que ia julgá-lo.

2ª. Os anjos:

Enquanto os fariseus acreditavam na existência dos anjos, os saduceus a negavam.

3ª. A questão do destino, (predestinação e livre-arbítrio).

Os saduceus tendiam a dar mais importância ao livre-arbítrio do que à ação de Deus, através da graça, nas ações humanas. Os fariseus, em contraposição, davam tal importância à ação da providência divina, na decisão dos atos humanos, que alguns autores os acusam de defender a ideia do destino, isto é, que as ações humanas não são livres, dependendo unicamente do querer de Deus, sem cooperação do livre-arbítrio humano.

4ª. A “Tradição dos Antigos”

Os fariseus se distanciavam dos saduceus também na valorização da chamada “Tradição dos Antigos”. Eles faziam a Lei Oral suplantar em valor e respeito até a própria Lei de Deus, codificada por Moisés. Diziam eles que a Torah Oral era o mais correto e perfeito desenvolvimento e expressão da Torah escrita. Os saduceus, de seu lado, não aceitavam as tradições farisaicas que não tivessem claro e certo apoio no texto da Escritura. Como testemunha Flávio Josefo, “os fariseus impuseram ao povo muitas leis provenientes da tradição dos Antigos, que não estavam escritas na Lei de Moisés” (Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, XIII, 10, 6 ).

5ª. Posicionamento político

O partido saduceu era principalmente sacerdotal e aristocrático, enquanto os fariseus recrutavam seus membros nas classes populares. Os saduceus sempre mantiveram um posicionamento político-religioso, enquanto os fariseus sempre foram muito mais religiosos do que políticos. É absolutamente certo que os fariseus dominaram doutrinariamente as escolas rabínicas e eram eles que determinaram as principais opções religiosas do povo judeu.

***

A redação da Mishnah foi realizada pelos mestres chamados Tannim ou Tanaítas, termo que deriva da palavra hebraica que significa ensinar ou transmitir (uma tradição). Os Tanaítas viveram entre o século I e o III depois de Cristo. A primeira tentativa de codificação da casuística rabínica é atribuída a Rabi Akiva (50-130), e uma segunda, a Rabi Meir (entre 130 e 160 d.C.).

A compilação definitiva da Mishnah se deve ao famoso Rabi Yehudah Ha-Kadosh (o santo), intitulado também de Yehudah, o Príncipe, ou o Patriarca, no século II d.C., já que esse rabino viveu entre 135 e 220 d.C. Ele foi sucessor de Gamaliel II, na liderança de uma das escolas rabínicas. Evidentemente, a Mishnah de Rabi Yehudah reflete sua doutrina. Diz-se que ele tendia mais para o racionalismo do que para o misticismo. Daí ter ele eliminado da sua codificação as interpretações místicas da Lei que, vieram a formar a Baraita (material externo ou excluído) e a Tossefta (suplemento ou adição). Atribui-se a Tossefta a Hiia bar Abba, amigo e discípulo de Rabi Yehudah. Deve-se distinguir a Tossefta dos Tosaphot, explicações acrescentadas ao Talmud de Babilônia pelos doutores judeus dos séculos XII e XIII de nossa era.

A Mishnah apresenta a substância da Torah Oral e se divide em seis partes, os Sedarim, as quais, por sua vez dividem-se em tratados.

As seis partes da Mishnah são:

A – Zeraim (Sementes): versa sobre questões agrícolas, colheitas, partes atribuídas aos sacerdotes etc.

B – Moed (Festas).

C – Nashim (Mulheres).

D – Nezikim (Prejuízos, danos): trata do direito de propriedade, indenizações, processos legais para reparações.

E – Kodashim (Ofertas de sacrifícios).

F – Tohoroth (purificações): versa sobre as complicadas leis de purificação.

A Mishnah pretendia ter a mesma fundamentação que a Torah de Moisés e, como já mencionamos, uma força para obrigar ainda maior do que a da Lei revelada. Não se admitia que pudesse haver contradição entre a Torah e a Mishnah, embora esta última não precisasse ter apoio em um texto determinado da Escritura.

As leis da Tradição dos Antigos contidas na Mishnah são chamadas de Halakhoth, termo que significa via, caminho, norma que deve ser seguida porque é um costume deduzido da Escritura por um doutor ou pelo consenso dos Doutores ou Antigos Sábios.

Pode-se distinguir:

a) Os Halakhoth atribuídos a Moisés.

b) Os Hallakhoth propriamente ditos, conjunto das lei tradicionais elaboradas pelos escribas e doutores da Lei

c) as ordenações dos escribas

Enquanto os Halakhoth visam expor ou definir uma lei tradicional, a chamada Haggadah, termo que significa narração, é constituída por comentários expondo e interpretando a Escritura, tendo em vista a edificação da alma do judeu. Tais comentários não são muito encontrados na Mishnah, aparecendo em geral no final de alguns tratados. A Haggadah analisa o texto da Escritura, fazendo relações com outros passos, interpretando-os de modo alegórico, mais do que buscando o sentido literal e primeiro do texto.

Sendo a Hallakhah uma codificação da lei costumeira e da jurisprudência rabínica, dado também seu caráter tradicional, consideravam os fariseus que ela jamais poderia ser definitivamente concluída, pois sempre se agregariam novas regras. Por outro lado, eles afirmavam ainda que a Hallakhah era imutável, daí sua preocupação em guardá-la, primeiro de memória, e depois codificá-la. É evidente que a codificação feita pelos Rabinos se fundamentava numa doutrina que só pode ter sido a dos fariseus.

Ora, é certo que, quando a Toral Oral começou a se formar nas sinagogas, em tempos anteriores ao nascimento de Cristo, já existia entre os escribas (Sofer) e os doutores da Lei uma doutrina secreta. Prova disto é que na Mishnah se lê:

“Os graus proibidos [Cfr Lv 18,6-18; graus de parentesco que eram impedimentos para o casamento, e que tornavam a relação sexual incestuosa] não podem ser expostos diante de três pessoas, nem a história da criação diante de duas pessoas, nem a Merkabah [visão do carro de Deus em Ez, 1,4ss] diante de uma só pessoa, a não ser que ela seja um Sábio que compreende com seu próprio entendimento” (Mishnah, Hagigah, II, 1).

Gershom Scholem, o grande especialista na Kabbalah afirma:

“Sabemos que já no período do segundo Templo, uma doutrina esotérica era ensinada em círculos farisaicos. O primeiro capítulo do Gênesis, a história da Criação (Maassei Bereshit) e o primeiro capítulo de Ezequiel, a visão do trono-carruagem de Deus (Maassei Merkabah), eram os temas favoritos de uma discussão e interpretação que aparentemente não convinha tornar pública” (G. G. Scholem, A Mística Judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 41-42).

E esse mesmo autor, de autoridade indiscutida, considera que a mística da Merkabah – que vai ser uma das raízes da Kabbalah medieval – já tinha nascido nos tempos de Rabi Akiva (Séc. I e II d.C.) e que essa mística era, sem dúvida, gnóstica.

“The logical conclusion seems to be, given the historical circumstances, that, initially, Jewish esoteric tradition absorbed Hellenistic elements similar to those we actually find in Hermetic writings. Such elements entered Jewish tradition before Christianity developed, or at any rate before Christian Gnosticism as a distinctive force came into being. Later, when Judaism and Christianity finally parted ways, these elements, whose development, once borrowed, had been within and in the manner of a distinctly Jewish esoterism, were taken over into Christianity and into early Gnostic circles, rather than the reverse” (G. Scholem, Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition, The Jewish Theological Seminary of America, New York, 5725-1965, p. 34).

Foram exatamente as doutrinas sobre o Bereschit e sobre a Merkabah que deram origem às teses gnósticas fundamentais da Kabbalah medieval. É claro que, nos tempos rabínicos, essas doutrinas ainda não tinham adquirido o desenvolvimento que depois apresentaram. Porém, desde a sua introdução nas escolas da velha Sinagoga, elas continham já, certamente, os princípios fundamentais que desabrochariam posteriormente, provavelmente já nos tempos de Cristo, em gnose elaborada. É o que conclui também A. E. Waite ao escrever: “O ponto de partida (para a formação da Kabbalah) tem sido colocado por um criticismo moderado, antes do nascimento de Cristo” (A. E. Waite, The Holy Kabbalah, University Books, Secaucus, New Jersey, 1975, p. 26).

Por tudo isso, fica bem claro o porquê de o profeta Jeremias ter asseverado contra os escribas:

“Como dizeis: ‘Somos sábios e a Lei do Senhor está conosco’? Verdadeiramente, o ponteiro mentiroso dos escribas gravou a mentira” (Je 8,8).

3 – O Talmud

Codificada a Mishnah, ela se tornou, por volta dos III e IV séculos d.C., o livro fundamental, em matéria legal, para todos os judeus. Eles a ensinavam e discutiam em suas escolas. É claro que novos materiais casuísticos foram aos poucos sendo acrescentados à Mishnah, dando afinal origem ao Talmud.

Essencialmente o Talmud (ensinar por meio de uma discussão) é um comentário da Mishnah, e, por isto, ele segue a mesma sequência de seções e tratados que a Mishnah. No Talmud, o texto da Mishnah é seguido e comentado passagem por passagem. O Talmud inclui as opiniões dos Amoraim – termo que significa porta-vozes – mestres do período pós-mishnaico (séculos III-IV d.C.). Pode-se encontrar ainda, no Talmud, ensinamentos citados em hebreu e aramaico, que provém do período mishnaico, mas que não foram conservados na Mishnah; os baraytoth.

As discussões dos mestres amoraitas registradas no Talmud formam a Gemara, isto é, coisas a ensinar, ou complemento. Além do comentário das Hallakoth ou leis tradicionais registradas na Mishnah, o Talmud contém ainda interpretações de textos da Escritura, em forma haggádica.

Há dois Talmuds: o de Jerusalém e o de Babilônia. O Talmud Ierusalmi ou Talmud da terra de Israel é o menor dos dois, e nele faltam os comentários de algumas partes da Mishnah. Ele foi concluído antes do ano 400 d.C.

A Mishnah teria sido levada para Babilônia por Abba Areka, conhecido como Rab, um discípulo de Rabi Iehudah, o Príncipe, o codificador da Mishnah. O Talmud Babli – Tamud babilônico – é mais completo, mais considerado e muito mais extenso que o Talmud de Jerusalém. Ele foi escrito no dialeto aramaico de Babilônia, e concluído no século VI. Ele contém uma porcentagem bem maior de textos haggádicos do que o Talmud de Jerusalém.

No Talmud, ainda mais do que na Mishnah, é possível encontrar traços de esoterismo gnóstico e uma doutrina antinomista. É o que assevera Gerschom Scholem em muitos textos de suas obras.

“The Talmud speaks of sitrei torah and razei torah (‘secrets of the Torah’), and parts of the secret tradition are called ma’aseh bereshit (literally, ‘the work of the creation’) and ma’aseh merkabah (‘the work of the charriot’).” (G. G. Scholem, Kabbalah, Ketter, Jerusalém, 1974. p. 6).

“The future abolition of the commandments mentioned in the Talmud (Nid. 61 b) was taken by the kabbalists to refer to the complete spiritualization of the commandments that would take place under the dominion of the Tree of Life”. (G. G. Scholem, Kabbalah, Ketter, Jerusalém, 1974, pp. 166-1670).

“Both Mishnah and Talmud (Hag. 2:1 and the correspondent Gemara in both Babylonian and Jerusalem Talmud) show that, in the first century of the common era, esoteric traditions existed within these areas, and severe limitations were placed on public discussion of such subjects: ‘The history of creation should not be expounded before two persons, nor the chapter on the Charriot before one person, unless he is a sage and already has an independent understanding of the matter’ [Talmud, Haggigah 2,1]. Evidence concerning the involvement of Johanan b. Zakkai and his disciples in this sort of exposition proves that this esoterism could grow in the very center of a developing rabbinic Judaism, and that consequently this Judaism had a particular esoteric aspect from its very beginning. On the other hand, it is possible that the rise of Gnostic speculations, which were not accepted by the rabbis, made many of them tread very warily and adopt a polemical attitude. Such an attitude is expressed in the continuation of the Mishnah quoted above: ‘Whoever ponders on four things, it were better for him if he had not come into the world: what is above, what is below, what was before time, and what will be hereafter’. Here we have a prohibition against the very speculations which are characteristic of Gnosticism as it is defined in the ‘Excerpts from the writings of [the Gnostic] Theodotus’ (Extraits de Théodote, ed. F. Sagnard (1948), para. 78). In actual fact, this prohibition was largely ignored, as far as can be judged from many statements of tannaim and amoraim dealing with these matters which scattered throughout the Talmud and the Midraschim.” (G. Scholem, Kabbalah, ed. cit. p. 12).

Um tema essencialmente gnóstico é o da redenção de Deus. Conforme a gnose, a divindade teria decaído e ficado aprisionada no exílio do mundo material do qual precisaria ser salva. Ora, esse tema aparece no Talmud, segundo afirma Scholem: “The Zohar too takes the position that the crux of the redemption works itself out in the uninterrupted conjunction of Tiferet and Malkult, and the redemption of Israel is one with the redemption of God Himself from His mystic exile. The source of this belief is talmudic and can be found in both the Palestinian Talmud, Sukkah 4,3, and in the Midrash lev.R.9,3: ‘The salvation of the Holy One, blessed be He, is the salvation of Israel'” (G. G. Scholem, Kabbalah, ed. cit. p. 166).

“In Pharisaic and tannaitic circles, Merkabah mysticism became an esoteric tradition of which different fragments were scattered in the Talmud and the Midrash, interpreting Haggigah 2,1” (G. G. Scholem, Kabbalah, ed. cit. p. 373).

Ora, Scholem demonstrou, em várias de suas obras, que o misticismo da Merkabah era gnóstico (cfr. G. Scholem, Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism, and Talmudic Tradition, The Jewish Theological Seminary of America, New York, 5725 – 1965).

Não há pois qualquer dúvida que, desde os tempos do retorno do exílio de Babilônia, especialmente após a invasão grega da Palestina, difundiram-se entre os escribas, doutores da Lei e Rabinos ideias gnósticas que constituíram a origem do misticismo gerador, mais tarde, da Kabbalah medieval.

É importante salientar também ser tese, embora discutida por alguns, mas aceita entre os estudiosos da questão, que essas ideias gnósticas e esotéricas, já existiam, entre os rabinos fariseus, nos tempos de Cristo e que elas influenciaram as seitas gnósticas cristãs dos dois primeiros séculos de nossa era.

“To what extent the growth of Gnostic tendencies within Judaism itself preceded their development in early Christianity is still the subject of lively scholarly controversy. Peterson, Haenchen and Quispel, in particular, along with several experts on the Dead Sea Scrolls, have tried to prove that Jewish forms of Gnosis, which retained a belief in the unity of God and rejected any dualistic notions, came into being before the formation of Christianity and were centered particularly around the idea of primordial man (following speculation on Gn 1,26; ‘Adam Kadmon’)”. (G. Scholem, Kabbalah, ed. cit. p. 21).

“In an age of spiritual awakening and deep religious turmoil there arose in Judaism a number of sects with heterodox ideas resulting from a mixture of inner compulsion and outside influence. Wether Gnostic sects existed on the periphery of Judaism before the advent of Christianity is a matter of controversy: but there is no doubt that minim (“heretics”) did exist in the tannaitic period and specially in the third and fourth centuries. In this period a Jewish Gnostic sect with definite antinomian tendencies was active in Sepphoris. [Conforme A. Merk, Séforis foi uma das cidades em que nasceu o Talmud palestinense. (cfr. A. Merk S.J., op. cit., vol I, p.92]. There were also of course intermediate groups from which members of these sects gained an extended knowledge of theological material on ma’aseh bereshit and ma’aseh merkabah, and among these should be included the Ophites (snake worshipers) who were basicaly Jewish rather than Christian. From this source a considerable number of esoteric traditions were transmited to Gnostics outside Judaism, whose books, many of which have been discovered in our time, are full of such material – found not only in Greek and Coptic texts of the second and third centuries but also in the early stracta of Mandaic literature, which is written in colloquial Aramaic. Notwithstanding all the deep differences in theological approach, the growth of Merkabah mysticism among the rabbis constitutes an inner Jewih concomitant to Gnosis, and it may be termed “Jewish and rabbinic Gnosticism”. (G. G. Scholem, Kabbalah, ed. cit. p. 12).

Quanto à influência dos judeus no desenvolvimento das seitas gnósticas cristãs, diz ainda Scholem: “In the second century Jewish converts to Christianity apparently conveyed different aspects of Merkabah mysticism to Christian Gnostics. In the Gnostic literature there were many corruptions of such elements, yet the Jewish character of this material is still evident, especially among the Ophites, in the school of Valentinus, and in several of the Gnostic and Coptic texts discovered within the last 50 years.” (G. G. Scholem, Kabbalah, ed. cit., p. 376).

Já entre os primeiros hereges cristãos, todos de caráter gnóstico, tais como Simão Mago, os ebionitas e Mandeanos, os especialistas apontam elementos de origem judaica. “These scholars [Peterson, Haenchen e Quispel] have interpreted several of the earliest documents of Gnostic literature as Gnostic Midrashim on cosmogony and Haenchen in particular has argued that their basic Jewish character is clearly recognizable in an analysis of the teaching of Simon Magus, apparently the leader of Samaritan Gnosis, a first-century heterodox Judaism. Even before this, M. Friedlander had surmised that antinomian Gnostic tendencies (which belittled the value of the Commandments) had also developed within Judaism before the rise of Christianity. Although a fair number of these ideas are based on questionable hypotheses, nevertheless there is a considerable measure of truth in them ” (G. G. Scholem, Kabbalah, ed. cit., p. 21-22).

Vimos então que, no período do segundo Templo, surgiu e desenvolveu-se entre os escribas, doutores da Lei e fariseus, um sistema de pensamento esotérico e gnóstico. Mais tarde, essas ideias da gnose judaica influenciaram as seitas gnósticas cristãs. Cabe então perguntar se, entre os judeus contemporâneos de Cristo, não havia gnósticos, e se Cristo não os combateu. Se os combateu, que traços dessa luta podemos encontrar nos textos dos Evangelhos?

4 – Traços de polêmica antignóstica nos Evangelhos

Um dos pontos álgidos da luta entre gnose e Cristianismo é a divergência absoluta quanto ao modo de considerar a matéria. Enquanto o Cristianismo considera toda a criação como boa, visto que Deus só pode fazer o bem, a gnose afirma que a matéria é má, e que a criação foi obra de um deus malévolo.

A Igreja Católica se funda não só em argumentos metafísicos, que fazem o ser se identificar com o bem, como também em textos escriturísticos. Com efeito, no Gênesis se lê que, ao criar cada coisa Deus dizia que ela era boa, e, ao final da obra criadora, “Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas” (Gn 1,31).

Essa recusa de aceitar a matéria como criatura boa de Deus bom obriga os gnósticos a recusarem a Encarnação do Verbo de Deus. No Novo Testamento, esta é a verdade que mais se opõe a gnose. Com efeito, na Pessoa de Cristo, há duas naturezas: a divina e a humana. “O Verbo de Deus se fez carne” (Jo 1,14). Em Cristo se dá a harmonia das coisas divinas e humanas, se encontram o céu e a terra, o Espírito de Deus e matéria. Na Encarnação do Verbo no seio virginal de Maria Santíssima, são condenados, quer o Panteísmo, quer a gnose. O Panteísmo materialista é condenado pois o dogma da Encarnação afirma a existência do Verbo. A gnose, por sua vez, é condenada pela assunção da natureza humana por Deus. Por isso se diz que Maria esmagou toda heresia. Será contra o dogma da Encarnação que se lançarão todos os ódios de todas as heresias, especialmente das seitas gnósticas dos primeiros séculos do Cristianismo.

Por outro lado, foi a coexistência da natureza divina e humana em Cristo que levou os judeus a repelirem o Messias. Quando Caifás perguntou, com a autoridade de Sumo Pontífice, e em nome de Deus, se Cristo era o Filho de Deus vivo, e Nosso Senhor confirmou que sim, Caifás rasgou hipocritamente suas vestes, acusando Cristo de ter blasfemado. A Encarnação do Verbo foi o ponto que o judaísmo recusou aceitar e que, por isso, procurou sempre combater insuflando a formação de seitas que negavam essa verdade fundamental.

Por que Israel resistiu tanto contra essa verdade? Por que recusava Cristo, Deus-Homem, quando era patente que só Deus podia fazer o que ele fazia?

Nicodemos, “um dos principais entre os judeus” e “homem da seita dos fariseus” (Jo 3,1), quando foi ver Jesus à noite, escondido, por medo dos seus companheiros de seita e do Sinédrio, disse a Jesus: “Mestre, sabemos que foste enviado por Deus para ensinar; porque ninguém pode fazer estes milagres que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo 3,2). Note-se que Nicodemos fala na primeira pessoa do plural: “sabemos”. Quem é o nós desse “sabemos”? Só pode ser o “nós” que designa o Sinédrio judaico. Os príncipes de Israel sabiam que Deus estava com Cristo. Foi, aliás, o que reconheceram os Pontífices e fariseus do Sinédrio, quando Cristo ressuscitou Lázaro: “Que havemos de fazer? Este homem faz muitos milagres” (Jo 11,47).

Por que Israel resistiu com tanta pertinácia à evidência da Encarnação? Por que não aceitaram a prova escriturística dada por Cristo a eles, quando lhes mostrou que o próprio Davi, num salmo, o havia chamado de Senhor, isto é, de Deus: “Disse o Senhor a meu Senhor” (Mt 22,44)?

Ora, é bem conhecido que a Kabbalah – a gnose judaica medieval – interpretou o primeiro versículo do Gênesis de modo surpreendente. Esse primeiro versículo diz: “No princípio criou Deus os céus e a terra”, em hebraico: “Bereschit bara Elohim etc.”. Para a Kabbalah, o sujeito dessa primeira frase da Escritura não é Elohim e sim Bereschit, o Princípio. Para a Kabbalah medieval, a palavra Bereschit designaria a divindade superior a Elohim, o Nada absoluto, o Deus Absconditus, do qual emanara Elohim, este sim, o demiurgo rigoroso e mau, criador dos céus e da terra perecíveis. Assim, a Kabbalah medieval – como autêntica gnose – distinguia uma divindade superior e verdadeira divindade oculta, de Elohim, o criador do mundo material.

As seguintes citações comprovam o que dissemos:

“…o Zohar, e de fato a maioria dos cabalistas mais antigos, questionavam o significado do primeiro verso da Torá: Bereschit bara Elohim, ‘No princípio criou Deus’; o que na realidade isto significa? A resposta é bem surpreendente. É-nos dito que significa Bereschit – por meio do ‘princípio’, isto é, dessa existência primordial que foi definida como a sabedoria de Deus, – bara, criou, isto é, o Nada oculto que constitui o sujeito gramatical da palavra bara, emanou ou desdobrou-se, – Elohim , isto é, sua emanação é Elohim. É o objeto e não o sujeito da sentença. E o que é Elohim? (…) Elohim é o nome dado a Deus depois de ocorrida a disjunção do sujeito e do objeto, mas no qual este abismo é continuamente transposto ou fechado. O Nada místico que se encontra antes da divisão da ideia primária no Conhecedor e no Conhecido, não é considerado pelo cabalista como um verdadeiro sujeito” (G. Scholem, A Mística Judaica, p. 223).

No Zohar pode-se ler: “…se o mundo tivesse sido obra da essência divina chamada Jehováh, tudo nesse mundo teria sido indestrutível; mas como o mundo é obra da essência divina chamada Elohim, tudo está sujeito à destruição; e é porque a Escritura diz: ‘Vinde e vede as obras de Elohim que estão sujeitas à destruição (schamoth) sobre a terra’ (…) ‘Rabbi Issac disse: (…) se o mundo tivesse sido criado pelo nome de misericórdia, isto é, pelo nome de Jehovah, todo o mundo teria permanecido indestrutível; mas como o mundo foi criado pelo nome do rigor, isto é, pelo nome de Elohim , tudo é perecível nesse mundo'” (Zohar, I,58, b ).

É certo que essa doutrina estranha e cheia de contradições só foi plenamente elaborada na Idade Média. Mas, se já no período do segundo Templo, quando uma “uma doutrina esotérica era ensinada em ‘círculos farisaicos’, conforme diz Scholem, e quando já o Maassei Bereshit e a Maassei Merkabah” eram temas favoritos de uma discussão e interpretação que aparentemente não convinha tornar pública” (G. G. Scholem, A Mística Judaica, p. 41-42), pode-se perguntar, se, nos tempos da elaboração da Mishnah – portanto, antes de Cristo – já existia essa doutrina esotérica do Bereschit, interpretado como o Nada primordial, Deus absconditus, do qual teria se originado Elohim, o criador do mundo perecível .

Alguns indícios de que a resposta a essa pergunta deve ser afirmativa se acham nos Evangelhos especialmente no de São João.

Um indício muito importante nós o temos no próprio prólogo do Evangelho de São João que começa exatamente afirmando: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e nada do que era feito foi feito sem ele” (Jo 1,1-3).

Caso se aceite a afirmação de Scholem de que já no período do Segundo Templo corria entre os fariseus uma doutrina esotérica sobre o Bereschit, então o paralelismo feito pelo primeiro versículo do Evangelho de São João ao primeiro versículo do Gênesis pode ser visto como uma resposta às doutrinas esotéricas dos fariseus a respeito do Bereschit. Daí se deveria concluir que o Evangelho de São João quis combater expressamente as doutrinas gnósticas já existentes entre os judeus, no tempo de Cristo.

Nesse sentido, ganha grande luz a passagem em que Cristo, discutindo com os fariseus que lhe perguntam quem Ele é, responder:

“Se não crerdes quem eu sou, morrereis no vosso pecado.” Disseram-lhe, pois, eles: “Quem és tu?” Jesus disse-lhes: “o princípio, eu que vos falo” (Jo 8,24-25).

Nesse texto, Cristo se afirma o Princípio, o Bereschit. E nota São João que então “muitos creram nele” (Jo 8,30).

Portanto, dessas duas passagens do Evangelho de São João se pode – pelo menos – aventar a hipótese de que a doutrina gnóstica a respeito do Bereschit já existia entre os fariseus combatidos por Cristo.

Não se julgue – erroneamente – que a tese de que nos próprios Evangelhos podem ser encontrados traços de uma polêmica antignóstica seja inaudita. Em vários autores antigos e modernos ela pode ser encontrada. Ela já foi afirmada pelos primeiros Padres da Igreja:

“Anunciando esta fé [na divindade de Cristo], João, o discípulo do Senhor, pelo anúncio do evangelho, quis arrancar o erro que fora semeado entre os homens por Cerinto, e muito antes por aqueles que são chamados de Nicolaítas, e que são um ramo deles, erro que falsamente chamam de ciência, para confundi-los e persuadi-los que o Deus único que tudo fez por meio de seu Verbo, e não do modo como eles dizem um ser o fabricador e outro ser o Pai do Senhor (…) Querendo, portanto, o discípulo do Senhor circunscrever todas estas coisas e constituir a regra da verdade na Igreja, porque há um só Deus onipotente, que por meio de seu Verbo fez todas as coisas, as visíveis e as invisíveis, significando também, porque pelo Verbo, pelo qual Deus fez a criação, neste também propiciou a salvação para os homens aqueles que estão na criação… (Santo Irineu, Contra Haereses, III, 11, 1).

O mesmo Santo Irineu, que morreu em 202, e que foi discípulo de São Policarpo, o qual o foi de São João, escreveu em sua obra Contra Haereses a respeito dos Ebionitas:

“Aqueles que se denominam Ebionitas consentem, na verdade, que o mundo foi feito por Deus (…) utilizam somente o que está no evangelho de São Mateus e recusam o Apóstolo Paulo dizendo que ele foi apóstata da Lei. Esforçam-se por expor mais cuidadosamente as coisas proféticas, e perseveram em seus costumes que são de acordo com a Lei e levam uma vida de caráter judaico, de modo que veneram Jerusalém como se fosse casa de Deus” (Santo Irineu, Contra Haereses, I, XXVI, 2; Migne, P. G. Vol., VII, col. 686-687).

Vê-se por esses testemunhos de Santo Irineu – repetidos por Santo Hipólito (cfr. Philosophumena, VI,34) – que os hereges Ebionitas eram tidos, pelos primeiros cristãos, como judaizantes. Ora, esses Ebionitas, assim como o gnóstico Cerinto, da mesma forma que os judeus, negavam a divindade de Cristo e afirmavam que o Criador de todas as coisas era o deus do mal.

“E também, na Ásia, Cerinto ensinou que o mundo não foi feito pelo primeiro Deus, mas por por uma certa Virtude (ou força) separada e distante daquela Principalidade [o Bereschit distinto do Elohim dos judeus?] que está sobre todas as coisas e ignorando aquele Deus que está sobre todas as coisas. Colocavam, pois, Jesus abaixo [dessa Divindade Primeira] e afirmavam que Ele não nascera de uma Virgem [diziam que, na opinião deles, isto era impossível], mas que fora filho de José e de Maria de modo semelhante a todos os restantes homens, e que fora mais poderoso que os demais homens pela justiça, prudência e sabedoria. E que, após o batismo, desceu sobre ele, enviada por aquela Divindade que está sobre todas as coisas, o Cristo em figura de pomba, e então anunciou o Pai incognoscido, e praticou as virtudes perfeitamente. E que, afinal, partiu de novo o Cristo de Jesus, e Jesus padeceu e ressuscitou. O Cristo, porém, continuou impassível e existente espiritualmente”. (Santo Irineu, Contra Haereses, I, XXVI, 1, Migne, P. G. vol. VII, col. 686).

Outra prova de que São João escreveu o seu Evangelho também para atacar os hereges se acha no próprio texto do Evangelho: “Estas coisas foram escritas para que creiais, porque Jesus é o Cristo Filho de Deus: e, para que crendo, tenhais a vida eterna em nome dele” (Jo 20,31).

Também na sua primeira Epístola São João alude aos hereges que recusam a Encarnação do Verbo: “Nisto se conhece o espírito de Deus: todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo o espírito que divide Jesus não é de Deus; mas ele é um Anticristo, do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo” (1Jo 4,2-3).

Vê-se claramente que, “por essas afirmações, esclarece o Apóstolo [João] querer lutar contra os hereges que saíram da Igreja e ensinavam [que havia] uma separação entre Jesus e Cristo, isto é, o Filho de Deus. Portanto, pelo Evangelho de São João e por sua Epístola se conhece que esse Evangelho foi escrito para prevenir os fiéis contra os falsos doutores”. (Augustin Merk, S.J., Introductionis in S. Scripturae Libros, Lethielleux, Paris, 1940, vol. II, p. 749).

Não há dúvida, pois, de que o Evangelho de São João foi escrito para combater os gnósticos e de que esses hereges eram influenciados pelos judeus e repetiam suas heresias.

O que perguntamos é se nas próprias palavras de Cristo é possível encontrar indícios de que Nosso Senhor atacava o esoterismo e a gnose já existente entre os fariseus daquele tempo.

5 – Uma Contradição nos Evangelhos?

No evangelho de São Mateus, Cristo aprova o que os fariseus ensinavam e ordena ao povo que o ouvia e a seus discípulos que fizessem o que os fariseus diziam desde o alto da cadeira de Moisés.

“Então falou Jesus às turbas e aos seus discípulos, dizendo: Sobre a cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus. Observai, pois, e fazei tudo o que eles vos disserem, mas não imiteis as suas ações, porque dizem e não fazem” (Mt 23,1-3).

Entretanto, se nessa passagem Cristo aprova o que os fariseus diziam, noutra ocasião, porém, Ele previne os Apóstolos para que se guardem da doutrina dos mesmos fariseus:

“Abri os olhos, e guardai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus (…) porque não compreendeis que não foi a respeito do pão que eu vos disse: ‘guardai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus’? Então compreenderam que não havia dito que se guardassem do fermento dos pães, mas da doutrina dos fariseus e dos saduceus” (Mt 16,6-12).

Os textos são claros. No primeiro, Cristo ordena que se aceite o que os fariseus diziam. No outro, previne contra a doutrina dos fariseus e saduceus.

Como pode Cristo aprovar o que os fariseus diziam e, depois, prevenir contra a sua doutrina? Não há nisso uma contradição?

Em Cristo – Sabedoria de Deus encarnada – não pode haver qualquer contradição. Portanto, a contradição só pode existir entre o que os fariseus diziam e sua doutrina. O que eles diziam e ensinavam publicamente era correto. O que eles acreditavam era condenável.

Ora, se os fariseus não diziam de público o que eles acreditavam, conclui-se, pelo texto do Evangelho, que eles tinham uma doutrina secreta. E foi por isso que Cristo comparou a doutrina deles ao fermento, que atua secretamente na massa.

Que havia doutrinas secretas nos círculos farisaicos é comprovado pela Mishnah. Nós já vimos o que ela diz a respeito das doutrinas do “Ma’assei Bereschit” e do “Ma’assei Merkabah”. (cfr. Mishnah, Hagigah, II.1).

Foi principalmente com base neste texto da Mischnah que Gershom Scholem escreveu :

“Sabemos que já no período do Segundo Templo uma doutrina esotérica era ensinada em círculos farisaicos. O primeiro capítulo do Gênesis, a história da Criação (Ma’assei Bereschit) e o primeiro capítulo de Ezequiel, a visão do trono-carruagem de Deus (Ma’assei Merkabá) eram os temas favoritos de uma discussão e interpretação que aparentemente não convinha tornar pública. Originalmente, tais discussões restringiam-se à elucidação e exposição das respectivas passagens bíblicas” (G. G. Scholem, A Mística Judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 41-42).

O mesmo Scholem mostra, em várias de suas obras, que tanto o misticismo relacionado com o Bereschit, quanto o misticismo da Merkabah tornaram-se gnósticos.

Se nossa análise é verdadeira – e a lógica, a Mishnah, e o comentário dela por Scholem, parecem comprovar a exatidão do que dissemos – uma luz bem esclarecedora vem iluminar toda a luta que os Evangelhos registram entre Cristo e os fariseus, tornando muitos textos bem mais compreensíveis.

Não há dúvida sobre dois pontos:

1 – Cristo condena os fariseus por terem uma doutrina secreta e condena também essa doutrina.

2 – O maior especialista em estudos judaicos confirma que havia uma doutrina esotérica nos círculos farisaicos, desde o período do segundo Templo.

Pode-se então perguntar: não seria essa doutrina esotérica dos fariseus gnóstica? Tudo indica que sim, pois ela versava especialmente sobre dois pontos: o Bereschit e a Merkabah, exatamente aqueles pontos cujo desenvolvimento gerou, mais tarde, todo o sistema gnóstico judaico, isto é, a Kabbalah.

À passagem de São Mateus que trata do fermento dos fariseus corresponde, em São Lucas, um texto esclarecedor. Diz esse outro evangelista:

“Guardai-vos do fermento dos fariseus que é a hipocrisia. Porque nada há de oculto que não venha a descobrir-se, e nada há de escondido que não venha a saber-se. Por isso as coisas que dissestes nas trevas, serão ditas às claras, e o que falastes ao ouvido no gabinete será apregoado sobre os telhados” (Lc 12,13).

O texto de São Mateus tornara claro que por “fermento dos fariseus” deve-se entender a sua doutrina. Aqui, em São Lucas, lê-se que Cristo chama esse fermento ou doutrina de hipocrisia. Num primeiro sentido, por hipocrisia dos fariseus, Cristo designa sua duplicidade moral, pois eles diziam e não faziam. Cristo os acusava de ter um comportamento moral hipócrita.

Entretanto, como é à própria doutrina dos fariseus que Cristo chama de hipocrisia, pode-se perguntar se essa palavra não tinha aí um outro sentido, além do moral.

O termo grego “hipócrita” designava a máscara que os atores de teatro usavam para assumir, no palco, uma personagem fictícia. A palavra designava então aquele que tinha uma dupla personalidade. Ela foi estendida depois aos que fingem um comportamento e escondem outro. Se Cristo chama a doutrina dos fariseus de hipocrisia é porque – parece-nos possível – Ele quis indicar que essa doutrina era secreta, oculta, tal como o comportamento de um hipócrita. Os fariseus eram então hipócritas por seu comportamento, e hipócritas por sua doutrina oculta, pois ensinavam o certo, em público, e outra coisa secretamente.

Nesse sentido, então, quando Cristo acusava os fariseus de hipocrisia, Ele se referia mais à sua duplicidade doutrinária do que à sua duplicidade moral.

Essa aplicação do termo hipocrisia parece ser confirmada por outra passagem de São Mateus:

“Hipócritas, bem profetizou de vós Isaias, dizendo: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim’. É em vão que me honram, ensinando doutrinas e mandamentos dos homens”. (Mt 15,7-9).

A moral humana, ensinada publicamente pelos fariseus, era a da Mishnah, enquanto a doutrina humana, ensinada secretamente por eles, era muito provavelmente a gnose incipiente a respeito do Bereschit e da Merkabah. Tendo os fariseus uma doutrina e moral humanas, diferentes das divinas, eles tinham então uma outra religião.

Em várias passagens dos Evangelhos, Nosso Senhor Jesus Cristo acusa os fariseus e os escribas de pretenderem ter verdades ocultas, que eles ensinavam secretamente, de terem mudado a própria lei de Deus, inventando novos mandamentos humanos, esperando outrossim que, quando viesse o Messias, a Lei seria abolida, o que revela um antinomismo típico das seitas gnósticas e milenaristas.

Vimos que de fato os fariseus ensinavam certas doutrinas só a alguns, de boca a ouvido, nas trevas de um gabinete, já que a Mishnah diz que as doutrinas sobre o Bereschit e sobre a Merkabah só podiam ser ensinadas a uma ou duas pessoas por vez. É extremamente curioso então que Cristo faça referência “ao que é ensinado nas trevas” ou ao “ouvido, no gabinete”. Pelo contrário, Cristo afirma que a sua doutrina nada tem de oculto e deve ser proclamada “às claras” e “do alto dos telhados” (cfr. Mt 10,26-27). Mandou ainda: “Ide e ensinai a todos” (Mt 28,19). Na Igreja de Cristo, nada deve haver de oculto ou esotérico, nada deve ser dito nas trevas.

É interessante notar ainda que Cristo previne os Apóstolos para que não temam os fariseus. Portanto, eles os temiam. Esse temor não era restrito aos Apóstolos, pois Nicodemos foi falar com Jesus à noite, escondido, por temer os judeus.

“Todavia muitos dos príncipes creram nele, mas, por causa dos fariseus não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga” (Jo 12,42).

Também os pais do cego de nascença, que Jesus curou no Templo, em dia de sábado, temiam os fariseus, como se pode ver pelo texto de São João:

“Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego; mas, não sabemos como ele agora vê, ou quem lhe abriu os olhos, não sabemos. Perguntai-o a ele mesmo: tem idade, ele mesmo fale de si”. “Assim disseram seus pais porque tinham medo dos judeus; porque os judeus tinham combinado que, se alguém confessasse que Jesus era o Cristo, fosse expulso da sinagoga” (Jo 9,20-23).

Se os Apóstolos, os pais do cego e até os Príncipes do povo temiam os fariseus, era esse então um temor generalizado. O poder dos fariseus não provinha de nenhum órgão institucional: eles não eram sacerdotes e nem eram os mandatários do Sinédrio. O mister que eles se arrogavam era legalístico-moral mas não oficial, e eles toleravam grande liberdade em matérias doutrinárias, mas não legais. Pelos textos dos Evangelhos, se vê que os fariseus infundiam um temor maior que as autoridades judaicas instituídas. Por quê?

Parece que seu grande poder vinha de sua organização oculta, que, como vimos, chegava ao ponto de poder expulsar da Sinagoga quem não obedecesse a eles. Aliás, esse poder vai se revelar enorme por ocasião da prisão e julgamento de Cristo, quando eles usarão a coorte romana (seção da legião com 600 soldados) e até seu tribuno para prenderem Jesus: “A coorte e o tribuno e os guardas dos judeus prenderam Jesus” (Jo 18,12). E, como revelam os Atos dos Apóstolos, Saulo ia a Damasco com “cartas do príncipe dos sacerdotes” com o fito de “levar presos a Jerusalém” os que seguiam a doutrina de Cristo (cfr. At 9,1-2 e 13-14). De onde e como os judeus podiam fazer tudo isso, estando sob domínio romano?

Cristo, ao prevenir aos Apóstolos para que não temessem os judeus, disse: “Não os temais, porque nada há de encoberto que não se venha a descobrir, nem de oculto que não se venha a saber” (Mt 10,26-27).

Insinua esse texto que a causa do temor infundido pelos fariseus vinha do que eles encobriam e ocultavam. Realmente, tudo que se oculta é ameaçador e causa temor…

Como vimos, os fariseus tinham doutrinas esotéricas. Nada mais natural e coerente que uma seita com doutrinas ocultas se estruture secretamente. Era a organização secreta dos fariseus que lhes permitia dominar o Sinédrio, influenciar as autoridades romanas, assim como ter tão grande ascendência sobre o povo, a ponto de causar-lhe temor.

6 – A Abolição da Lei

Toda gnose é antinomista. Para os gnósticos, a Lei foi dada a Moisés pelo demiurgo criador. A obediência à Lei do demiurgo manteria as partículas divinas em sua prisão da matéria. A libertação dos éons divinos só se faria pela anulação da razão e da lógica, assim como pela abolição da Lei. Nesse sentido, a violação da Lei do demiurgo criador seria a melhor e mais perfeita maneira de honrar a divindade. Daí a doutrina antinomista das seitas gnósticas e sua busca voluntária e proposital de depravação. No Talmud se lê: “A subversão da Torah pode tornar-se sua verdadeira realização” cfr. Talmud, Menahot, 99, b; apud G. G. Scholem, A Mística Judaica, ed. cit. p. 319, nota 65).

“A Torá, como os sabatianistas radicais gostavam de formular, é a semente da Salvação e, assim como a semente precisa apodrecer na terra a fim de vingar e dar frutos, a Torá deve ser subvertida para aparecer em sua verdadeira glória messiânica” (G. G. Scholem, A Mística Judaica, ed. cit. p. 319).

Foi dessas ideias absurdas que nasceu a doutrina da “santidade do pecado”, de tanta difusão no final do século XV e na Reforma de Lutero, que afirmou: “Crê firmemente e peca muitas vezes”.

Traços desse antinomismo talmúdico já deviam existir entre os fariseus do tempo de Cristo, como transparece pelas acusações que Cristo fez aos escribas e fariseus, seus inimigos. Assim, já no sermão da Montanha, Cristo diz a seus discípulos e ao povo judeu que o ouvia:

“Não julgueis que vim destruir a Lei ou os profetas. Não vim para os destruir, mas sim para cumprir. Porque, em verdade vos digo que enquanto não passar o céu e a terra, não desaparecerá da lei nem um só jota ou um só ápice, sem que tudo seja cumprido” (Mt 5,17-18).

Seriam os Apóstolos, pescadores rústicos; seria o povinho simples que seguia a Cristo para ouvi-Lo, quem esperava a abolição da Lei por aquele que mudara a água em vinho e falava com sabedoria divina? Por que aboliria Ele a Lei e os Profetas, isto é, tudo o que Deus revelara na Sagrada Escritura? Quem era esperado pelos judeus e que devia nascer naqueles tempos senão o Messias? Quem esperava, naquele tempo, que aquele que estava para vir – o Messias – aboliria a Lei e os Profetas? Certamente, não eram os Apóstolos, nem o povinho que esperavam tal coisa, e sim os escribas e fariseus.

Ora, sabemos que os Talmudistas e os Cabalistas, na Idade Média, afirmavam que, quando viesse o Messias, ele aboliria a Lei. As palavras de Cristo, no Sermão da Montanha, indicam que já no seu tempo havia judeus – muito provavelmente os rabinos fariseus – que esperavam do Messias, ao vir, que abolisse os mandamentos. Cristo advertia então os rabinos fariseus e os escribas – que pelos milagres viam que Ele era o Messias – que não esperassem dele a abolição do Decálogo. Mais. Ele explica que se alguma coisa mudava com a sua vinda, era visando uma obediência mais perfeita, profunda e espiritual da lei, da qual nem um jota seria tirado.

Ademais de desiludir as expectativas antinomistas dos escribas e fariseus, Cristo os acusa de não só deixarem de cumprir a Lei, mas também – tal qual fará o Talmud posteriormente – de ensinarem a violar a Lei. O que certamente eles não faziam publicamente. Por isso se lê, no Sermão da Montanha:

“Aquele, pois, que violar um destes mínimos mandamentos e ensinar assim aos homens, será considerado o mínimo no Reino dos céus” (Mt 5,19).

E que Ele visava atacar os fariseus fica evidente pelo que diz imediatamente depois: “Porque Eu vos digo que, se vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20).

Em geral, se julga que os fariseus eram homens de moral rigorosa e que seu erro capital era apenas o de darem mais valor às minúcias da lei do que ao seu âmago. Ora, a acusação que Cristo lhes faz é bem mais radical:

“Porventura não vos deu Moisés a Lei? E, contudo, nenhum de vós observa a lei” (Jo 7,19).

Repare-se o radicalismo e a generalidade da acusação: nenhum dos fariseus praticava a Lei. E não a praticavam porque, secretamente ensinavam a violá-la.

Esse antinomismo dos fariseus devia ser secreto porque, caso o alardeassem, eles perderiam todo o seu prestígio junto ao povo. Pelo contrário, publicamente eles se apresentavam como os grandes guardiães e rigorosos cumpridores da lei. Eles eram obrigados, pois, a ensinar seu antinomismo só para alguns, em segredo. Eram exatamente hipócritas. Deviam, pois, asseverar que possuíam verdades misteriosas que não podiam ser reveladas a todos. Diziam ter luzes, que não deviam ser expostas a todos, nem colocadas em candelabros, mas que deveriam ser ocultas sob o alqueire. Daí Cristo condená-los por esconderem uma sabedoria ou ciência, que, se fosse verdadeira, deveria ser publicada, e que só mantinham secreta porque era condenável.

“Vós sois a luz do mundo. Não pode esconder-se uma cidade situada sobre um monte, nem se acende uma lucerna e a põe debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, a fim de que ela dê luz a todos os que estão na casa. Assim brilhe vossa luz diante dos homens, para que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.” (Mt 5,15-16).

A luz de que fala Cristo é a verdade. A casa é a Igreja de Deus, e, naquele tempo, era a Sinagoga. A luz da verdade, na Sinagoga e na Igreja, deve ser posta de tal modo no alto de um candelabro que ilumine a todos. Isto é, a verdade tem que ser ensinada a todos. Por isso, Cristo ordenou: “Ide e ensinai a todos” (Mt 28,19). Jesus ordena que se faça o contrário dos fariseus, que pretendiam ensinar “verdades” só para alguns, escondendo o que diziam saber, loucamente, sob o alqueire. A Sinagoga foi transformada pelos fariseus e escribas em um alqueire que escondia, impedia que a luz da verdade iluminasse a todos os homens e que mantinha secreta uma doutrina que chamavam de Tradição dos Antigos. Se a Sinagoga é o alqueire, a cidade posta no alto do monte é Roma, e o candelabro sobre o qual os Apóstolos deviam colocar a luz do Evangelho é a Igreja Católica. É assim que Santo Ambrósio explica essa passagem (cfr. Cornélio a Lapide, Commentaria in Quatuor Evangelia, Commentaria in Mathaeum, Augustae Taurinorum, Marietti, 1896, vol. I, pp 211-212).

Os escribas e fariseus inimigos de Nosso Senhor eram antinomistas e, portanto, gnósticos. Eles se arrogavam ter a verdadeira sabedoria de Deus, mas recusavam dá-la a todos. Por isso Cristo os acusa de terem usurpado a chave da ciência de Deus e de nem entrarem no Reino de Deus, nem deixarem outros entrar.

“Ai de vós, doutores da Lei, que usurpastes as chaves da ciência, e nem entrais vós, nem deixastes entrar os que vinham para entrar” (Lc 11,52).

Na primeira das oito maldições que Cristo lançou contra os fariseus, Ele os acusa desse mesmo crime de impedir a salvação dos outros:

“Mas ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Porque fechais o reino de Deus diante dos homens, pois nem vós entrais, nem deixais que entrem os que estão para entrar.” (Mt 25,13).

O Reino dos Céus, em certo sentido, é a Sagrada Escritura da qual os fariseus tinham se arrogado a chave. Noutro sentido, é a Igreja. Porta da Sagrada Escritura e da Igreja é Cristo. A chave dessa porta é a verdade, chave que Cristo entregou a Pedro. A chave do Reino dos Céus é, portanto, o ensinamento infalível da verdade revelada na Sagrada Escritura. Os fariseus pretendiam ter essa chave que Deus não lhes dera e que ia ser entregue a Pedro. A chave deles era falsa. Nem eles entravam pela porta que é Cristo. Eles penetravam na Sagrada Escritura como o ladrão, não pela porta do sentido legítimo, mas pela janela oculta do esoterismo. Os fariseus fechavam as portas do Céu por meio de suas tradições humanas, que colocavam inúmeras cargas e obrigações sobre os ombros dos homens, dificultando-lhes a prática da religião e a salvação.

7 – A Tradição dos Antigos

O ponto central da polêmica entre Cristo e os fariseus foi a questão da “Tradição dos Antigos”, isto é, a questão da Torah Oral que estava então em pleno processo de elaboração e que veio, depois, a redundar na Mishnah. (cfr. Frederico Dattler, S.V.D. A Mixná no Novo Testamento, in Atualidades Bíblicas, Vozes Petrópolis, Rio, São Paulo, 1971, pp. 395-402).

No Evangelho de São Marcos trata-se insistentemente da “Tradição dos Antigos”:

“E reuniram-se em volta de Jesus os fariseus e alguns dos escribas vindos de Jerusalém. E, tendo visto alguns dos seus discípulos comer o pão com as mãos impuras, isto é, por lavar, censuraram-nos. Porque os fariseus e todos os judeus em observância da tradição dos antigos, não comem sem lavar as mãos muitas vezes; e, quando vêm da praça pública, não comem sem se purificarem; e praticam muitas outras observâncias tradicionais, como lavar os copos e os jarros, e os vasos de metal e os leitos. Ora, os fariseus e os escribas interrogaram-no: ‘Por que não andam os teus discípulos segundo a tradição dos antigos, mas comem as refeições sem lavar as mãos?’

“E Ele, respondendo, disse-lhes: ‘Com razão Isaías profetizou de vós, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo honra-me com os lábios, mas seu coração está longe de mim’. E em vão me adoram, ensinando doutrinas e preceitos dos homens. Porque, deixando o mandamento de Deus, observais cuidadosamente a tradição dos homens, lavando os jarros e os copos, e fazeis muitas outras coisas semelhantes a estas.” (Mc 7,1-9)

A Mishnah vai tratar expressamente desses casos de purificação de vasos no tratado Kelim (vasos) da seção Tohoroth (purificações) e no tratado Yadaim (mãos). Nessa mesma seção se trata de como as mãos devem ser lavadas para serem purificadas, com que água, como derramá-la etc.

Cristo tomou posição frontalmente contrária às purificações meramente físicas e exteriores dos fariseus ao sublinhar que a verdadeira pureza não é física, mas moral.

“Ouvi-me todos, e entendei. Não há coisa fora do homem que, entrando nele, o possa manchar, mas as que saem do homem, essas são as que tornam o homem impuro. Se há alguém que tenha ouvidos para ouvir, ouça” (Mc 7,14-16).

“E dizia-lhes: ‘Vós bem fazeis por destruir o mandamento de Deus, para observar a vossa tradição. Porque Moisés disse: ‘Honra teu pai e tua mãe. E todo o que amaldiçoar seu pai ou sua mãe, seja punido de morte’. Porém, vós dizeis: ‘Qualquer pessoa poderá dizer a seu pai ou a sua mãe: ‘É oferta (a Deus, é Korban) qualquer coisa minha que te possa ser útil; e não lhe deixais fazer nada em favor de seu pai ou de sua mãe, violando a palavra de Deus pela tradição, inventada por vós; e fazeis muitas coisas semelhantes a esta” (Mc 7,10-13).

É interessante notar que o próprio termo “korban” aparece na Mishnah, nos tratados Nedarim (votos) I, nº 2-3-4; II, nº 1-25-; III, nº 2-5; XI, nº 5; Nazir (voto de nazarita) II, nº 1-2.

Em São Mateus, o texto paralelo diz: “E assim, por causa de vossa tradição, tornastes nulo o mandamento de Deus” (Mt 15,6).

Ora, que tradição farisaica era essa que provocava a anulação dos mandamentos de Deus?

É certo que a Kabbalah, termo que significa tradição, foi plenamente elaborada, escrita e conhecida por esse nome, só na Idade Média (séc. XII e XIII). Não cabe, pois, afirmar que a tradição farisaica, atacada por Cristo nos Evangelhos, seja, enquanto sistema, a própria Kabbalah medieval. Entretanto, é dessa mesma tradição farisaica – esotérica e gnóstica – que vai nascer o misticismo gnóstico da Kabbalah. Se a tradição farisaica, atacada por Cristo, ainda não era a Kabbalah, nela já existia a gnose que ia gerá-la. Já havia nela o princípio de que a Tradição dos Antigos valia mais que a revelação e podia mesmo contrariá-la, de tal modo que se deveria preferir a Tradição dos Antigos à própria Lei de Deus. O antinomismo fariseu, denunciado por Cristo, já era o princípio do futuro antinomismo da Kabbalah.

Sem nenhuma dúvida, nesse texto citado de São Marcos fica patente a oposição de Cristo à Tradição dos Antigos, isto é, à Torah Oral, tal qual estava sendo elaborada pelos escribas e fariseus, e que iria ser codificada na Mishnah, uma das fontes originais do esoterismo gnóstico judaico.

Depois que Cristo atacou a Tradição dos Antigos defendida pelos fariseus, os Apóstolos disseram-lhe: “Sabes que os fariseus, ouvindo estas palavras se escandalizaram? Mas Ele respondendo disse: Toda a planta que meu Pai celeste não plantou, será arrancada pela raiz. Deixai-os ir. São cegos e guias de cegos; e, se um cego guia outro cego, ambos caem na fossa” (Mt 15,12-15).

Bem curiosa é essa alusão a uma “planta” que não foi plantada por Deus. Que planta é essa senão a doutrina secreta dos fariseus? Era essa “planta” que produzia as doutrinas e mandamentos dos homens. Essa planta era a Torah Oral que os fariseus cultivavam e regavam secretamente e que Cristo dizia que seria arrancada pela raiz. Curiosa comparação da doutrina e moral farisaicas a uma planta que pretende vir do céu, mas que vem da terra, isto é, do homem. Curiosa, porque da gnose secreta, existente nos círculos farisaicos, iria desabrochar, séculos depois, a Kabbalah, cuja doutrina das emanações divinas era esquematizada na árvore sefirótica, que, segundo os cabalistas, tinha raiz no céu e crescia em direção à terra…

Outro ponto de profunda divergência entre Cristo e os fariseus foi a questão do descanso sabático. Os fariseus acusavam Jesus de violar a Lei por curar paralíticos e cegos no sábado. Ou ainda reclamavam porque os discípulos de Cristo colhiam espigas nesse dia. Ora, o rigorismo dos fariseus quanto ao sábado tinha origem nos preceitos dos Antigos que, depois, foram codificados na Mishnah, nos tratados Shabbath e Erubin, nos quais se trata com minúcias o que podia e não podia ser feito no dia de sábado.

Noutra passagem, Cristo amaldiçoa os fariseus dizendo: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e desprezastes os pontos mais graves da Lei, a justiça e a misericórdia e a fé. São essas coisas que era preciso praticar, sem omitir as outras. Condutores de cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo.” (Mt 23,23).

Ora, de onde os fariseus tinham tirado essas obrigações que não constam na Escritura? No Deuteronômio se diz: “Porás à parte cada ano o dízimo de todos os teus frutos que nascem na terra (…) o dízimo de teu trigo e do teu vinho, e do azeite, e os primogênitos de tuas vacas e ovelhas” (Dt 14,22-23). Aí não se fala expressamente nem da hortelã, nem do endro, nem do cominho, simples temperos. Também a passagem do Levítico que trata dos dízimos fala genericamente deles: “Todos os dízimos da terra, ou seja, de grãos ou de frutas das árvores são do Senhor” (Lv 27,30).

Na parábola do Fariseu e do publicano Cristo faz o fariseu dizer: “Jejuo duas vezes na semana, e pago o dízimo de tudo o que possuo” (Lc 18,12), mostrando que já naquele tempo os fariseus obedeciam rigorosamente às determinações que, mais tarde serão codificadas na Mishnah, na Seção I, Zeraim (sementes), tratado Masseroth (dízimos), enquanto o tratado Taanith (Dias de jejum) versará sobre o jejum para obter chuva, ou para comemorar certas festas.

Outra passagem dos Evangelhos faz alusão aos costumes dos fariseus que serão codificados pela Mishnah. É aquela em que Nosso Senhor previne seus discípulos: “Hão de vos entregar aos tribunais e sereis açoitados nas sinagogas” (Mc 13,9).

Ora, na Mishnah, o tratado Makkoth (açoites) da seção Nezikin (penas) trata dos crimes que merecem o castigo do açoite e do número dos açoites (quarenta) (Makkoth, III, 10); da matéria de que o açoite deve ser feito, e como o culpado deve ser açoitado pelo ministro da sinagoga (Makkoth, III, 12-13).

Em conclusão, consideramos não haver dúvida de que Cristo atacou as doutrinas e a moral farisaicas que, em seu tempo, estavam sendo elaboradas pelos rabinos e que iam ser codificadas na Mishnah, fonte do esoterismo gnóstico gerador da Kabbalah. É da Tradição dos Antigos que vai nascer a Kabbalah, palavra que – repita-se – significa tradição…

8 – A luta contra a gnose na pregação apostólica

Com a morte de Cristo não se encerrou a luta entre os fariseus e o Cristianismo. Essa era uma luta que transcendia o tempo. Cristo acusara os fariseus de não serem realmente filhos de Abraão e sim do demônio. Evidentemente, os fariseus descendiam de Abraão pela carne. Mas recusavam a filiação de Abraão pela Fé.

“Por que não podeis ouvir a minha palavra? Vós sois filhos do demônio, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai (…) Ele é mentiroso e o pai da mentira (…) O que é de Deus ouve as palavras de Deus. Por isso vós não as ouvis, porque não sois de Deus” (Jo 8,43-48).

É claro que o demônio, sendo um anjo, não pode ter filhos em sentido próprio e natural. Os fariseus eram filhos do demônio porque queriam servi-lo. Assim como os batizados são filhos de Deus, de modo análogo, se daria uma filiação demoníaca. Na História, há uma luta entre os Filhos de Deus e os filhos do demônio, entre a raça da mulher e a raça do diabo, conforme o próprio Deus anunciou, ao amaldiçoar a serpente:

“Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua raça e a dela” (Gn 3,15).

A luta entre Cristo e os fariseus foi o episódio central dessa luta prevista por Deus. Cristo, posteridade da Mulher, foi odiado pelos filhos do demônio que não suportavam a sua palavra.

Essa luta evidentemente devia prosseguir entre os discípulos de Cristo e os fariseus. É o que se constata nos Atos dos Apóstolos, nas Epístolas e no Apocalipse. Neste último livro, Cristo diz aos primeiros cristãos, na carta à Igreja de Esmirna:

“Conheço a tua tribulação e a tua pobreza, mas és rico (em graça e santidade), e és caluniado por aqueles que se dizem judeus, e não o são, antes são uma sinagoga de Satanás” (Ap 2,9).

Cristo anuncia aos primeiros cristãos que eles seriam perseguidos por judeus, descendentes carnais de Abraão, mas que haviam constituído uma Anti-igreja, a Sinagoga de Satanás, já que eles eram filhos do demônio.

É dessa luta entre os fariseus e os Apóstolos que há inúmeros registros nos textos neotestamentários, indicando terem os judeus aderido a uma doutrina gnóstica. Analisemos algumas dessas passagens.

São Paulo – que tinha sido fariseu e que por isso devia conhecer bem o que eles ensinavam – diz, na Epístola aos Colossenses:

“Digo-vos isto para que ninguém vos engane com discursos sutis” (Cl 2,1).”Vede que ninguém vos engane por meio da filosofia inútil e enganadora, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo e não seguindo Cristo” (Cl 2,8).

Que “tradição dos homens” era essa contra a qual o Apóstolo previne os cristãos de Colossos? Evidentemente era a “Tradição Oral” dos fariseus, a “planta” que não fora plantada por Deus, a árvore má que não pode dar bons frutos.

E pouco depois, aos mesmos Colossenses, São Paulo diz: “Ninguém pois vos condene pelo comer e pelo beber, ou por causa dum dia de festa, ou duma lua nova, ou dum sábado, coisas que são sombras das vindouras; mas o corpo (ou a realidade delas) está em Cristo. Ninguém vos seduza afetando humildade e culto dos anjos, divagando por coisas que nunca viu” (Cl 2,16-18).

Quem condenava os cristãos “pelo comer e pelo beber”, senão os fariseus que já haviam condenado os discípulos de Cristo por esse mesmo motivo, por violarem as proibições da Tradição dos Antigos?

Quem, senão os fariseus, poderia condenar os cristãos por causa de “um dia de festa”, “lua nova” ou “sábado”? Evidentemente quem isso fazia eram os ciosos guardiães da Tradição dos Antigos, os fariseus e seus discípulos.

E quem falava, naquele tempo, em “culto aos anjos”, e quem dizia ter visões extraordinárias e falsas? Não eram os fariseus que falavam desse culto a anjos e que descreviam as visões da Merkabah? Não eram eles que falavam do anjo Uriel e que, logo mais, falarão do anjo Metraton e do anjo Melquisedec?

E a Timóteo, o mesmo São Paulo previne: “Rejeita as fábulas ridículas e de velhas” (1Tm 4,7). Novamente, na segunda epístola a Timóteo, o Apóstolo prevenirá contra as “fábulas”: “Porque virá tempo em que (muitos) não suportarão a sã doutrina, mas multiplicarão para si mestres conforme os seus desejos, (levados) pelo prurido de ouvir. E afastarão os ouvidos da verdade, e os aplicarão às fábulas” (2Tm 4,3-4).

Que fábulas seriam essas?

Também a Tito, São Paulo dá o mesmo aviso contra as “fábulas”:

“Portanto repreende-os asperamente, para que sejam sãos na fé, não deem ouvidos a fábulas judaicas nem a mandamentos de homens que se afastam da verdade” (Tt 1,13-14).

Dessa vez o texto de São Paulo nos dá um detalhe importante: as “fábulas”, contra as quais ele constantemente prevenia, eram judaicas. Que tipo de fábulas os judeus difundiam então sobre anjos e visões, senão as do esoterismo gnóstico da Merkabah?

E um segundo detalhe confirma a suspeita de que São Paulo visava prevenir os cristãos contra as doutrinas correntes entre os fariseus: ele fala, como Cristo, contra certos “mandamentos de homens”.

Ainda a Tito, o Apóstolo diz:

“Foge, porém, de questões loucas e de genealogias, e de disputas, e de contestações sobre a Lei, porque são inúteis e vãs. Foge do homem herege…” (Tt 3,9-10)

Na primeira epístola a Timóteo, o Apóstolo disse:

“Como te roguei que ficasses em Éfeso, quando parti para a Macedônia, para que admoestasses alguns que não ensinassem doutrina diversa (da que tem sido ensinada por nós), nem se ocupassem em fábulas e genealogias intermináveis, as quais servem mais para questões do que para aquela edificação de Deus que se funda na fé” (1Tm 1,3-4).

Novamente fica claro, pela carta a Tito, que São Paulo está visando judeus fiéis à Tradição Oral. O curioso é ele falar em “genealogias”. Em que sentido poderiam ser perigosas as genealogias familiares dos judeus? Estas não podiam ser más, pois que estão na Escritura. São, pois, outras genealogias a que São Paulo faz referência. Muito provavelmente, por genealogias o Apóstolo quis significar as emanações ou “genealogias” que os gnósticos atribuíam à divindade.

De passagem convém sublinhar que, nessa mesma epístola a Tito, São Paulo manda que não se permita ao herege falar:

“Porque há ainda muitos desobedientes, vãos faladores e sedutores, principalmente entre os da circuncisão [os judeus] aos quais é preciso fechar a boca, a eles que transtornam casas inteiras, ensinando o que não convém, por amor de um vil interesse” (Tt 1,10-11).

Os sedutores eram, pois, da “circuncisão”, isto é, eram judeus, e o Apóstolo manda que “é preciso fechar a boca” deles. Portanto, São Paulo se mostra favorável à censura religiosa! Mostra-se contrário à liberdade de religião. Favorável, em última análise, até mesmo ao uso da força contra a propaganda dos hereges! São Paulo inquisidor! São Paulo antiliberal e antiecumênico! Que surpresa para os seguidores do Vaticano II! É impossível conciliar essas afirmações de São Paulo com a liberdade de religião defendida pelo Vaticano II e propugnada por palavras e atos, insistentemente, pelas mais altas autoridades eclesiásticas, hoje em dia.

Que as doutrinas contra as quais São Paulo previne os cristãos eram gnósticas fica patente na seguinte passagem: “Que o Espírito diz claramente que nos últimos tempos alguns apostatarão da fé, dando ouvido a espíritos enganadores e a doutrinas de demônios, que com hipocrisia propagam a mentira, e têm cauterizada a sua consciência, que proíbem o matrimônio, e o uso dos alimentos que Deus criou para que com ação de graças, participem deles os fiéis e aqueles que conheceram a verdade. Porque tudo o que Deus fez é bom(…)” (1Tm 4,1-5).

Desse texto do Apóstolo se deduz que os que ele ataca:

  1. a) condenavam o matrimônio;
  2. b) proibiam comer certos alimentos;
  3. c) negavam a bondade das obras do Criador.

Ora, todas estas ideias são tipicamente gnósticas, e é curioso que São Paulo chame a heresia de mentira, no singular, e que lembre ser ela ensinada com hipocrisia, tal como Nosso Senhor havia dito aos fariseus. E não se alegue que o Apóstolo se referia a heresias dos fins dos tempos, visto que ele pinta os hereges do final da História com as cores dos hereges de seu tempo, porque a heresia – a mentira – é a mesma: a gnose. Por fim, convém notar que as proibições de comer certos alimentos apontam, de novo, para os fariseus e para as proibições alimentares da sua Tradição dos Antigos.

Na mesma carta a Timóteo, São Paulo chama as fábulas e a mentira contra a qual preveniu de “ciência de falso nome”:

“Ó Timóteo, guarda o depósito (da fé), evitando as novidades profanas de palavras e as contradições de uma ciência de falso nome, professando a qual alguns se desviaram da fé” (1Tm 6,20-21). Ora, a grande heresia daqueles tempos se apresentava com o nome de Conhecimento, isto é, Gnosis.

Aos Gálatas, o mesmo São Paulo diz que “há alguns que vos perturbam e querem inverter o Evangelho de Cristo” (Gl 1,7). E nesse texto frisamos a palavra inverter porque a gnose faz mais que deturpar a verdade. Pela dialética, ela inverte, perverte, a verdade e a moral, chamando o bem de mal, a luz de treva, o doce de amargo, e vice-versa.

Por sua vez, São João, na sua primeira Epístola, ensinou que “Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne, é de Deus; e todo espírito que divide Jesus, não é de Deus; mas este é um Anticristo (…)” (1Jo 4,2-3). Ora, era a gnose que dividia Cristo, ou negando que Ele fosse Deus, ou negando que Ele fosse realmente homem.

Que São Paulo e os demais apóstolos tivessem visado a gnose em seus ataques é tese comumente aceita pelos estudiosos do assunto. Já vimos que Santo Irineu afirma isso, e ele estava bem situado para afirmá-lo.

Robert M. Grant escreveu:

“Les épitres pastorales attaquent les ‘mythes et généalogies’ (1Tm 1,4) ou les ‘mythes juifs’ (Tt 1,14) qui pourraient bien être des exposés gnostiques de l’origine de l’univers: elles exhortent le lecteur à ‘garde(r) le dépot, (à) évite(r) les discours creux et impies, les objections d’une pseudo-science’ (1Tm 6,20). Et elles s’élèvent contre une gnose qui interdit le mariage et prescrit de s’abstenir de viande (1Tm 4,4). ‘Tout ce que Dieu a crée est bon’ (1Tm 4,4). Ils avaient certainement raison, ceux des pères de l’Église qui soutenaient que, dans ces épitres, ce sont les systèmes gnostiques de la fin du premier siècle et du début du second siècle qui étaient visés” (R. M. Grant, La gnose et les origines chrétiennes, Seuil, Paris 1964, p. 140).

9 – Conclusão

Que concluir deste estudo sucinto e despretensioso? Julgamos ter deixado claro que:

1- Desde o século VI a.C. os judeus tinham se corrompido doutrinariamente, aderindo à idolatria e às doutrinas que a justificavam;

2- Que após o retorno do cativeiro de Babilônia desenvolveu-se, em círculos rabínicos, um esoterismo possivelmente gnóstico que perverteu a religião judaica;

3- Que nos círculos farisaicos, o esoterismo do Bereschit e da Merkabah deu origem, posteriormente, à gnose judaica, isto é, à Kabbalah, na Idade Média;

4- Que a chamada Tradição dos Antigos deturpou a religião judaica, dando origem à elaboração da Mishnah;

5- Que da Mischnah veio uma religião puramente formal sem nenhuma espiritualidade real;

6- Que os escribas, fariseus e doutores da Lei, tão opostos a Cristo, e que o Redentor amaldiçoou, eram defensores de um religião gnóstica e esotérica;

7- Que foi a oposição de Cristo aos rabinos fariseus, elaboradores da Mishnah, que provocou o ódio dos judeus que os levou ao deicídio;

8- Que após a difusão do cristianismo pela pregação dos Apóstolos, os judeus procuraram destruí-lo com perseguições materiais e com a difusão de heresias gnósticas, que negavam principalmente a encarnação do Verbo e a divindade de Cristo.

9 – Que desse combate entre Cristo e os fariseus, assim como do combate entre os Apóstolos e os gnósticos judeus há inúmeras provas nos Evangelhos e nas Epístolas;

10- Que a gnose foi, é até hoje e sempre será a mentira que se opõe ao Catolicismo. Ainda hoje, nós católicos temos que enfrentar os mesmos adversários que se opuseram a Cristo Nosso Senhor.

Na festa de São Pedro e São Paulo, no ano de 1994.

Orlando Fedeli

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