Vocação do Brasil

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Orlando Fedeli

 

VOCAÇÃO DO BRASIL

 

“Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava as nações …”

Assim o Papa Leão XIII ensinou ao mundo, na encíclica Immortale Dei, que na Idade Média a ordem política fora moldada pela sabedoria de Cristo. Nesse tempo, as nações estavam irmanadas pela Fé e constituíam a Cristandade. Antes de ser francês ou alemão, português ou espanhol, o medieval dizia-se cristão. Nessa unidade, as nações cristãs brilhavam pela caridade. Nem o orgulho nem a inveja as lançavam em lutas fratricidas. Nesse tempo feliz, não houve guerras nacionais, que só vieram a acontecer quando a Fé deixou de conduzir os reis e a caridade se estiolou. A guerra dos cem anos, entre França e Inglaterra, foi a primeira contenda bélica de fundo nacional.

O mesmo Papa Leão XIII ensinou também que, “repudiados os princípios cristãos, nos quais reside a virtude de irmanar os homens e uni-los como em uma grande família, prevalece, a pouco e pouco, na ordem internacional, um sistema de egoísmo e de inveja, pelo qual as nações se observam reciprocamente, se não com rancor, certamente com desconfianças e competições” (Parvenu, 18).

Evidentemente Leão XIII condena, nesse texto, a doutrina do nacionalismo, um dos frutos danosos do liberalismo, que não só colaborou para triturar os restos da ordem internacional, como preparou a construção da Anticristandade, a ONU, fundada sobre os princípios ímpios e naturalistas da Maçonaria. Porque, como francamente explicitou o carbonário Mazzini, “o nacionalismo é um meio para chegar a um fim: o internacionalismo”.

Com o fito de bem compreender o que eram as nações cristãs, no todo uno e variado da Cristandade medieval, é útil considerar como cada qual das nações católicas cooperava para a beleza e harmonia da ordem internacional cristã, cultivando seus valores mais profundos, sem desprezar nem invejar as qualidades que Deus dera aos outros povos, mas, pelo contrário, amando com alegria as qualidades das demais nações, porque Deus é admirável em todas as suas obras.

Quiséramos, pois, que nossas ideias contribuíssem para unir, na Fé e na caridade, todas as nações da antiga Cristandade, particularmente as nações da América, filhas da gloriosa Espanha e do fiel Portugal, na realização da vocação histórica a que Deus as chamou.

Para conhecer a vocação de um homem, consideramos as qualidades que Deus lhe deu a fim de facilitar-lhe o cumprimento da missão que lhe confiou, assim como as circunstâncias de sua origem e de sua vida. O mesmo devemos fazer quando desejamos conhecer a vocação das nações.

Nossas origens – quer do Brasil, quer das demais nações da América colonizadas pela Espanha – não devem ser buscadas em 1500 ou em 1492, datas de descoberta de nossas terras. Nós procedemos de mais longe. Somos na verdade um prolongamento natural e fiel das nações ibéricas. Nós nascemos em Covadonga. Nascemos já com a espada na mão, para a defesa da Fé.

Permita-nos o leitor traçar um esboço despretensioso de fatos bem conhecidos.

Após as grandes invasões bárbaras, instalou-se na península ibérica o reino Visigodo, cedo destruído pela invasão moura. Em 711, Tarik trouxe para a antiga Hispania as hordas muçulmanas, cheias de ódio pela Religião do Verbo Encarnado. Com efeito, no seu judaico Corão se repetem as blasfêmias dos fariseus contra Deus e contra seu Cristo:

“Diz: Allah é o único,

Allah é o único.

Ele não gerou e não foi gerado” (Corão, Sur. CXII, 1-4).

Com essas palavras, os maometanos negavam tanto a Santíssima Trindade quanto a processão do Verbo. Negavam a Encarnação do Filho de Deus e a virginal maternidade de Maria Santíssima. Desejavam os asseclas de Maomé expandir o Islão a golpes de cimitarra. “Crê ou morre” era seu lema.

A invasão árabe devastou a Hispania, atravessou os Pirineus e só foi detida por Carlos Martel, em Poitiers, em 732. Recuaram então os árabes para aquém dos Pirineus e permaneceram na península ibérica por quase oito séculos. Subjugados pela tirania dos infiéis, muitos visigodos cederam e apostataram, aderindo ao islamismo e a seus haréns. Muitos mais, entretanto, pereceram na fidelidade a seu batismo. Só um pequeno núcleo de resistência permaneceu combatendo.

Nas montanhas das Astúrias, no norte da península, um príncipe visigodo – Pelayo – refugiou-se numa gruta (Covadonga) com um pequeno número de fiéis dispostos a morrer, mas a não capitular diante da infidelidade maometana. Em Covadonga, eles se instalaram com uma imagem da Virgem Maria.

Pela segunda vez na história, a Virgem Maria estava numa gruta. Na gruta, em Belém, nasceu Nosso Senhor Jesus Cristo. Na gruta, em Covadonga, nasceu a Espanha.

De Covadonga partiu Pelayo com seus homens, para atacar os maometanos. Tanto mal lhes fez, que os infiéis mandaram um exército a fim de destruir a resistência da gruta de Covadonga. A vantagem numérica dos árabes não lhes adiantava muito, pois tinham que penetrar numa gruta cuja entrada era – como o caminho do céu – estreita e difícil. Além disso, no caso concreto, era fácil de ser defendida. Em meio ao combate, houve um terremoto e parte da montanha desabou, soterrando – dizem – um terço dos mouros atacantes. O triunfo de Covadonga, em 718, fez com que Pelayo fosse proclamado rei das Astúrias.

A Espanha nasceu numa batalha. A Espanha nasceu de uma vitória. Seu primeiro grito foi de triunfo. Com um terremoto ela entrou na História. Veio à luz para combater as trevas da infidelidade.

Pelayo e seus soldados continuaram a guerrear com os infiéis. Era a guerra da Reconquista, que, iniciada com a invasão árabe, em 711, prosseguiria até a expulsão total dos maometanos em 1492. Jamais houve uma guerra tão longa na História: 781 anos de combates, de derrotas e de triunfos. Quase 800 anos de heroísmo. Certamente 800 anos de perseverança e de esperança. Nenhum povo tem uma História tão una quanto o da Espanha: oito séculos com um só fato: oito séculos de fidelidade à Cruz de Cristo; oitocentos anos de amor até o sangue.

Não se pense – muito romanticamente – que nesses oito séculos, se caminhou sem quedas, de vitórias a triunfos. Se a guerra foi tão longa, é porque nela houve muitas derrotas e muitos percalços, muitas crises, angústias, e mesmo, muitas traições.

“À vaincre sans péril, on triomphe sans gloire” (Corneille, le Cid)

Duas foram as causas dessa guerra imensa de oito séculos:

1) Causa Religiosa: os visigodos lutavam em defesa da Fé contra os invasores árabes, que queriam impor, a golpes de cimitarra, a fé em Allah e em seu pseudoprofeta, Maomé.

2) Causa Política: os visigodos combatiam para reconquistar seus territórios invadidos e ocupados pelos mouros.

Na Reconquista, não houve causa econômica. Os visigodos de Pelayo, em Covadonga, haviam tudo perdido, menos a Fé. Exceto sua pequena imagem da Virgem. Menos sua gruta e sua coragem. Tudo perdido. Menos a Fé. Menos a esperança.

Quem assim tudo perdeu, não luta por dinheiro. Batalha por razões mais altas e mais profundas. Por razões difíceis de serem compreendidas por quem, em vez de alma, tem um cofre, em vez de coração, uma conta bancária. Quem é verdadeiramente católico, pugna em prol das únicas razões pelas quais é digno viver: Deus e a honra. Não pelo dinheiro.

É evidente que, reconquistando uma cidade ou uma região, eles se apossavam de novo de suas riquezas. Mas não tinham sido movidos ao combate pela esperança de contar moedas após a vitória. Lutavam para fazer de novo os sinos cantarem nos campanários. Porfiavam para fazer cessar o lamento dos muezins no alto dos minaretes, para fechar os impuros haréns muçulmanos. Para acabar com a escravidão existente no Islão, escravidão que não existia entre os cristãos.

Pouco a pouco, o pequeno Reino das Astúrias, fundado por Pelayo, cresceu e se transformou no Reino de Leão.

Multiplicaram-se os focos de resistência aos invasores. Novos reinos Cruzados nasceram: Castela com suas velhas torres, Navarra com seu desejo de romper correntes, Aragão sonhando em marcar em seu escudo de ouro quatro rubras faixas heroicas de sangue. Esses novos reinos Cruzados somaram-se a Leão em sua guerra católica contra o maometismo.

Da Europa, levas de cavaleiros cristãos, despertados pelo rumor das espadas batendo-se sob os estandartes da Cruzada, vinham para a península ibérica, a fim de auxiliar com suas católicas proezas os cristãos atrevimentos da Reconquista. Entre esses combatentes atraídos pelo amor da glória de Deus estavam Raimundo e Henrique de Borgonha, que, no século XII, foram a Leão vencer ou morrer por Cristo Rei, lutando contra Mafamede. Por suas façanhas de guerra eles receberam do Rei de Leão pequenos territórios em feudo. Henrique de Borgonha tornou-se desse modo senhor de um condado, no qual havia o porto de Cale. Ele se tornou Conde de Porto Cale e se casou com Dona Tareja, uma das filhas do Rei de Leão.

Desse casamento nasceu aquele príncipe que ia ser o fundador de Portugal, o “Abraão” do povo lusitano, a quem Cristo prometeu uma descendência numerosa assim como uma terra imensa, proporcionada à alma de Portugal, terra onde corressem o leite e o mel, o Príncipe D. Afonso Henriques.

Quando morreu seu pai, D. Afonso teve que lutar contra sua própria mãe e contra os leoneses para garantir seus direitos e ver confirmado seu título de Conde de Portugal. Só depois disso D. Afonso pôde usar sua espada contra o árabe inimigo de Cristo.

Em Ourique, D. Afonso, com sua pequena hoste de lusitanos, teve que enfrentar de uma só vez cinco príncipes árabes, à frente de uma tropa muito maior que a sua. Antes da batalha, na madrugada de Portugal, o Conde se retirou do acampamento para pedir ao Deus dos combates a força e a vitória. Enquanto rezava, aconteceu o milagre: Cristo lhe apareceu no céu, pendente da Cruz, com as cinco chagas brilhando. E do peito de D. Afonso saiu então o grito sublime:

“Não a mim! Não a mim, Senhor! Aos infiéis, aos infiéis, Senhor, e não a mim que creio o que podeis!”. “Não a mim, Senhor, não a mim, esta misericórdia. Aos árabes, a graça desta visão, para que se convertam”.

Quando nasceu a Espanha, tremeu e abriu-se a terra. Quando nasceu Portugal, abriu-se o céu.

Nesta cena, em que se vê um Príncipe rezando, ajoelhado ante o Crucificado, tendo a espada à cinta, pronta para dar a morte, e soltando um brado de prece pela alma do inimigo infiel que vai combater, está representada toda a vocação de Portugal e Espanha: combater e rezar. Vocação de ser Cruzado e apóstolo. Vocação verdadeiramente nada ecumênica, permitam que o note com alegria. Vocação de Portugal. Vocação de Espanha. Vocação que herdamos, ao ser fincada por Colombo a Cruz das caravelas em nossas terras, ao recebermos o batismo de mãos sacerdotais hispânicas, ao empunharmos, por nossa vez, a Cruz da espada de Pelayo e de D. Afonso, em nossas mãos. Bendito seja Deus que nos fez Cruzados e apóstolos!

Em Ourique, nascia Portugal. Em Ourique, soprava a brisa ardente que vinha de longe. De longe, no tempo. De longe, no espaço. A brisa que vinha de Covadonga chegara a Ourique. Em Ourique, Deus chamava Portugal – e com Portugal, também o Brasil, também o Brasil! – à mesma vocação de Espanha, à mesma razão histórica de existência, sem a qual nada somos.

E Cristo na Cruz, com as cinco chagas brilhando, falou a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe a vitória sobre os cinco príncipes maometanos. Ordenou-lhe ainda que aceitasse o que fariam seus guerreiros após a vitória.

E quando terminou a batalha, lá, nos campos de Ourique, os cavaleiros portugueses, inebriados de heroísmo e de triunfo, ergueram o Conde de Portugal sobre o escudo, proclamando-o, no rude e sublime rito daqueles tempos, Rei de Portugal. Então lá, nos campos de Ourique, por vez primeira soou o brado heroico:

“Real! Real! Por Afonso, alto rei de Portugal!”  (Camões, Lusíadas, III, 46).

Por escudo, o novo monarca adotou a Cruz de Cristo marcada pelas cinco quinas. Cinco, porque esse fora o número dos reis vencidos. Cinco quinas, também e principalmente, porque lembram as cinco brilhantes chagas de Cristo, que aparecera e falara a D. Afonso.

Mas, em cada uma das cinco quinas, D. Afonso mandou marcar cinco moedas, perfazendo o total de trinta, pois se contavam duas vezes as cinco moedas da quina central da Cruz. Trinta moedas da traição de Judas. Um escudo com a Cruz da fidelidade e com as trinta moedas da traição, a fim de lembrar aos portugueses que sua história devia ser ou de fidelidade à Cruz, ou de traição mesquinha, tilintando no fundo da algibeira as moedas da apostasia. Ou fazer do coração e da alma uma tocha ardente de amor à Cruz e à fé, ou fazer do coração uma bolsa avarenta, na qual Portugal amesquinhado – “Portugal-centavo”, como bem definiu um poeta -, contava, uma a uma, as parcas e miseráveis trinta moedas da traição.

Entre a Cruz e as moedas, entre a fidelidade e a traição. Entre ser apóstolos ou apóstatas, eis nosso inarredável destino. Escolher entre viver pela Fé e para a Igreja, ou vegetar pela riqueza, tal é o dilema de Portugal na sua História – tal é o dilema do Brasil. Ser de Cristo ou de Mamon. Ser católico ou marxista. Ser como São Paulo ou como Judas.

Os ventos que haviam sacudido os estandartes de Pelayo em Covadonga – havia quatrocentos anos já! – sopraram mais rápidos sobre os campos de Portugal do que no restante da península ibérica, impelindo mais depressa as bandeiras lusitanas que expulsaram logo os mouros para os areais africanos, de onde tinham vindo. Santarém, Alcobaça, Lisboa foram conquistadas pelo vitorioso D. Afonso. Para conquistar Lisboa, ele pediu o socorro das orações de São Bernardo de Claraval. E, quando ia se dar a batalha, passou providencialmente um barco, levando cruzados alemães, suecos, ingleses e franceses que iam ao Oriente combater na Terra Santa. Ao verem estandartes cristãos lutando para conquistar Lisboa aos maometanos, eles desembarcaram para auxiliar a vitória. D. Afonso viu neste socorro inesperado o efeito das orações de São Bernardo, e, agradecido, fez seu reino vassalo de Claraval, pagando fielmente tributo anual à santa abadia. Até o século XVIII Portugal foi fiel à sua vassalagem. Um ministro maçom, em sua soberba – Pombal – quebrou essa fidelidade e guardou as moedas da vassalagem, dizendo talvez que isto era contra a honra e o enriquecimento de Portugal. Economizou as moedas, proclamou a sua soberba. Guardou anualmente trinta centavos. Que fizeram Portugal – a partir do século XVIII – cada vez mais rico, poderoso e independente. Nasceu com Pombal o Portugal ciosamente independente: Portugal-centavo.

Os portugueses concluíram a Reconquista muito antes do que a Espanha. Já em 1147 haviam posto para a África os últimos mouros. Toda a terra, até o mar, ao sul, fora reconquistada. Entretanto, a guerra aos infiéis não findara. Portugal não tolerava que houvesse mouros à costa. E nem mesmo além da costa, pois:

“Não sofre o peito forte afeito à guerra

não ter inimigo a que não faça dano.

Portugal, não tendo quem enfrentar em terra,

foi acometer as ondas do oceano”.

(Camões, Lusíadas, VI, 48)

Não havendo mais terras a reconquistar, Portugal ia combater além do mar. Sua alma cristã era grande demais para ser contida na pequena terra lusitana. Ela buscava a terra grande, proporcionada à sua alma. A terra que Cristo prometera a D. Afonso em Ourique, no alvorecer de Portugal.

A epopeia das navegações é a continuação da Reconquista. Portugal, face da Europa, perscrutando o Oceano, olhava além do horizonte, sondando como destruir o império islâmico. Desse desejo nasceu Sagres. Dessa vontade de ir combater mais além nasceu a caravela, conduzindo cruzados e missionários. O vento que impelia as caravelas era o mesmo que havia acariciado os estandartes de Pelayo em Covadonga. Hoje se afirma que foi apenas o interesse econômico que deu causa às navegações. Nas caravelas não estava marcado o cifrão, e sim a Cruz de Cristo.

“Pois não é, por certo, o vento o que a move a ela.

É, na verdade, a Cruz quem move a caravela”.

As causas das navegações, fundamentalmente, foram as mesmas que as da Reconquista:

1) Causa religiosa: expandir a Fé católica.

2) Causa Política: destruir o império maometano e conquistar suas terras.

A estas duas causas, acrescentou-se uma terceira:

3) Causa econômica: dominar o comércio de especiarias.

Originalmente até esta causa econômica derivava de razões religiosas. Os maometanos intermediavam o comércio de especiarias da Índia para o Ocidente, e, com isso, auferiam grandes lucros, com os quais financiavam os exércitos com que combatiam os cristãos. Deste modo, eram os próprios cristãos que pagavam as tropas que os atacavam.

Portugal pensou, então, em alcançar a Índia por mar para impedir essa intermediação islâmica no comércio de especiarias, e assim cortar-lhes a fonte dos recursos para atacar a Europa cristã.

Além disso, as caravelas podiam levar a guerra até Meca, até o coração do império muçulmano. Eram então razões religiosas que determinavam a busca do caminho marítimo das Índias, e não motivos puramente interesseiros.

Portugal navegou enfrentando no horizonte infinito, nas brumas, nas ondas, as lendas e perigos do Oceano. Quantos barcos soçobraram! Quantos homens morreram no mar! Quantas caravelas não mais voltaram! Quantos nos portos ficaram, em vão, a esperar!

“Ó mar salgado, quanto de teu sal

são lágrimas de Portugal!

Por te Cruzarmos, quantas mães choraram,

quantos filhos em vão rezaram,

quantas noivas ficaram por casar

para que tu fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena,

se a alma não é pequena!

Quem quer passar além do Bojador,

tem que passar além da dor!

Deus, ao mar, o perigo e o abismo deu,

mas nele é que espelhou o céu!”

(Fernando Pessoa, Mar Português)

…Quantas saudades tão fundas, nos cais vazios dos velhos portos!…

Uma quadra popular cantou o mesmo tema:

“Ó ondas do mar salgado

donde vos vem tanto sal?”

“É das lágrimas choradas

nas praias de Portugal!”

Quanta dor! Quanta grandeza! Porque Portugal ouviu bem e bem compreendeu o que lhe cantava a brisa que vinha de Covadonga e Ourique: “Vai! Combate! Navega! Batalha! Ensina!”

Portugal bem compreendeu que combater e “navegar é preciso. Viver não é preciso!”

Compreendeu que… “Deus quer, os homens sonham, a obra nasce!” (F. Pessoa)

Deus quis. O Infante D. Henrique planejou. Nasceu Sagres. Portugal navegou. Colombo descobriu. Um mundo nasceu.

Eis Portugal, pequena nação no oceano da História. Eis Portugal, pequena caravela na imensidão do Oceano. Descobrindo os Açores. Caravela de Portugal, Costeando o litoral africano. Retornando a Sagres, a estudar os portulanos. Partindo outra vez, olhar sedento dos horizontes longínquos.

Ah! A sede! Sede dos horizontes infinitos! Ah! A sede das gargantas sem a doce água lá das fontes das serras… Ah! A sede insuperável das almas a resgatar!

As tempestades. Os combates desconhecidos. A fome. As calmarias. Os furacões. Novos portos. As quinas marcando a conquista, nas praias brancas, aos pés do areal moreno, nas ilhas distantes… Cada vez mais além! Plus ultra! Plus ultra! depois… “A Cruz de sangue regressando, e trazendo a bordo as distancias dos velhos portos…” (P. Bonfim).

Nas calmarias, a caravela imóvel, na imensidão do mar, acreditava nos ventos de Covadonga. Nas noites tenebrosas, a caravela tinha fé nas cinco chagas brilhantes de Ourique. Nas tempestades, quando se era obrigado a recolher as brancas velas, ocultando a Cruz de sangue de seu batismo, eram os mastros que se transformavam em cruzes nuas, de onde pendia a esperança de Portugal, a confiança da Espanha.

Que buscava a caravela de Portugal na vastidão do oceano? Que perscrutava no horizonte o olhar do vigia, desde o alto da gávea? Que direção queria o punho do timoneiro, firme no timão? Que oriente contemplava o comandante, de olhar fixo nas estrelas?

Buscavam as cinco chagas brilhantes de Ourique… Onde estariam elas, escondidas na noite escura? Onde estava a prometida Cruz de Cristo de D. Afonso Henrique?

Perscrutavam…”a linha severa de longínqua costa”… Buscavam, na linha fria do horizonte distante…

“Á árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte, os beijos merecidos da verdade” (F. Pessoa)… em que tinham acreditado.

Buscavam, além do horizonte, as almas de que tinham sede, as almas que, além do negro horizonte da idolatria, morriam de sede da verdade.

Buscavam, como pensou Colombo, o que queriam os antigos Cruzados, a libertação do Santo Sepulcro de Jerusalém, passando antes pela conquista das Índias…

Nas tempestades, nas calmarias, sob a Cruz dos mastros, sob a sombra cruzada das velas, Portugal desejava, Portugal esperava, Portugal ansiava pela terra prometida por Cristo a D. Afonso ajoelhado em Ourique. E, nas almas portuguesas, do fundo da noite dos tempos até o convés da Caravela, ecoavam longínquas as vozes dos cavaleiros de Ourique;

“Real! Real! Por Afonso,

alto Rei de Portugal!”

Lá ia a caravela por ordem do grande Infante, por mandato de D. João II, até os confins do universo, “nos mares do fim do mundo”, sabendo

“que da obra ousada,

era de Portugal a parte feita,

o por fazer era só por Deus”.

(F. Pessoa, Padrão)

E, em meio aos temores do Oceano, forjadores de lendas e de monstros, o timoneiro atado ao leme podia exclamar, tremendo e ufano;

“Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quer o mar que é teu;

E, mais que o monstrengo, que sua alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

manda a vontade que me ata ao leme,

de El Rei D. João Segundo”.

(F. Pessoa, O Monstrengo)

O mesmo podia ter dito Colombo, aquele que acreditou quando ninguém mais cria, firme, conservando o leme e a rota em direção ao Ocidente:

“Aqui ao leme sou mais do que eu. Sou a Cristandade que crê e que espera. Que quer libertar Jerusalém do jugo dos novos fariseus”.

Nessa busca contínua no mar tenebroso, Portugal confiava, um dia, encontrar a terra da promessa. Na busca sem fim do Oceano ignoto, Colombo confiava encontrar a promessa dos céus e a esperança da terra: o triunfo da Santa Igreja Católica.

Chegou, enfim, certa madrugada em que a caravela navegou, por vez primeira, sob a luz das cinco chagas luminosas de Ourique. Cinco estrelas brilhavam, formando uma Cruz no céu de veludo. Como na madrugada de Ourique. Era o sinal de D. Afonso luzindo na madrugada de Portugal. Cintilando na aurora do Brasil, que nascia da linha do horizonte, com suas praias, com suas serras azuis na distância, seus rios e suas florestas, uma terra grande de verdade, ansiando pela Verdade. Uma terra grande do tamanho da alma de Portugal.

E a América brilhando ao sol, jubilosa por ver chegando, logo após o Grande Almirante, as espadas libertadoras de Cortés e de Pizarro. Entrevendo já os ídolos diabólicos tombados dos teocalis. Venerando já, no alto do grande teocali do México, aquela mesma que ia brilhar, humildemente gloriosa, em Guadalupe.

Quando Colombo e Cabral chegaram à nova terra encontraram a terra da Santa Cruz de Ourique, a terra da Virgem de Guadalupe, na qual, ambos – Colombo e Cabral – fixaram a Cruz que haviam trazido nas velas brancas de suas caravelas. A santa Cruz das caravelas, em terra enfim fixada. Para sempre! Quando se abriu o mar, nasceu a América.

Começava então uma terceira etapa da história hispânica: a da Conquista.

Chegados às praias dos novos continentes, portugueses e espanhóis não se detiveram, exaustos, na fímbria litorânea. O impulso que os levara a vencer o oceano não lhes permitia deterem-se na orla do continente. Como a mola que, depois de pressionada e libertada de opressão, salta indo além de sua posição original, assim também portugueses e espanhóis, livres da pressão maometana, não retornaram a ocupar apenas os limites antigos da península ibérica. Foram além. Cruzaram os mares, e, mais ainda, atravessaram os novos continentes descobertos. A Conquista espanhola e as Entradas portuguesas foram a continuação das Navegações, assim como esta havia sido o prosseguimento da Reconquista. A Bandeira foi a caravela em terra firme. Já não podendo navegar, lusitanos e espanhóis calçaram as botas dos bandeirantes. Cortez, Albuquerque, Borba Gato, Pizarro, Fernão Dias Paes foram os continuadores das façanhas de Vasco da Gama e de Colombo, de Cabral e de Fernão de Magalhães.

As causas da Conquista espanhola da América e das Bandeiras portuguesas foram as mesmas que as da Reconquista e das navegações:

1) Causa econômica: a busca de ouro, pedras e outros metais preciosos;

2) Causa política: a dilatação do território luso-espanhol;

3) Causa religiosa: a propagação da Fé.

Observe-se, porém, a inversão da ordem das causas com relação à Reconquista. Enquanto na luta contra os árabes quase não influiu a razão econômica, sendo a Fé era a grande motriz, nas Bandeiras portuguesas em especial, como também na conquista espanhola da América em menor grau, foi o fator econômico que assumiu a preponderância, enquanto a luz da Fé foi se apagando.

Até o grande Cortez dizia aos aztecas que os espanhóis de seu tempo sofriam de uma doença do coração que só se curava com ouro. E Montezuma, constatando a ambição de Cortez, dizia-lhe: “Malinche, você é insaciável”.

Entretanto, mesmo em Cortez a Fé era ainda tão forte e tão importante, que ele não titubeou em derrubar os ídolos aztecas do alto das pirâmides índias – com risco de perder todos os tesouros que conquistara ou que poderia obter – para exigir que no topo do mais alto teocali do México fosse colocada a imagem da Virgem Maria. Quando, com a força de sua espada nada ecumênica, Cortez fez isso, ele assistia e realizava, do alto da pirâmide culminante do paganismo da América, o triunfo final do movimento que nascera na gruta de Covadonga, quase oito séculos antes. Desde a gruta de Covadonga até o alto do grande Teocali, haviam decorrido oitocentos anos. Oito centúrias de batalhas, para tornar a Virgem da humilde gruta de Covadonga Rainha das Américas.

Entre os Bandeirantes o êxito econômico foi bem menor que o dos Conquistadores castelhanos, mas a cobiça de riquezas foi ainda maior. Certamente também, bem menor foi o seu impulso religioso, pois que os bandeirantes só levavam consigo um capelão que, ocasionalmente podia converter e batizar índios. Desgraçadamente, eles não estavam tão preocupados com a dilatação da Fé…

O que causou este desvio tão grande da Conquista e das Bandeiras com respeito à orientação original da Reconquista e das Navegações? Que foi que levou a fome pelo ouro a suplantar a sede de justiça? Que fato histórico transformou a pura labareda da Reconquista na chama obnubilada pela fumaça das ambições dos Conquistadores e Bandeirantes? Quomodo obscuratum est aurum? Com se obscureceu o ouro da vocação hispânica?

O que ocorreu foi uma diminuição da Fé e um apego crescente aos bens do mundo. Portanto, cresceu o naturalismo. E tal naturalismo foi obra da mentalidade renascentista e mercantilista.

O Renascimento, com seu antropocentrismo pagão, isto é, com seu endeusamento do homem, levou a humanidade a deixar de viver para o céu e a voltar os olhos para a terra. Se o homem – feito de terra – é o centro do universo, se tudo começa e termina nele próprio, ele somente terá vistas para o que é material, eis que nada o transcende. Entretanto, só realizará epopeias quem tiver os olhos postos no céu. Assim, com a vitória do renascimento e do humanismo, deixaram de existir cruzados e missionários contemplando as cinco chagas de Cristo nas madrugadas de Ourique. O humanismo fizera os homens colocarem seu fim último neste mundo. O mercantilismo, colocando na riqueza o fim do homem, ensinou os portugueses e espanhóis a viver contando as trinta moedas da traição imanentista. Não foi à toa que o próprio Camões se queixou – já em seu tempo – de que cantava em vão, para um povo mergulhado numa vil e mesquinha tristeza:

“Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho

destemperada e a voz enrouquecida,

e não do canto, mas de ver que venho

cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

não no dá a pátria, não que está metida

no gosto da cobiça e na rudeza

de uma austera, apagada e vil tristeza”.

(Camões, Os Lusíadas, X, 145).

Camões já cantava para Portugal-centavo, que sonhava apenas com as moedas de sua algibeira, cada vez mais vazia. Porque, por ironia e por sábia Providência, enquanto Portugal só buscou dilatar o Reino de Deus, tornou-se poderoso e rico. Mas, na medida em que o Reino abraçou o “baixo amor” das coisas materiais, esvaziando a sua alma do amor do Infinito, perdeu, ao mesmo tempo, poder e fortuna. Só lhe restaram o vazio, a impotência e a pobreza, numa “austera, apagada e vil tristeza”.

Foi essa mesma sede das trinta moedas que fez no século XVII Portugal não compreender que a realização de sua vocação histórica estava na tentativa de recomeçar a reconstrução da antiga Cristandade por meio de uma união feudal com a Espanha, guardando sua autonomia. O orgulho nacionalista o impeliu então a ouvir mais as vozes que lhe vinham da Inglaterra protestante, a ouvir de preferência o tilintar das trinta moedas que Caifás, agora banqueiro, fazia tilintar promissoramente em Amsterdam. Portugal ficou separado da Espanha para manter-se independente. Mas passou a depender de Londres e da assim chamada Companhia das Índias… E passou a sonhar com o messianismo nacionalista do Sebastianismo… Para mais tarde esperar a fusão ao Mercado Comum Europeu…

Hoje estamos, nós católicos, separados por nacionalismos orgulhosos e invejosos. Já não se apresentam nossas nações, antes de tudo, como cristãs. Busca-se, não a união na Fé, mas o aumento do produto interno bruto, ou a exaltação política – sempre fanática – da nação.

Porém, o que dá unidade e inteligibilidade à História de nossas nações hispânicas é esse movimento único Reconquista – Navegações – Bandeiras. É esse movimento nascido na gesta de Covadonga, sancionado pelo Divino Crucificado em Ourique, que revela qual é a nossa vocação histórica. Vocação de Espanha e de Portugal. Vocação do Brasil e das antigas colônias espanholas da América: existir, viver e lutar pela propagação da Fé e pela dilatação da Cristandade.

É só voltando a seguir os estandartes de Covadonga, é só ajoelhando-nos, de novo, com D. Afonso em Ourique, é só combatendo a infidelidade e implorando a Deus pela conversão dos infiéis que recuperaremos nossa vocação histórica. É só quando voltarmos a ter a fé e a esperança dos antigos Cruzados-missionários que voltaremos a ser o que Deus quer que sejamos. Caso contrário, nada seremos. Só assim voltaremos a ter o Infinito na alma, a grandeza no coração, missão na História, e, em consequência, poder e riqueza.

Soprem de novo em nossas almas, os ventos de Covadonga.

Brilhem de novo em nossas madrugadas, a Cruz e as chagas de Ourique.

Singrem de novo nossas almas-caravelas os oceanos da gentilidade.

Derrubemos de novo, dos novos teocalis modernos, os ídolos mesquinhos e imundos do século XX.

Porque, para que servirão as belas estrelas, se no mar já não existirem as caravelas?

Quando a terra se abriu, nasceu a Espanha.

Quando o céu se abriu, nasceu Portugal.

Quando o mar se abriu, nasceu a América.

Quando se abrirão de novo nossos corações, para que Deus renasça em nossas almas?

Quando se abrirão de novo nossas mentes para que compreendamos o que somos na História, e renasça a Cristandade?

Neste quinto centenário da América católica roguemos a Deus que, por misericórdia, sopre, de novo, em nossas pobres almas, os ventos heroicos de Covadonga. Que Ele nos livre do espírito do ecumenismo destruidor da Fé, ecumenismo que mata nossa alma-Cruzada e esteriliza nossa alma-missionária. Que Ele nos liberte do espírito de orgulho e de inveja do nacionalismo, doutrina fratricida e destruidora da Cristandade.

“Eis que estou à porta de teu coração e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei em casa dele e cearemos juntos, eu com ele e ele comigo” (Ap 3, 20).

Vinde, Senhor Jesus, vinde e fazei-nos, a nós todos da América hispânica, dignos filhos de Covadonga. Dignos filhos de Ourique.

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Texto da palestra proferida pelo Prof. Orlando Fedeli em outubro de 1992, na cidade de Buenos Aires, por ocasião das comemorações do Quinto Centenário do Descobrimento da América.

 

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