Data: 18-Abr-2017
De: João Paulo Camargo
Cidade: Rio de Janeiro-RJ
Assunto: Tortura na Inquisição
***
Salve Maria!
Professor, o senhor poderia me falar se na inquisição tinha torturas ou isso é invenção, e se tinha qual era os método, pq os caras pegam métodos de coisas que não tem nada haver com a Europa e falam que era da inquisição.
***
Resposta
Muito prezado João, salve Maria!
Ao estudar história deve-se olhar para todo o contexto estudado.
Um erro comum é o de se ver o passado com base nos princípios e costumes da época presente. Tal erro se agrava quando a análise é feita de forma preconceituosa e parcial, como costumeiramente ocorre ao se estudar a Igreja e a Idade Média.
A Inquisição foi instituída pelo Papa Gregório IX em 1231. Ao estudá-la, portanto, é preciso ter em mente a sociedade com sua estrutura e costumes no séc. XIII.
A Idade Média foi – ainda que longe de ser uma época perfeita –, um tempo em que, nas palavras do Papa Leão XIII, “a filosofia do Evangelho governava os Estados”[1]. Época na qual a Lei de Deus era a base das leis civis.
O Estado, que então era unido à Igreja como o corpo precisa estar unida à alma para se manter vivo, também visava a salvação das almas.
Para aquela sociedade que possuía fé, a heresia era um grave crime. Grave porque a heresia leva a alma à condenação eterna. A heresia era, portanto, um crime na sociedade civil. Assim como havia outras ações criminosas, também a heresia era um crime. Ocorre que o crime de heresia, por atentar contra a Fé, só pode ser julgado por quem tem competência para tratar de questões de Fé: a Igreja. Só ela pode dizer com segurança e imparcialidade se tal ensinamento é ou não herético.
E o que estava ocorrendo no séc. XIII era que o poder civil – o imperador Frederico II – pretendia criar um tribunal para, por interesses próprios, julgar crimes de heresia. Além disso, devido à violência dos crimes cometidos pelos hereges cátaros (por exemplo assassinatos de mulheres grávidas[2]), a própria população enfurecida passou a punir tais criminosos com a morte.
A Igreja então, para proteger o herege e dar-lhe condições de defesa, instituiu o tribunal da Inquisição.
Sendo, como vimos, a heresia um crime, ela era julgada e punida como os crimes eram julgados e punidos naquela época. A Inquisição não criou um novo método de punição mesmo porque não era a Inquisição ou a Igreja quem aplicava as penas, mas o Estado. A Igreja apenas julgava se tal pessoa havia ou não cometido o crime de heresia. Se havia, a Igreja o entregava ao Estado para que este aplicasse as leis vigentes. Como muitas vezes a lei vigente punia o crime de heresia com a morte, o Estado aplicava a lei entregando o condenado a morte[3]. Ainda assim, o número de condenados pela Inquisição foi muito baixo. O objetivo da Inquisição não era condenar o herege, mas convertê-lo. A condenação era vista como uma derrota para a Inquisição que não tinha conseguido converter tal herege.
O que a Igreja criou, isso sim, foi uma nova forma de julgamento, introduzindo por exemplo o advogado de defesa para com isso ajudar o acusado a provar sua inocência.
O objetivo da Inquisição era, portanto, a conversão do herege, não sua condenação.
E como eram esses julgamentos? Com funcionavam tais processos? Não cabe aqui descrever em seus detalhes o processo no tribunal da Inquisição, mas adianto que ele era extremamente misericordioso. Basta dizer que começava com o chamado “período da graça” durante o qual todo herege, por pior que fosse, era perdoado com o simples fato de se apresentar ao tribunal. Isso mesmo, bastava a pessoa se apresentar e dizer que estava arrependida que ficava perdoada. Qual tribunal de hoje faria isso a um réu confesso?
E quanto à tortura?
A tortura era por vezes praticada nos tribunais civis daquela época. A Idade Média era uma época na qual a vida estava bem distante da comodidade de nossa época. Viviam-se poucos e sofridos anos. Não existiam anestesia nem aquecimento central. As pessoas estavam acostumadas a dor e ao esforço. Para que algo fosse considerado um castigo precisava ser alguma coisa realmente dura. Do contrário, não passaria de mais um sacrifício somado a tantos outros que cotidianamente padeciam. Por isso as penas eram mais severas.
A inquisição, contudo, colocou regras para a tortura.
As torturas, quando implantadas nos tribunais da Inquisição por Inocêncio IV (1243–1254) através da bula Ad Extirpanda (15 de maio de 1252), eram já aplicadas nos tribunais civis e faziam parte do costume daquela época. O Papa colocou a condição de que se evitasse o perigo de morte e não se lhes cortasse nenhum membro.
A tortura nunca podia durar mais do que meia hora e devia ser acompanhada por um médico. Não podia derramar sangue. Se, após a tortura, o réu não confessasse o crime, deveria abjurar o erro e ser posto em liberdade. Caso confessasse durante a tortura, tal confissão não merecia inteira fé. Um novo interrogatório devia ser feito em outro momento, sem tortura.
Havia inquisidores que se faziam torturar junto com o réu para que pudesse assim saber o que o acusado estava sentindo.
Apesar disso, o uso da tortura na Inquisição era raro. Documentos históricos, por exemplo da Inquisição no Languedoc, onde ela foi mais ativa, não citam mais que três casos em que a tortura foi usada.
A Inquisição foi um tribunal de misericórdia, feito para converter e perdoar o herege, não para condená-lo.
Por fim, recomendo-lhe que assista a aula sobre esse tema da Profa. Dra. Laura Palma (https://youtu.be/j7f3hX7-8Vg).
Peço que reze por nosso apostolado.
In Corde Iesu.
Prof. Andre Melo
[1] Conf. Encíclica Immortale Dei, 28. Leão XIII, 1885.
[2] Os cátaros, por serem gnósticos, eram contra o casamento e a procriação.
[3] O tipo de morte variava de região para região. Na França era a fogueira, na Inglaterra a decapitação etc.