Gedeão, um outro herói contra a Revolução Francesa

Data

Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no email
Compartilhar no whatsapp
Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no linkedin
Compartilhar no email
Compartilhar no whatsapp
image_pdfConverter em PDFimage_printPreparar para impressão

Orlando Fedeli

Gedeão, um outro herói contra a Revolução Francesa

Bretanha, velha província da França. Terra de Du Guesclin e da boa Duquesa Ana. Terra de marinheiros rudes, de heróis e de santos. A alma bretã, forte, fiel e combativa, se plasmou à semelhança dos rochedos altivos da costa cicatrizada e recortada pelo oceano. Ela se formou ajoelhada aos pés dos calvários de pedra que São Luís Grignion de Montfort tanto amava.

A Revolução Francesa arremeteu como o oceano raivoso contra as tradições católicas dessa região. Muita coisa foi destruída, muitos não resistiram. Houve ali, todavia, quem não cedesse, quem continuasse lutando quando quase ninguém mais lutava contra a Revolução e contra Bonaparte. Era um punhado de chouans e seu chefe era um simples camponês, quase esquecido hoje, mas que adquiriu então tal gloria, que mereceu, como os Reis, ser conhecido apenas pelo primeiro nome. Foi Georges Cadoudal, — Georges, o general do Morbihan.

Georges Cadoudal nasceu no primeiro dia do ano de 1771, na aldeia bretã de Kerléano. Seu nome de família era já um pressagio de glória e de sofrimentos: Cadoudal significava, na língua celta, guerreiro cego.

Estudante ainda, seu porte já era agigantado; sua força excepcional se tornou lendária. Dizia-se que, segurando pelas patas traseiras um potro, este, mesmo chicoteado, não conseguia se mover. Apesar de seu tamanho, era muito ágil e destro. Jovial e afável, como bom bretão era de uma tenacidade inabalável, astuto e desconfiado. Sua piedade era ardente e sólida.

Quando a Revolução começou, muitos Padres e nobres da Bretanha, iludidos pelos seus ideais especiosos, lhe emprestaram apoio. O próprio Cadoudal, em 1789, deu sua assinatura a um manifesto de aplauso aos estudantes de Rennes que, liderados pelo futuro general da Revolução Jean Victor Moreau, tinham atacado os nobres refugiados no Convento dos Franciscanos.

Foram as primeiras medidas contra a Igreja que abriram os olhos do povo. A Constituição Civil do Clero, que visava à formação de uma igreja cismática e “democrática” (Bispos e padres seriam eleitos por sufrágio universal, sem exclusão dos eleitores não católicos), levantou toda a França católica contra a Revolução. Georges participou em 1793 de motins de camponeses contra a conscrição militar, e por isso foi preso. Viu-se, em consequência, obrigado a servir no exército revolucionário que combatia os vendeanos. Aproveitou, porém, a primeira oportunidade para passar às fileiras do Exército Católico e Real.

Lutou então entre os soldados de Bonchamps, e participou com eles de todas as batalhas. O general realista Stofflet, vendo-o combater, comentou: “Se esta cabeça grande não for arrancada por uma bala de canhão, irá longe”.

Após a catastrófica derrota de Savenay, o grande Exército Católico se dissolveu. Cadoudal voltou à sua terra natal com um companheiro de armas, Pierre Mercier, apelidado la Vendée.

Em 1794, Cadoudal tornou-se noivo da irmã de Mercier. De comum acordo, porém, os dois jovens adiaram o casamento até que o Rei voltasse ao trono.

Georges e Mercier logo organizaram um levante na Bretanha. Foi então que, por motivos de segurança, adotaram nomes de guerra: o primeiro passou a ser Gedeão e o segundo, Jonatas, nomes bíblicos que calhavam bem à grandeza da vocação de Cadoudal e à fiel amizade de Mercier.

Esta primeira tentativa de levante malogrou devido a uma traição. Em junho de 1794, os dois amigos e a família Cadoudal foram presos e enviados a Brest. A mãe e um tio de Georges não resistiram aos sofrimentos, e morreram na prisão.

Georges e Mercier fugiram pouco depois e novamente se aplicaram a organizar a insurreição realista e católica em todo o Morbihan ou Baixa Bretanha.

A luta contra a revolução do Morbihan se distingue de suas congêneres por seu caráter popular: enquanto por toda a parte é um nobre que comanda os insurrectos, ali o chefe e seus imediatos são homens do povo.

Georges revelou-se um hábil organizador: dividiu o seu território em nove legiões, impôs aos seus homens um código militar rigoroso, criou um corpo de cavalaria e de artilharia. Não faltava nem mesmo um serviço de saúde.

Tinha tal autoridade o novo Gedeão, que podia exigir de seus soldados a castidade, virtude de que ele mesmo dava exemplo.

Cadoudal organizou ainda um serviço de informações e espionagem completo: dele faziam parte quase todos os camponeses da região, inclusive crianças e mendigos. Havia conseguido colocar homens seguros até mesmo nas polícias de Paris, Lorient e Vannes.

Quando estava quase tudo pronto para a ação, em 1795, realizou-se uma conferência de paz entre monarquistas e revolucionários em Prévalay.

Georges compareceu na qualidade de general do Morbihan, e sua inteireza e energia contribuíram largamente para o malogro das manobras dos revolucionários, que visavam a obter dos chouans o juramento de sujeição à República.

Ainda em 1795, ele apoiou com sua tropa o desembarque de doze mil nobres emigrados na península de Quiberon. Diversas traições levaram a expedição ao fracasso mais completo. Cadoudal tentou salvá-la do cerco dos revolucionários por uma manobra envolvente. Ordens da Agência Real de Paris afastaram seus homens da batalha; em consequência, mais de mil realistas foram aprisionados e fuzilados.

O desastre limitou os objetivos do jovem general. Já não podia vencer a Revolução; apenas tinha possibilidade de defender os camponeses do Morbihan contra as violências dos bleus.

O general Hoche, depois de infligir aos realistas a derrota de Quiberon, iniciou uma política de conciliação, dando uma relativa liberdade aos católicos. Muitos, iludidos e desanimados, deixaram a luta.

Em 1796, Georges escrevia a um Padre refratário: “Resta-nos, somente, o infeliz Morbihan… A absoluta maioria das potências da Europa reconhece a República…”

Depois que todos os chefes monarquistas do Oeste se submeteram, Georges Cadoudal foi obrigado também a cessar o combate. Luís XVIII mandara, aliás, “poupar o sangue de seus súditos”, porque confiava que a realeza voltaria pelo sufrágio popular.

De fato, nesse ano de 1797 quase toda a França aspirava à volta da bandeira dos lises. A Revolução estava profundamente desprestigiada. A vitória da direita nas próximas eleições era certa, mas Luís XVIII não devia ter esquecido a má fé de seus adversários.

Os candidatos da reação venceram nas eleições do ano V, mas estas foram anuladas pelo golpe de 18 frutidor e a perseguição aos antirrevolucionários redobrou de intensidade.

Georges partiu para a Inglaterra, com a esperança de convencer algum dos Bourbons emigrados de ir se colocar à frente dos insurretos do Oeste. Passou ali sete meses, e enquanto isto a lei dos reféns, que permitia prender os parentes dos culpados ou suspeitos de sedição e sequestrar seus bens, reavivou a reação contra a revolução. Tanto mais que Fouché, novo ministro da polícia, recomendava que se ampliassem ainda as medidas de rigor da lei.

Em 1799, a guerra civil recomeçou.

Em três semanas os chouans e vendeanos conquistaram Le Mans, Mayenne, Bayeux, Pont-Château, Guérande, Craon, Laval, Château-Gontier, Saint-Brieuc, Alicenis, Candé. Até Nantes foi tomada, Nantes que vira o malogro de Catelineau. Só faltava o desembarque de um Bourbon para unir todos os esforços e alcançar a vitória completa. A Revolução estava perdida. Foi então que Napoleão chegou e a salvou. Substituindo o Consulado ao Diretório, ele se apresentou como restaurador da autoridade e da ordem. Dizia-se que seria um segundo Monk, e que os ingleses tinham favorecido sua saída do Egito com a condição de ele restaurar a monarquia francesa. A maior parte dos chefes direitistas se deixou enganar. É curioso como a Revolução há séculos repete sempre os mesmos estratagemas, e sempre há ingênuos que se iludem.

A maioria dos generais realistas aceitou a trégua então oferecida por Bonaparte. Somente Georges, Bourmont e Frotté recusaram a paz.

Em consequência, todo o Morbihan foi posto fora da lei e tropas revolucionarias numerosas acorreram para exterminar os soldados de Cadoudal. Um general republicano escrevia a este: “Todo o mundo vos abandona; é preciso que vos rendais…” A resposta dos chouans foi o fuzilamento de dois espiões republicanos.

Georges continuou a lutar resolutamente, mas nos primeiros dias de 1800 Bourmont e Frotté se renderam. Sozinho o general do Morbihan não tinha nenhuma possibilidade de êxito. Continuar resistindo só serviria para atrair sobre sua terra massacres e destruições.

*

Georges entrou em entendimentos com o general Brune, o qual lhe transmitiu as condições de Bonaparte.

O acordo que daí resultou estipulava que os chouans entregariam as armas, nenhum deles seria punido, e os seus chefes teriam liberdade de escolher o lugar onde quisessem residir.

Outrossim, e embora soubesse que Frotté fora fuzilado apesar de um salvo-conduto assinado por dois generais republicanos, Georges aquiesceu em ir a Paris, conferenciar com o primeiro cônsul.

Estava este interessado em encontrar o homem extraordinário que, como os Reis, era conhecido apenas pelo prenome. Napoleão relatou várias vezes as impressões que teve do grande chouan. “O exagero de seus princípios — observou, logo depois da entrevista — tem raiz em nobres sentimentos que devem lhe dar muita influência entre os seus”. “Não consegui comovê-lo, confessou mais tarde. Alguns de seus companheiros se emocionaram quando lhes falei da pátria e da glória… ele permaneceu frio. Nada me adiantou tocar todas as fibras, experimentar todas as cordas: foi tudo em vão, e encontrei-o sempre insensível a tudo o que lhe dizia. Ele continuava querendo comandar seus vendeanos”.

Em Santa Helena, Napoleão ainda repetia: “Era um fanático; comovi-o sem chegar a convencê-lo. Depois de meia hora, eu não tinha avançado mais do que no começo…”

Georges saiu irritado da entrevista e seu primeiro comentário foi: “Que vontade tinha eu de sufocar aquele homenzinho entre estes dois braços”. E como alguém observasse que anteriormente o primeiro cônsul se mostrara afável com outros chefes realistas, o rude bretão retrucou: “Ele mudou de tom depois que tantos orgulhosos republicanos, que queriam a qualquer preço a liberdade ou a morte, vão se prostrar a seus pés, e que Padres e realistas nos abandonam para ir ter com ele”. Em seguida, como que falando consigo mesmo, acrescentou: “Esse jacobino, que não vale mais que os outros! Ele não me aprecia! Pior para ele. Vejo bem que, nesse passo, acabará por me cortar o pescoço. Será preciso que eu monte novamente a cavalo e vá passear com alguns homens pela estrada da Malmaison”.

Parece que Napoleão ofereceu ao chouan o posto de general ou 100.000 libras de rendas. Georges tudo recusou.

*

Certo de que ia ser preso, Cadoudal resolveu refugiar-se na Inglaterra, junto do Conde de Artois, irmão de Luís XVIII. Não só o Príncipe e sua corte de emigrados, mas até os ministros ingleses, o receberam com a deferência devida ao general que representava então a mais sólida esperança dos Bourbons.

Alguns episódios de sua estadia na Inglaterra provam bem o seu zelo pela causa de Deus e do Rei. Vendo o Duque de Berry, filho do Conde de Artois, que passeava futilmente em companhia de belas damas, exclamou: “Ah! seria bem melhor que ele fosse combater nas nossas landes”.

Relataram tal comentário ao Conde de Artois, que na primeira oportunidade perguntou a Georges se tinha visto naquele dia o Duque. “Sim, Monsenhor, respondeu francamente o bretão, e não pude me impedir de lamentar que ele estivesse em tão fútil companhia quando faria tanto bem se se pusesse à nossa frente…” E como um nobre presente, querendo atenuar a rudeza da resposta, comentasse amavelmente que bastaria que o Príncipe desembarcasse na França para armar todos os braços e arrastar todos os corações, Georges, num arrebatamento de zelo e de cólera, o rosto afogueado, exclamou: “Por que então ele não vai para lá?” E desmaiou de emoção.

Noutra ocasião, alguém lhe perguntou: “Quereis que o Príncipe vá à Bretanha; mas garantis sua vida?” — “A vida não, mas lhe garanto a honra”, retrucou o chouan.

Tal era a sua grandeza de alma.

*

Georges voltou à Bretanha em junho de 1800, para dar início à execução de um vasto plano que arquitetara e que incluía o rapto do primeiro cônsul e o desembarque do Conde de Artois. Tudo isso, porém, se tornou inviável, por causa do prestígio enorme que a campanha da Itália assegurou a Bonaparte. E — comenta G. Lenotre — “enquanto a Europa, atônita, se cala e se inclina, é o pobre camponês bretão que, sozinho, ousará desafiar o vencedor de Marengo”.

Tal era, apesar de tudo, o prestígio do novo Gedeão, que da Itália, onde se cobria de louros, o primeiro cônsul escrevia preocupado a Fouché, que prendesse e matasse Georges em 24 horas.

Com esse objetivo o ministro da polícia usou numerosos espiões, em geral escolhidos entre antigos nobres. Todas as tentativas fracassaram graças ao eficiente serviço de contraespionagem dos chouans. Em geral, ao chegar, o espião já era esperado, sendo imediatamente preso e fuzilado. Em dois meses, sete agentes de Fouché foram executados.

O atentado da “máquina infernal”, levado a efeito contra Bonaparte em dezembro de 1800, foi prejudicial aos antirrevolucionários. Cadoudal verberou acerbamente esse crime estúpido, que só trouxe um agravamento da perseguição aos chouans. Vítima dessa perseguição encarniçada e traiçoeira foi o irmão de Georges, Julien Cadoudal, vendido à polícia por trinta soldos, por seu próprio padrinho. Mercier-la-Vendée também foi morto por essa época. Seu corpo foi passeado em triunfo pelas ruas de Loudéac e depois jogado na escadaria de uma igreja, onde ficou exposto durante três dias, sem que ninguém ousasse sepultá-lo. A casa do Deus por quem ele combatera e por quem dera a vida, servia-lhe agora de monumento.

A tristeza que essa perda causou a Georges foi imensa. Para não lhe avivar a dor, nas cabanas onde os guerrilheiros se refugiavam ninguém pronunciava o nome de Mercier. Certa noite, quando o general jogava cartas com alguns companheiros, alguém sem querer falou de seu fiel amigo. Georges levou um choque, procurou se conter, mas grossas lágrimas desciam pelo seu rosto. Por fim escondeu a cabeça entre as mãos e prorrompeu em soluços, “que duraram até alta noite”.

“Esses chouans, endurecidos há tanto tempo por tantas privações, sofrimentos e matanças, tremiam de emoção sobre seus leitos de feno, junto desse homem do qual eles conheciam a bravia abnegação, a impassibilidade no perigo, a inflexível pertinácia, e que ouviam agora, na sombra opaca daquela choupana miserável, chorar como uma criança sensível, com o coração dilacerado pela lembrança do amigo, perdido” (G. Lenotre).

*

Em 1802 a França ditou a paz a toda a Europa. Ao mesmo tempo, uma perseguição violenta obrigou Georges e seus principais companheiros a novamente se refugiarem na Inglaterra. Como esta, esgotada, também assinara um tratado de paz com a República, os chouans foram convidados a residir no campo. Para não perderem a forma, seu general fazia com que todos se exercitassem diariamente na equitação. Ele planejava ir a Paris com seus homens para raptar Napoleão.

Quando lhe objetaram que o golpe podia fracassar e que então ele seria guilhotinado, Georges respondia: “Pois bem, se este for o meu destino, abandono-me à Providência Divina e a seus decretos, e esperarei minha morte com coragem e sem murmurar”.

“Georges, dizia por essa época o ministro inglês Wyndham, tem o porte, a voz e o aspecto de um rústico; mas possui aquele desembaraço e aquela segurança naturais que são o sinal de um espírito superior. De todos os que vi empenhados no serviço dessa causa, é ele quem me dá mais a sensação de que nasceu para se tornar grande”.

O reinicio da guerra entre a França e a Inglaterra, logo no ano de 1803, deu liberdade de ação aos chouans emigrados. Georges resolveu então levar a cabo o seu “golpe essencial”: partiu para Paris com alguns de seus homens, com o objetivo de raptar Bonaparte ao mesmo tempo que um Bourbon, desembarcando na França, marcharia para a capital e, com o apoio dos generais Moreau e Pichegru, a monarquia seria restaurada.

Como se vê, esperava-se obter o concurso de dois militares que gozavam de grande prestígio no exército republicano e estavam descontentes com a situação política: Moreau, rival de Bonaparte, e Pichegru, condenado pelo Diretório e foragido.

*

O desembarque dos chouans — eram sete — se realizou junto à falésia de Biville, na Normandia, que foi escalada com o auxílio de cordas. Os 80 metros a pique da falésia eram apenas o início de uma viagem cheia de perigos, até Paris, onde haviam sido preparados esconderijos para os bretões.

Ali os contatos com Moreau foram decepcionantes. O general queria derrubar Bonaparte, mas para tomar o seu lugar, simplesmente, e não para restaurar o trono. Georges, encolerizado, encerrou os entendimentos dizendo a Moreau: “Bleu por bleu, prefiro ainda Bonaparte a vós”. Quanto a Pichegru, mostrou-se de uma singular timidez e indolência.

Depois de seis meses de hábeis preparativos, e de seis desembarques sucessivos de novos conjurados, a indiscrição de um chouan pôs a polícia na pista da conspiração. Um após outro, foram presos Picot, criado de Cadoudal, Bouvet de Lozier, Pichegru, o Marquês de Rivière, os irmãos de Polignac, Moreau. Georges, procurado com o maior empenho, foi afinal descoberto quando ia tomar um carro para mudar de esconderijo. O chouan ainda conseguiu entrar no veículo, que partiu velozmente, mas logo adiante um policial agarrou as rédeas do cavalo. Georges o matou a tiros; o carro porém se detivera, e ele acabou sendo aprisionado.

*

Levado à polícia, e interrogado durante dez horas ininterruptas pelo regicida Thuriot, o prisioneiro não só permaneceu imperturbável, mas ainda teve ânimo para fazer ironia. Como Thuriot lhe increpasse a morte do policial sob a alegação simplória de que se tratava de um pai de família, o chouan, que atirara em legítima defesa, retrucou: “Deviam ter escolhido, para me prender, celibatários…”

Nos interrogatórios seguintes Georges tratou o regicida de modo ainda mais humilhante. Adulterando-lhe o nome, chamava-o de Tue-roi (mata-rei). Quando Thuriot lhe perguntou o que havia feito de certo retrato de Luís XVI, de que se teria apossado, Georges o esmagou imediatamente com esta réplica: “E tu, mata-rei, que fizeste com o original?”

*

Findos os interrogatórios dos conjurados, foi-lhes permitido passear pelo jardim do Templo, que lhes servia de prisão. Cadoudal reunia então seus chouans, falava-lhes no dialeto da província natal, aconselhando-os a serem prudentes no processo que ia se iniciar, e a nada dizerem que pudesse prejudicar os companheiros.

“Sede afáveis e indulgentes uns com os outros — recomendava-lhes — redobrai de atenções recíprocas… Quando não vos sentirdes bastante fortes, olhai para mim; lembrai-vos de que estou convosco, que a minha sorte será a vossa; nada de olhar para trás: estamos onde estamos; somos o que Deus quis que fossemos… Não esqueçais nunca que esta prisão que vamos deixar é aquela mesma de onde Luís XVI saiu para a morte; seu exemplo sublime vos ilumine e guie”.

Depois fazia-os rir com a lembrança das peças que tantas vezes tinham pregado aos bicas, inflamava-lhes o ânimo com histórias das lutas de que juntos tinham participado, e por fim todos entoavam os velhos e graves cânticos piedosos da Bretanha. Os mais belos eram os de São Luís Grignion de Montfort, que falavam da Cruz, da Virgem, que tinham ecoado nas landes da Bretanha e nos campos da Vendéia, durante as batalhas, nas longas marchas, em torno das fogueiras dos acampamentos. Agora eram cantados em plena Paris, e o povo que da rua os ouvia, aplaudia emocionado os nobres prisioneiros.

*

Durante o processo a simpatia popular para com os conjurados cresceu ainda mais, enquanto cartas ameaçadoras ou de desprezo eram enviadas a Bonaparte, que acabava de se fazer Imperador.

No banco dos réus estavam generais, soldados, aristocratas, camponeses rudes da Bretanha, pequenos burgueses e homens do povo de Paris e da província. Ao todo, 47 pessoas iam ser julgadas.

Georges assumiu perante os juízes a inteira responsabilidade pela conjuração, procurando salvar seus companheiros e até mesmo Moreau. Sua generosidade heroica e sua nobre presença calaram fundo no ânimo dos assistentes. Mme. Récamier, que acompanhou o processo, assim se exprimiu sobre a atitude do general chouan: “Este intrépido Georges… olhava-se para ele com o pensamento de que aquela cabeça, tão livre e energicamente devotada, ia rolar no patíbulo; que só ele, talvez, não se salvaria, porque não fazia nada para isso… Eu ouvia suas respostas, todas impregnadas dessa fé antiga pela qual ele tinha combatido com tanta coragem e a que, desde tanto tempo, tinha feito o sacrifício de sua vida…”

Georges, com mais dezenove conjurados, foi condenado à morte. A oito deles, que eram nobres ou oficiais, Napoleão julgou útil comutar a pena em prisão. Só doze camponeses é que iriam até a gloria da suprema imolação.

*

No pátio do Templo, Georges continuou a reunir em torno de si seus companheiros, até o dia da execução. Ele lhes falava da guerra e de Deus. O carcereiro se aproximava com o chapéu na mão e, misturando-se ao círculo dos condenados, ouvia respeitosamente o novo Gedeão.

Pela manhã e ao cair da noite, este, de sua cela, fazia seus soldados rezarem pelo Rei, pelos amigos, pelos companheiros de infortúnio. A seguir vinham as ladainhas, que ecoavam pelos corredores de pedra.

*

Georges Cadoudal passou em orações a noite que precedeu a sua execução… A última hora Bonaparte tentou, ainda uma vez, suborná-lo. O próprio Imperador referiu a um íntimo o resultado: “Este é de boa tempera. Em minhas mãos um tal homem teria feito grandes coisas. Mandei dizer-lhe por meio de Réal que, se quisesse pôr-se a meu serviço, eu lhe daria um regimento. Ele recusou tudo: é uma lâmina de ferro”. — “Em minhas mãos teria feito grandes coisas…”, maiores fez nas mãos de Deus. Segundo Réal, Georges respondeu que, assim como seus companheiros o tinham seguido até a França, ele os seguiria até a morte.

Conta-se ainda que o chouan, ouvindo as promessas e garantias que lhe eram transmitidas da parte de Napoleão, teria dado ao mensageiro esta heroica, esta magnânima, esta sublime resposta: — “E vós me garantis uma ocasião mais bela para morrer?”

Georges, aliás, compreendera perfeitamente o objetivo de Napoleão: “Esse tipo queria me aviltar antes de me matar”, comentou ele.

*

Segundo outra versão, pouco antes de saírem para o local da execução os condenados receberam um pedido de indulto já pronto: bastava assiná-lo. Ao ler no preâmbulo: “A Sua Majestade, o Imperador…”, Georges jogou de lado o papel e, dirigindo-se aos companheiros, disse-lhes: “Meus amigos, rezemos as orações dos agonizantes”.

Então os chouans se puseram a rezar em comum e a cantar o hino “É belo morrer pela Religião e pelo Rei”. Depois, todos se confessaram.

Conduzidos, por fim, à praça em que se instalara a guilhotina, sua piedade e firmeza causavam admiração. Georges quis ser executado em primeiro lugar, para dar exemplo a seus companheiros. A pedido do Padre que o confessara, ele rezou a Ave-Maria pela última vez: “Ave Maria, cheia de graça… Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora”, e calou-se. — “Concluí, pediu o Sacerdote: …agora e na hora de nossa morte”. — “Para que? respondeu o condenado. Pois não é agora a hora da nossa morte?”

Amarrado à prancha da guilhotina, ele gritou ainda, por três vezes, com toda a alma: “Viva o Rei!”

Em plena Paris, quando Napoleão estava para ser coroado, quando a Europa e o mundo sucumbiam ante os exércitos da Revolução, aquele homem dera o supremo exemplo de fidelidade a Deus e ao Rei.

Georges Cadoudal, o Gedeão da Bretanha, recebia no Céu a recompensa gloriosa.

Na Bretanha as ondas do oceano se lançavam contra os rochedos bravios e inabaláveis. Inabaláveis e bravios como Georges.

image_pdfConverter em PDFimage_printPreparar para impressão