Bento XVI condena as fontes modernistas do Concílio Vaticano II

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Orlando Fedeli

 

BENTO XVI CONDENA AS FONTE MODERNITAS DO CONCÍLIO VATICANO II

 

 

A “Aula” pronunciada pelo Papa Bento XVI, em 12 de setembro de 2006, na Universidade de Ratisbona, universidade na qual ele foi Professor, há muitos anos atrás tem causado enorme celeuma por causas de uma citação feita contra a jihad islâmica. (leia: Discurso do Papa Bento XVI na Universidade de Regensburg).

A fúria e o ódio maometanos contra essa “Aula” do Papa, tanta tempestade de areia tem levantado, no deserto de ideias, inclusive com ameaças de morte ao Papa, que a imensa nuvem de pó produzida ocultou o tema central do discurso Papal: a harmonia entre a Fé e a razão. O reboliço histérico maometano – que comprovou, por si mesmo, como o Papa estava certo ao acusar a irracionalidade das reações islâmicas – fez passar quase desapercebido do público o ponto álgido tocado pelo Papa em sua “Aula”: a condenação da Teologia Liberal dos séculos XIX e XX, assim como a condenação do método histórico-crítico, que nasceu dessa teologia liberal herética.

Ora, a Teologia Liberal e o método histórico-crítico de Harnack e Loisy foram elementos essenciais da heresia Modernista, condenada pela encíclica Pascendi, assim como foram também fontes teológicas do Concílio Vaticano II. Esse foi o ponto central e culminante do discurso de Bento XVI, e não a crítica aos métodos “missionários” do maometismo, que outrora eram a espada e a cimitarra, e que, hoje, são os tão “razoáveis” (???) homens-bomba de Bin Laden.

A “Aula” dada pelo Papa Bento XVI foi publicada originalmente com uma curiosa nota, em seu final, que reproduzimos aqui:

NOTA – Deste texto o Santo Padre se reserva oferecer, no devido momento, uma redação acrescida de notas. A redação atual deve pois considerar-se provisória

De onde se conclui, que o texto lido está ainda incompletofalta algo na redação e serão acrescidas notas.

Haveria algum trecho nessa “Aula” que indique incompletude?

 

***

 

Após uma pequena introdução, lembrando os tempos em que foi Professor nessa Universidade, Bento XVI passou ao tema de sua “Aula” sobre a harmonia da Fé com a razão.

Ele citou, então, um antigo colega da Universidade cujo ceticismo o levara a dizer que na Universidade de Ratisbona havia duas Faculdades que tratavam de uma coisa que não existia: Deus.

A seguir, Bento XVI, para combater esse ceticismo irracionalista, lembrou a polêmica que o Imperador Manuel II, Paleólogo, teve com um pensador maometano, Ibn Hazm, em 1391, na qual o Imperador criticava o método maometano de difundir a crença islâmica com a espada.

Foi essa passagem, colateral, que causou a ira furiosa e descontrolada, dos maometanos contra o Papa, provando, com sua própria reação, quanto o Islam se move pela paixão, e não pela razão.

Isso provocou uma recepção diplomática dos embaixadores maometanos por Bento XVI, e a publicação de uma nota explicativa sobre a intenção da sua citação do texto do Manoel II, Paleólogo.

Diz Bento XVI, nessa diplomática nota 3, agora dada a público, acrescentada evidentemente para acalmar a agitação frenética dos maometanos:

[3] Controvérsia VII 2c: Khoury, pp. 142-143; Förstel, vol. I, VII. Dialog 1.5, pp. 240-241.
“Esta citação [do Imperador Manoel II sobre o maometismo], infelizmente, foi tomada, no mundo muçulmano, como sendo a expressão de minha posição pessoal, suscitando assim uma compreensível indignação. Espero que o leitor de meu texto possa compreender imediatamente que essa frase não exprime a minha valorização pessoal do Corão, pelo qual tenho o respeito que é devido ao livro sagrado de uma grande religião. Citando o texto do Imperador Manuel II entendia eu por em evidência unicamente a relação essencial entre fé e razão. Sobre este ponto, estou de acordo com Manoel II, sem porém fazer minha a polêmica dele
(http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg_it.html – tradução e destaques nossos).

Claro que se poderia argumentar que essa nota, – evidentemente de caráter diplomático -, tem escasso valor doutrinário. Tanto mais porque o Papa reitera que mantém a acusação de Manoel II, Paleólogo, dizendo: “estou de acordo com Manoel II”. O Papa só afirma que não acompanha o tom brusco da argumentação do imperador”, argumentação feita “de modo surpreendentemente brusco, brusco ao ponto de ser inaceitável para nós” [“in modo surpreendentemente brusco, brusco al punto da essere per noi inaccettabile”]. E Bento XVI confirma que, citando o Imperador, quis apenas salientar a relação entre Fé e razão, que o Corão não respeitaria.

Poder-se-ia dizer também que a frase do Papa de que tem “o respeito que é devido ao livro sagrado de uma grande religião” também ela sibilinamente diplomática, pois que o Papa não esclarece qual é o respeito que se pode ter por esse livro de uma religião grande, como é o islamismo.

De qualquer modo, essa nota, ainda que sibilinamente diplomática, adotou um tom ecumênico que contraria a tese central da “Aula“ de Regensburg, mas confirma que o Papa só não aceita o tom brusco do Imperador, admitindo porém o conteúdo, a substância de seu argumento.
Voltando à análise da “Aula” de Regensburg, Bento XVI parte, então, do princípio que toda ação de Deus é razoável. E não podia ser diferente, pois se Deus é o autor de todas as coisas, e se Ele tudo fez com Sabedoria, a Fé não pode ser oposta à razão e nem às verdadeiras descobertas da ciência.  A oposição entre Fé e razão, entre Religião e Ciência, é uma das balelas do Iluminismo.

Dizemos nós, então, que se poderia montar uma série de proporções entre os seguintes termos:

 

 

O que se opõe à Fé não é razão, e sim o racionalismo, que é um delírio da razão. O racionalismo – quer o do Renascimento, quer o do chamado Iluminismo do século XVIII, que originou o cientificismo moderno -, conforme diz um filósofo não católico, Karl Popper, é, de fato, irracional:

“A atitude racionalista fundamental se baseia numa decisão irracional, ou numa fé na razão” (Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos, Ed. Itatiaia-Edusp, Belo Horizonte, São Paulo, 1974, 2 vol, pp. 238 -239 do 2. vol).

Pois, se toda razão é limitada, se toda razão individual reconhece sua limitação, então, a razão humana é limitada. Portanto, crer na onipotência da razão, como prega o racionalismo, o iluminismo, é um ato de fé irracional na razão.

“Não agir conforme a razão é contrário à natureza de Deus”, disse o Papa.

Perguntou então o Papa:

“A convicção que agir contra a razão está em contradição com a natureza de Deus é exclusivamente um pensamento grego, ou vale sempre e por si mesmo?” (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em Setembro de 2006).

E a resposta a essa pergunta veio imediata:

“Penso que neste ponto se manifesta a profunda concordância entre aquilo que é grego, no melhor sentido da palavra, e aquilo que é fé em Deus, fundamentada na Bíblia”. (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

Para Bento XVI, como não poderia deixar de ser, há então uma profunda concordância entre a razão, tal como ela se expressou na Metafísica grega com Aristóteles, e a doutrina Católica tal como revelada na Sagrada Escritura.

E o Papa demonstra que essa concordância, tal como ela nos é ensinada no Gênesis e no Evangelho de São João, através da colocação do Verbo de Deus, o Logos, a Sabedoria como Princípio de tudo, a noção de Deus como o Ego sum, é perfeitamente harmônica e concordante com a do conceito de Ser absoluto aristotélico, o Ato puro.

Bento XVI mostra ainda que essa concordância não foi um acaso, mas foi querida pela Providência divina, como “necessidade intrínseca de uma aproximação entre a fé bíblica e o interrogar-se grego”, fazendo São Paulo ter a revelação de que devia passar à Grécia, e não à Ásia:

“O encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era um simples acaso. A visão de São Paulo, diante de quem se tinham fechadas as vias da Ásia, e que, viu em sonhos um Macedônio e ouviu a sua súplica: ‘Passa à Macedônia e ajuda-nos!’ (cfr. At 16,6-10) – esta visão pode ser interpretada como uma ‘condensação’ da necessidade intrínseca de uma aproximação entre a fé bíblica e o interrogar-se grego”. (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

A harmonização entre a Fé e a razão, entre a metafísica grega e o Credo católico, foi realizada pelo Filosofia escolástica tomista, na Idade Média.

“Salutarmente, pois, proveu a divina clemência que mesmo aquelas coisas que a razão pode investigar fosse mandado abraçá-las pela fé; para que assim todos pudessem ser partícipes do conhecimento de Deus facilmente, e sem dúvida, nem erro.” (São Tomás de Aquino, Suma Contra Gentiles, vol. I, cap. V).

Portanto, aquelas verdades da filosofia grega que, embora acessíveis à razão, foram convenientemente dadas por Deus como verdades de fé, são partes integrantes da fé cristã. Um exemplo disso são as provas da existência de Deus, cuja negação foi condenada pela Igreja no Concilio Vaticano I.

A existência de Deus foi demonstrada por Platão e Aristóteles, mas também nos foi ensinada como verdade de fé. Assim diz o catecismo de São Pio X:

“Que nos ensina o primeiro artigo do Credo: creio em Deus pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra?

O primeiro artigo do Credo ensina-nos que há um só Deus, o qual é todo-poderoso, e criou o céu e a terra e todas as coisas que no céu e na terra se contém, isto é, todo o universo”.

Do mesmo modo, Sto. Tomás nos ensina em seu comentário ao 1º. artigo do Credo:

“Entre todas as verdades que os fiéis devem crer, a primeira é que existe um só Deus.” (São Tomás de Aquino, O Credo, Rio de Janeiro – Petrópolis. Ed. Vozes. 2006, p. 21).

Para Bento XVI, a concordância entre Filosofia grega e a Fé Católica representou então a harmonização entre a Fé e a Razão, entre a Religião e o que Bento XVI chamou de “autêntico iluminismo”:

“No fundo, trata-se aí do encontro entre a fé e a razão, entre autêntico iluminismo e religião”.

Claro que o termo “iluminismo”,  usado pelo Papa Bento XVI, em sentido diferente do ordinário, pode vir a gerar confusão e interpretações equivocadas, pois que por “iluminismo” se entende, ordinariamente, o racionalismo anticlerical e antirreligioso dos séculos XVII e XVIII, que pretendia que só a razão podia iluminar o homem, cuja mente estaria, então, nas trevas da superstição, por causa da irracionalidade da Fé.

Mais ainda. Para o iluminismo racionalista, a razão seria suficiente para tudo compreender, sem necessidade de ter a ajuda da luz da Fé. E esse conceito de “iluminismo” não é católico.

Se Bento XVI define “iluminismo” de outro modo – um iluminismo que incluiria a razão sem oposição à Fé, melhor teria sido chamar essa Filosofia harmonizadora da Fé com a Razão com o nome que ela teve na História da Filosofia: Escolástica tomista. Pois só a Escolástica tomista medieval realizou essa harmonia entre Fé e Razão. Usar termos de sentido conhecido ruim, dando-lhes novo significado palatável só pode causar confusão, exigindo explicações. Muito melhor teria sido falar diretamente em escolástica tomista e não em iluminismo, num sentido novo.

Em todo caso, Bento XVI defendeu a harmonia da Fé com a razão representada pela Metafísica grega.

O Papa não citou explicitamente, – e foi uma pena – a síntese perfeita entre razão grega e Fé católica, realizada na Idade Média pela escolástica tomista.

Por que não citou ele o tomismo e a escolástica?

Por receio de chocar os teólogos modernos, aqueles aos quais ele já aludiu, denominando-os de lobos?

Por prudência, para não causar reação violenta demais dos modernistas defensores explícitos da ruptura com a Igreja de sempre, através do chamado “espírito do Concílio Vaticano II”?

De todo modo, ficou evidente nesse discurso – de redação ainda não completa – que nesse ponto cabia a conclusão óbvia da defesa da filosofia aristotélico-tomista, a Escolástica, como a realizadora da harmonia perfeita entre Fé e razão, entre a Teologia e a Filosofia.

Verdade é que, logo a seguir, Bento XVI, indiretamente, elogia a Filosofia católica medieval, agostiniano-tomista, ao criticar a Filosofia de Duns Scoto, acusando-a de ter rompido a harmonia alcançada pelo intelectualismo católico medieval:

“Por honestidade, é preciso anotar neste ponto, que, na tardia Idade Média, desenvolveram-se tendências na teologia que rompiam esta síntese entre o espírito grego e o espírito cristão”.

“Em contraste com o assim chamado intelectualismo agostiniano e tomista, iniciou-se com Duns Scoto uma impostação voluntarística, que afinal levou à afirmação de que, de Deus, conheceríamos apenas a “voluntas ordinata”. (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006. Destaque nosso).

Com efeito, foi Duns Scoto que, com sua tendência obsessiva em criticar as teses tomistas, tanto sutilizou distinções, que destruiu a síntese alcançada entre Fé e razão.

Pior que tudo, Duns Scoto, acabou por colocar na base de tudo, não a Verdade, não o Verbo, o Logos, mas o querer, a Vontade. Como se fosse possível o querer anteceder o conhecer!

Duns Scoto poderia ter escrito: “no Princípio era o querer!” Ou ainda: “no Princípio era o fazer”.

Em verdade, Duns Scoto afirmou, sim, que no Princípio estava o amor. Pior: que no Princípio era a Liberdade.

Sim, a Liberdade. Aquela louca Liberdade que os terroristas da Revolução Francesa fizeram adorar em Notre Dame de Paris, em 1793, sob a forma de uma prostituta. Aquela mesma liberdade cantada por Beethoven e Schiler na Nona Sinfonia, e que os herdeiros do jacobinismo erigiram em Nova York, como Baal moderno.

Desse modo, Duns Scoto foi precursor de Goethe, que escreveu no Fausto: “No Princípio era a Ação”; foi o precursor de Blondel, um dos pais do Modernismo, autor da “A Ação”; foi o precursor do pensamento moderno e contemporâneo, que recusa a intelecção, colocando em seu lugar o Fazer, a Ação, a Liberdade.

Duns Scoto solapou a certeza tomista, que harmonizara, numa unidade perfeita, a Fé católica e a Metafísica, a Revelação e a razão, a Religião e a Ciência, Deus e o mundo.

Por tudo isso, bem razão teve Bento XVI de acusar esse filósofo franciscano de ter destruído a harmonia alcançada entre Fé e razão pela escolástica medieval, através do tomismo.

Desde quando Duns Scoto ensinava em Paris, em 1300, nasceram de sua filosofia univocista as duas tendências errôneas que destruíram as proporções que citamos acima.

E como Duns Scoto deu origem às duas negações da harmonia entre Fé e razão?

Ele fez isso, ao afirmar que o ser é unívoco, portanto, ao negar a analogia do ser, conforme fora ensinada por São Tomás.

Contra o erro univocista e antianalógico de Duns Scoto, disse bem Bento XVI:

“Em contraste com isto, a fé da Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada existe uma verdadeira analogia, na qual como disse o Concílio Lateranense IV em 1215, sem dúvida as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas contudo não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não é mais divino pelo fato de que o afastamos para longe de nós num voluntarismo puro e impenetrável, mas o Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e como logos agiu e age cheio de amor em nosso favor” (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

Negando que o conceito de ser seja análogo, e afirmando que ele é unívoco, Duns Scoto, ou negava o Ser por excelência – Deus – identificando o mundo com Deus, caindo assim no panteísmo; ou negava a criação, o mundo, afirmando que só existia o espírito divino infinito, negando ou condenando a matéria, caindo assim na Gnose.

Nas proporções acima enumeradas (Deus/Mundo, Alma/Corpo etc…), o conceito univocista de ser de Duns Scoto, ou negava os numeradores, tornando o Mundo divino (Panteísmo); ou negava os denominadores, afirmando existir realmente apenas a Divindade, sem criação, ou tendo a criação por má, como fruto de uma queda da Divindade no mundo (Gnose).

Uma das tendências erradas nascidas da aplicação do univocismo de Duns Scoto, a que negava todos os numeradores das proporções acima citadas (Deus Criador de um mundo feito à sua semelhança; alma proporcionada e harmônica ao corpo material; Fé iluminadora da razão; Igreja, guia e iluminadora do Estado; Religião harmônica à Ciência etc.) levava à divinização do mundo e da matéria.

Desse modo, dava-se todo valor à Criação, negando o Criador, atribuindo todas as qualidades da Divindade ao universo material, considerado eterno, infinito, onipotente, caindo no Panteísmo.

Consequentemente, supervalorizava-se o Estado, a Razão, a filosofia etc. Foi o que fez o franciscano Guilherme de Ockham.

A segunda corrente de erros, oriunda da negação do conceito analógico de ser, promovida por Duns Scoto, consistiu na negação dos denominadores, isto é, no afirmar que só Deus é ser, e que o mundo seria nada.

Se fosse assim, então o mundo – dada a criação dos anjos e dos homens – não teria sido feito à imagem e semelhança de Deus, e nem as coisas materiais revelariam algo de Deus por seus vestígios. Portanto, negava-se que as perfeições invisíveis de Deus pudessem ser conhecidas pelas qualidades do mundo, como ensinou São Paulo (Rm 1,20).

Essa posição, negadora do Universo criado e de seus valores, distanciava de tal modo Deus do mundo, que tornava a criação contrária à Divindade, o que é uma posição claramente gnóstica.

E Bento XVI mostra exatamente isso: como o voluntarismo de Duns Soto, rompendo a harmonia entre Fé e Razão, entre a ordem sobrenatural e a ordem natural, distanciava Deus tão longe do Universo, que se perdia a noção de que o mundo fosse feito à semelhança de Deus, que foi o erro da Gnose de Mestre Eckhart.

De Duns Scoto nasceram então duas serpentes: Ockham e Eckhart.

Frei Guilherme de Ockham foi o líder da corrente racionalista, naturalista, panteísta.

Mestre Eckhart foi o chefe da tendência irracional, imanentista, gnóstica.

Duas serpentes, uma oposta à outra. Ambas dialeticamente idênticas. Duas serpentes…

Ou ainda as duas pontas da língua única da Serpente, geradora de uma só mentira, com duas apresentações contrárias e iguais.

Dialeticamente contrárias e iguais. Como gêmeas siamesas, simétricas e contrárias. Essas duas correntes são, então, como as pontas da língua bífida da serpente herética.

Do solapamento do tomismo feito pelo voluntarismo irracionalista de Duns Scoto nasceram então as duas línguas da Mentira: o racionalismo sem Fé de Frei Guilherme de Ockham, e o Misticismo irracional de Mestre Eckhart.

A Filosofia aristotélico tomista – a escolástica medieval – havia realizado o que fora profetizado no salmo:

Et conculcabis leonem et draconem” (E esmagarás o leão e a serpente. Ps 90,13).

Realmente, a Filosofia escolástica medieval permitiu que a Igreja católica esmagasse quer o leão do Panteísmo, quer a serpente da Gnose.

O leão, a força orgulhosa da razão humana separada da Fé.

A Serpente, a malícia sutil da mística soberba e delirante da Gnose, negadora da razão e da sabedoria.

O Leão… Isto é, a Força sem Sabedoria: o Naturalismo, o Estado rebelado contra a Igreja. O racionalismo – o iluminismo em seu sentido próprio – sem Fé. O iluminismo inimigo da Fé e sempre inconciliável com ela.

A serpente… Isto é, a mística sem a Verdade. O Amor sem saber o porquê. O irracionalismo delirante disfarçado de amante sem razão.

Nos grandiosos portais das Catedrais góticas, no trumeau, era costume representar Cristo, esmagando a seus pés um leão e uma serpente: o Panteísmo racionalista e a Gnose irracional, as duas pontas da língua do demônio, o pai da mentira.

Não defendeu Ockham que não se pode provar que Deus exista através das perfeições do mundo?

Não defendeu Ockham que a suposta ordem atual do mundo é arbitrária, e que ele poderia ter sido feito em qualquer outra “ordem” e até ao contrário do que é? Portanto, sem nenhuma semelhança com o Criador?

Não defendeu Ockham que o Deus criador – se Ele existe realmente – poderia ter feito dez mandamentos contrários aos do Sinai?

O racionalismo ockhamista, por seu nominalismo negador dos universais, dialeticamente, desembocava no completo irracionalismo e no anomismo.

Não defendeu Mestre Eckhart que a razão engana o homem, para quem bastaria somente a Fé? Sola Fide?

Não defendeu Mestre Eckhart que só bastava o Amor, mas também que – dialeticamente contraditório – o verdadeiro amor consistiria em nada amar, nem em amar a Deus? Nem em querer salvar-se?

Não negou Eckhart qualquer analogia do ser, ao afirmar que se Deus é ser, o mundo é nada, e que se o mundo é ser, então Deus é o nada?

Não preconizava Mestre Eckhart uma ascese extrema, com penitências terríveis, para afinal, como os gnósticos carpocráticos, acabar por desembocar no anomismo, na orgia mística?

Quanta razão teve então o Papa Bento XVI, mostrando que, do voluntarismo de Duns Scoto, proviria toda a destruição da harmonia alcançada pela escolástica da Idade Média entre a Fé e a razão.

Foi nesse ponto que o Papa aludiu a problemas análogos, no maometismo, pois que essa destruição realizada pelo nominalismo racionalista de Ockham e pelo misticismo gnóstico de Mestre Eckhart tinha muita semelhança com a luta dialética entre o literalismo racionalista do sunismo contra o voluntarismo irracionalista do shiismo, as duas correntes dialéticas do Islam.

Daí a citação feita por Bento XVI, inteiramente de passagem – mas claro que intencional e bem de propósito – do voluntarismo maometano, que queria impor a crença maometana através da violência, através da espada, através do conhecido “crê ou morre”.

Disse então o Papa sobre o irracionalismo moral do nominalismo e da mística gnóstica de Mestre Eckhart, comparando-os com a interpretação literalista do Corão, promovida por Ibn Hazm:

“Além dela, existiria a liberdade de Deus, em virtude da qual Ele teria podido criar e fazer também o contrário de tudo aquilo que efetivamente fez. Aqui se esboçam posições que, sem dúvida, podem aproximar-se daquelas de Ibn Hazm e poderiam levar até à imagem de um Deus-Arbítrio, que não estivesse relacionado nem mesmo com a verdade e nem com o bem” (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

Desse modo, o mundo se tornava, não semelhança, mas oposição a Deus, como dizia a Gnose irracionalista. Ou, então, o mundo se tornava a única realidade, sem Deus, do qual o mundo fosse espelho, como ensinava o Panteísmo racionalista, que admitia possível uma outra ordem que fosse até irracional.

Daí, Bento XVI assim criticar o erro de Duns Scoto, comparando-o ao que ocorreu no Islam:

“A transcendência e a diversidade de Deus são acentuadas de modo tão exagerado, que também a nossa razão, o nosso sentido do verdadeiro e do bem já não são um verdadeiro espelho de Deus, cujas possibilidades abismais permanecem para nós eternamente inalcançáveis e escondidas por detrás das suas decisões efetivas” (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

E, de passagem, convém lembrar que Bento XVI criticou a doutrina filosófica de um beato, pois que Duns Scoto foi beatificado pela Igreja. Logo, pode-se criticar a doutrina de um beato, pois a beatificação não implica em decisão papal infalível.

A seguir, o Papa entrou no problema que ele denominou de “deselenização”, isto é, à tendência filosófica que tem marcado a Filosofia Ocidental, desde Duns Scoto, de separar a ordem espiritual da ordem material, a Fé e a razão, a Religião e a Ciência, Deus e o Mundo, a Igreja e o Estado, Alma e corpo, Teologia e Filosofia etc.

Ensinou Bento XVI:

“À tese que o patrimônio grego, criticamente purificado, seja uma parte integrante da fé cristã, opõe-se o requerimento da deselenização do cristianismo um requerimento que desde o início da Idade Moderna domina de modo crescente a pesquisa teológica” (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

Bento XVI demonstrou que, em resumo, teriam ocorrido três ondas de deselenização, nos últimos séculos, procurando minar a harmonia entre Fé e razão, visando separar a Fé Católica da Filosofia aristotélico-tomista:

  • 1a Onda de deselenização: a doutrina luterana da Sola Scriptura de Lutero;
  • 2a Onda de deselenização: a Teologia liberal dos séculos XIX e XX;
  • 3a Onda de deselenização: a atual “doutrina da inculturação”.

 

Vejamos o que disse Bento XVI da doutrina luterana, da Sola Scriptura, que se opôs à harmonia entre Fé e razão.

1a Onda de deselenização: a doutrina luterana da Sola Scriptura

Os erros de Duns Scoto, exacerbados pelas heresias de Ockham e de Eckhart, fizeram decair a escolástica medieval, destruindo a harmonia obtida pelo tomismo entre Fé e razão. Daí surgir a onda de que era preciso deshelenizar a doutrina cristã.

Supreendentemente, para estes tempos ecumênicos pós Conciliares, Bento XVI ensinou, contra a doutrina luterana, o seguinte, mostrando como o protestantismo foi antimetafísico e antirracional:

“A deshelenização emerge primeiro em ligação com os postulados da Reforma do século XVI. Considerando a tradição das escolas teológicas, os reformadores veem-se diante de uma sistematização da fé condicionada totalmente pela filosofia, isto é, perante uma determinação da fé a partir de fora em virtude de um modo de pensar que não derivava dela. Assim, a fé já não se apresentava como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na estrutura de um sistema filosófico”.

“A Sola Scriptura ao contrário procura a forma pura primordial da fé, do modo como está presente originariamente na Palavra bíblica. A metafísica aparece como um pressuposto derivante de outra fonte, da qual é necessário libertar a fé para fazê-la voltar a ser totalmente ela mesma. Com a sua afirmação de ter que por de lado o pensar para dar espaço à fé, Kant agiu com base neste programa com uma radicalidade imprevisível para os reformadores. Com isto ele ancorou a fé exclusivamente à razão prática, negando-lhe o total acesso à realidade”. (Bento XVI, Aula Magistral na Universidade de Ratisbona, em 12 de Setembro de 2006).

Portanto, Bento XVI acusa a Reforma protestante de ter repelido a harmonia entre a Fé e a Razão.

Como, então, manter um diálogo racional com uma crença irracional?

Como o Concílio Vaticano II pode sustentar, então, que é possível, e que é dever, realizar o diálogo “ecumênico” entre uma Fé harmônica com a razão – a do Catolicismo – com uma Fé irracional, a do Protestantismo ?

É só com base no “Evangelho” do Relativismo que isso se torna possível, que o irrazoável seja tido como conciliável com o razoável.
Condenando a busca de uma Fé pura separada da razão, e expressa na fórmula luterana da Sola Scriptura, Bento XVI condena, de novo, todo protestantismo.

E isto tem consequências profundas. Ainda que o Papa não tenha explicitamente condenado o diálogo ecumênico com os protestantes, depois desse discurso, contra o Sola Scriptura e contra Kant – o teólogo do Protestantismo – Bento XVI começou a cantar o réquiem do ecumenismo.

Isso vai diametralmente contra o Concílio Vaticano II.

 

A Gritaria Modernista Contra Bento XVI

E é o que denunciou, após a gritaria maometana, a gritaria furiosa dos modernistas.

A bem conhecida agência modernista, Adista, protestou que, com o discurso de Regensburg, o Papa Bento XVI “enterrou o Vaticano II”:

“Bento XVI, em 23 de Março de 2006, pedia o parecer dos Cardeais convocados para uma reunião plenária. No debate – soube-se depois – alguns purpurados se mostraram favoráveis ao projeto iminente “reconciliação”; outros , em vez, perplexos, pelo temor que o preço a pagar fosse o sepultamento [l’affossamento] do Vaticano II”. (Adista News, Papa Ratzinger Readmite a Ala direita Anticonciliar na Comunhão Eclesial, 18 de Setembro de 2006 – 33545. Roma-Adista http://www.adistaonline.it/?op=articolo&id=24178&PHPSESSID=3e84e28f147c08f78873461ccaaf4ad0)

Nessa mesma notícia se citavam as palavras do modernista Padre Falsini afirmando que, com esse discurso, o Papa , deu “uma bofetada no Vaticano II”.

“Comentando a questão do Padre Laguérie e seus companheiros, Padre Rinaldo Falsini (que, no passado, já tinha criticado os motivos pelos quais fora readmitida a liturgia ‘tridentina’: v. Adista n. 53/03), declarou à nossa agência: ‘Não vi o texto recente mas, se os jornais bem reportaram, o fato de que se conceda ao Instituto Bom Pastor, como missão, o rito pré conciliar, verdadeiramente é estranho e surpreendente. É um passo inesperado. Se este é o caminho seguido para buscar a reconciliação com os lefebvristas, trata-se certamente de uma bofetada [uno schiafo] no Concilio, como também em sua interpretação dada até hoje, até mesmo pelo próprio Papa. É inconcebível que o recém criado Instituto tenha como missão a de interpretar o Concilio sem sequer aceitá-lo”. (Adista News, Papa Ratzinger Readmite a Ala direita Anticonciliar na Comunhão Eclesial, 18 de Setembro de 2006 – 33545. Roma Adista http://www.adistaonline.it/?op=articolo&id=24178&PHPSESSID=3e84e28f147c08f78873461ccaaf4ad0

O site modernista Golias escreveu sobre a Aula de Ratisbona:

“O Papa atual parece romper com o estilo aberto, mas lúcido, de diálogo interreligioso procurado e intensificado por seu predecessor. Uma convicção fundamental parece sobretudo animá-lo: fazer triunfar a Verdade Católica mais do que procurar junto com outros, crentes e não crentes, um futuro mais humano”. “Nesse sentido, ele vira as costas aos textos do Concilio Vaticano II sobre a liberdade religiosa (todo homem de boa vontade e de qualquer tradição religiosa que tenha, é detentor de uma parcela de verdade, em sua busca de Deus)”. (Christian TerrasRomano LiberoLa croisade de Benoît XVI, 23 de Setembro de 2006, http://www.golias.ouvaton.org/La-croisade-de-benoit-XVI).

O famigerado teólogo modernista espanhol, Tamayo, escreveu sobre o discurso de Bento XVI, em Ratisbona:

“No plano teológico, ele definiu os perfis da doutrina católica em sua mais pura ortodoxia, sem nenhuma concessão ao diálogo com os novos climas culturais e as novas correntes de pensamento” (Juan José Tamayo, El discurso “teocons” de Benedicto XVI, 18 de Setembro de 2006, artigo em El Periódico, apud http://www.atrio.org/?p=354).

E ainda:

“No terreno político, Bento XVI defende a necessidade da presença de Deus na vida pública. Uma presença que por vezes não respeita a laicidade, desemboca com frequência na confessionalidade da sociedade, da política e da cultura, e entra em choque com a doutrina do Concílio Vaticano II sobre a autonomia das realidades temporais” (Juan José Tamayo, El discurso “teocons” de Benedicto XVI, 18 de Setembro de 2006, artigo em El Periódico, apud http://www.atrio.org/?p=354).

Finalmente, sobre a evolução, remetendo-se a outra fala de Bento XVI em sua última viagem à Alemanha:

“No plano científico, o pensamento teocons voltou a ressuscitar a velha polêmica entre ciência e fé. Questiona o valor científico da teoria da evolução e chega a considerá-la uma ideologia” (Juan José Tamayo, El discurso “teocons” de Benedicto XVI, 18 de Setembro de 2006, artigo em El Periódico, apud http://www.atrio.org/?p=354).

O também modernista site Átrio, por sua vez comenta a “Aula” de Ratisbona, dizendo:

“O discurso de Ratisbona é uma proclamação desde o papado do programa contido na Dominus Iesus, de 2000”. (Antonio Duato, El núcleo duro del discurso de Ratisbona, 18 de Setembro de 2006, http://www.atrio.org/?p=355).

Não há dúvida, pois, que os modernistas – que, como filhos das trevas, enxergam melhor e mais longe que os filhos da luz – consideram que Bento XVI, esbofeteou, o Vaticano II, deu-lhe as costas, e que está enterrando o Vaticano II.

O ódio dos inimigos da Fé contra Bento XVI levou a BBC – que não é uma instituição qualquer – a falsificar documentos para acusar Ratzinger como responsável, em 1962, de acobertar casos de pederastia. Ora, em 1962, Ratzinger era um simples Padre, e não tinha nenhuma autoridade no Vaticano.

 

***

 

A “Aula” de Regensburg, não era a ocasião para o Papa fazer uma análise mais profunda e pormenorizada da Reforma Luterana. Ele se limitou a apontar como o Sola Scriptura redundava num posicionamento que separava Fé e razão.

Entretanto, convém lembrar que, se, de início, Lutero se posicionou favoravelmente ao misticismo irracional e ao sacerdócio universal dos fieis, ele mudou depois de posição, quando os líderes da corrente mística, que vão dar origem ao anabatismo – Thomas Münzer e Nicolau Storck – ameaçaram sua liderança na Reforma. Lutero condenou os líderes do reformismo radical camponês, que exigiam a comunidade de bens assim como a proclamação do sacerdócio universal dos fiéis, ao defenderem que todo fiel era plenamente sacerdote. Para os chefes da reforma mística, toda estrutura jurídica da Igreja deveria ser anulada, colocando em seu lugar uma igreja puramente espiritual, carismática e quiliástica.

Lutero aliou-se aos Príncipes contra o movimento camponês místico e irracionalista, dando origem ao luteranismo ligado e submetido ao Estado. Nasceu assim um protestantismo racionalista, que procurava dar uma interpretação da Escritura mais por meio da pesquisa “científica” dos textos sagrados do que pela inspiração pessoal, que os anabatistas atribuíam à inspiração do Espírito Santo. Desde então, formaram-se duas correntes no protestantismo:

1 – Uma corrente racionalista, “científica”, doutoresca do protestantismo, que procurava conhecer os mistérios da Bíblia por meio de uma hermenêutica fundamentada na pesquisa linguística e histórica os textos sagrados;

2 – Uma segunda corrente mística e irracionalista, que pretendia ser guiada diretamente por inspiração do Espírito Paráclito, e que iria dar origem às seitas mais radicais, comunistas e carismáticas do protestantismo.

Foi nesta segunda corrente, que surgiu a figura mística do sapateiro Jacob Boehme, cujos escritos – profundamente eivados pela Cabala de Isaac Luria de Safed – vai ter uma influência decisiva e profunda no processo religioso, filosófico, artístico e científico de todo o Ocidente.

Foi dos escritos gnóstico-cabalísticos de Jacob Boehme que nasceu o Pietismo de Spenner, o qual, por sua vez gerou a Filosofia Idealista alemã e o Romantismo.

Kant, Herder, Haman, Goethe, Schelling, Schleiermächer, Novalis, Hegel, foram de origem pietista (Cfr. Ladislau Mittner, Storia della Letteratura Tedesca, Dal Pietismo la Romanticismo, Giulio Einaudi Editori, Milano, 1964).

A Filosofia de Kant foi radicalmente antimetafísica, negando toda a capacidade humana de conhecer a realidade.

Bento XVI mostra, sucintamente, qual foi o papel de Kant na deshelenização do pensamento ocidental, dizendo:

“Com a sua afirmação de ter que pôr de lado o pensar para dar espaço à fé, Kant agiu com base neste programa com uma radicalidade imprevisível para os reformadores. Com isto ele ancorou a fé exclusivamente à razão prática, negando-lhe o total acesso à realidade”.

Kant é tido como o grande pensador do Protestantismo. Dele é que nascerá a chamada Teologia Liberal protestante do século XIX que, por meio de Harnack terá imensa repercussão na Teologia católica, pois que foi ela que causou o Modernismo e, enfim, o Concílio Vaticano II.

Para Kant, a razão fecharia o homem em seu mundo interior subjetivo, sem lhe permitir de modo algum atingir e conhecer a realidade. Portanto, a Filosofia de Kant recusava todo conhecimento do ser. Daí seu pensamento ser antimetafísico. Pelo mesmo motivo, Kant julgava que o homem seria ainda menos capaz de alcançar a esfera do transcendente, do divino (Cfr. Jean Rivière, Le Modernisme dans l’Église, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1929, p. 38).

Evidentemente, a Filosofia kantiana e todas as suas derivadas posteriores (Blondelismo, Fenomenologia, Bergsonismo, Existencialismo, Personalismo) tinham que se opor à Escolástica tomista, essencialmente metafísica.

2a Onda de Deshelenização: a Teologia Liberal e o Método histórico Crítico

Assim introduz Bento XVI a exposição da segunda onda de deshelenização antimetafísica no pensamento ocidental, confessando que ele mesmo, Bento XVI, foi influenciado, em sua formação filosófica e teológica, por essa onda antirracional que separava Fé e razão:

“A teologia liberal dos séculos XIX e XX trouxe uma segunda onda no programa da deshelenização: seu representante eminente é Adolf Von Harnack. Durante o tempo dos meus estudos, como nos primeiros anos da minha atividade acadêmica, este programa era fortemente operante também na teologia católica”.

Por Teologia Liberal dos séculos XIX e XX, entende-se o conjunto das obras de Schleiermächer, Ritschl, Renan, Adolph Von Harnack, Paul Sabatier e outros que foram as raízes da heresia Modernista que aflorou em Maurice Blondel, Alfred Loisy, Laberthonière, Tyrrell, Buonaiutti e muitos outros.

Em 1900, Adolph von Harnack, pronunciou, em Berlim, conferências sobre “A Essência do Cristianismo”. Elas foram publicadas em livro, e foi essa obra de Harnack que desencadeou a crise do Modernismo com a publicação dos livros O Evangelho e a Igreja, e Em torno de um Pequeno Livro do Padre Alfred Loisy.

Harnack defendia teses que visavam despojar o cristianismo de toda relação com a Metafísica grega, na verdade, do tomismo.

“Acreditando reencontrar na fé em Deus Pai a mensagem essencial do Evangelho de Jesus, a esse título, o autor [Harnack] expurgava o Evangelho de todo elemento dogmático, hierárquico e cultual. A seguir, considerando por meio desse critério as formas históricas do cristianismo, ele rejeitava desdenhosamente a Igreja como uma alteração da pura doutrina evangélica, seu dogma não sendo senão um produto do espírito grego e sua organização uma cópia do império romano.” (Cfr. Jean Rivière, Le Modernisme dans l’Église, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1929, p. 38).

Note-se a completa coincidência do que afirma Jean Rivière com o pensamento de Bento XVI, na “Aula” de Regensburg, acusando Harnack e a Teologia Liberal de serem contrários ao pensamento grego, por isso mesmo, de serem contra os dogmas, tal como o repetirá a heresia modernista. E foi por essa recusa do pensamento “grego” – tomista – por ser contra a proclamação de dogmas, que o Vaticano II recusou ser dogmático, preferindo dizer-se apenas pastoral. E o incrível é que pseudos “pensadores católicos”, que ignoram doutrina e História, se atrevam a dizer, contra toda lógica e provas, que o Vaticano II foi dogmático e infalível.

Diz ainda Bento XVI sobre Harnack:

“Como pensamento central sobressai, em Harnack, o regresso simplesmente ao homem Jesus e à sua mensagem simples, que viria antes de todas as teologizações e, precisamente, também antes das helenizações: seria esta mensagem simples que constituiria o verdadeiro ápice do desenvolvimento religioso da humanidade. Jesus teria dado um adeus ao culto em favor da moral. Em conclusão, Ele é representado como pai de uma mensagem moral humanitária”.

Como não ver que, com essas palavras, Bento XVI toma posição contra o antropocentrismo do Vaticano II, assumido explicitamente pelo próprio Paulo VI? Como não ver, nessas palavras de Bento XVI, a crítica ao cristianismo filantrópico dominante nas paróquias de todo o mundo, depois do pastoral Vaticano II, que colocou o fazer acima do crer, o “amor” desvinculado do conhecer, o querer como princípio, e não o Verbo e a Verdade?

Disse, a seguir, Bento XVI, em Regensburg:

A finalidade de Harnack no fundo é reconduzir o cristianismo em harmonia com a razão moderna, libertando-o, precisamente, de elementos aparentemente filosóficos e teológicos, como por exemplo a fé na divindade de Cristo e na trindade de Deus”. (Destaque nosso)

Como recusar reconhecer, nessas palavras de Bento XVI, que ele deu, de fato, as costas ao Vaticano II e a seu desejo de abandonar a terminologia e o pensamento escolástico-tomista, para se expressar de acordo com o pensamento moderno, conforme disse o próprio João XXIII no discurso de abertura do Vaticano II?

“É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo.” (João XXIII, Discurso de abertura do Concílio Vaticano II, 11 de Outubro de 1962).

Depois de criticar a Teologia Liberal, apresentando-a como causadora da deshelenização, Bento XVI passa à crítica do chamado método histórico-crítico, preconizado por Harnack, e introduzido e defendido, entre os católicos, pelo herege modernista Padre Alfred Loisy, condenado por São Pio X, na encíclica Pascendi e no Decreto Lamentabili.

“A exegese histórico-crítica do Novo Testamento, na sua visão, coloca novamente a teologia no cosmos da universidade: teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico e, portanto, estritamente científico. O que ela indaga sobre Jesus mediante a critica é, por assim dizer, expressão da razão prática e por conseguinte também sustentável no conjunto da universidade”.

Pelo método histórico crítico as Sagradas escrituras são examinadas e analisadas apenas do ponto de vista histórico, separado totalmente da Fé.

Isso levou Loisy e os modernistas a distinguir um Cristo da história – simples homem – do Cristo da Fé.

Pelo exame científico dos Evangelhos, deveriam ser tidos como mitos e lendas todos os milagres narrados nos Evangelhos: a concepção virginal e a ressurreição inclusive, não passariam de lendas piedosas inventadas pelos primeiros cristãos. O sobrenatural ficaria assim totalmente eliminado visto que a ciência moderna não pode considerá-lo como real. Toda a exegese atual segue, hoje, esse método modernista condenado por São Pio X, e, agora, de novo apontado como errado, por seu anti-intelectualismo, por Bento XVI.

O Papa Bento XVI aponta como causa do erro desse método histórico-crítico o subjetivismo kantiano:

“Na base encontra-se a autolimitação moderna da razão, expressa de maneira clássica nas ‘críticas’ de Kant, que entretanto foi ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Este conceito moderno da razão baseia-se, em síntese, num resumo entre platonismo (cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou”.

Esse subjetivismo radical desembocou, na prática, de um lado, numa negação completa do sobrenatural e no ateísmo materialista, e, de outro lado, no fideísmo gnóstico. De ambos os modos, não há lugar para a harmonização da Fé com a razão. Deus criador é excluído quer pelo racionalismo panteísta, quer pelo fideísmo gnóstico.

No pensamento moderno não há lugar para Deus, diz o Papa:

“Contudo, é importante para as nossas reflexões o fato de que o método como tal exclui o problema Deus, apresentando-o como um problema acientífico ou pré-científico. Portanto, com isto encontramo-nos diante de uma redução do leque de ciência e razão que é obrigatório pôr em questão”.

Como então o Vaticano II, seguindo a diretiva de João XXIII, aceitou adaptar a doutrina católica a um modo de exposição condizente com esse pensamento moderno excluidor de Deus e do sobrenatural?

Porque a aceitação dos parâmetros do pensamento moderno reduziria o catolicismo a um miserável fragmento dele, disse Bento XVI:

“Neste momento é suficiente ter presente que, numa tentativa de conservar o caráter de disciplina ‘científica’ da teologia à luz desta perspectiva, do cristianismo restaria apenas um miserável fragmento”.

Não é difícil constatar que, após o Vaticano II, da religião Católica restaram fragmentos, ruínas, graças à auto demolição promovida pela Nova Igreja Conciliar, que nasceu desse desastroso Concílio pastoral.

Bento XVI, em sua grande “Aula” de Regensburg, aponta que, em consequência desses princípios destrutivos do modernismo, o próprio homem é reduzido em valor, caindo tudo num relativismo completo e destruidor de toda ordem, exatamente como se constata na degeneração atual da sociedade:

“Mas devemos dizer mais: se a ciência no seu conjunto é apenas isto, então é o próprio homem que, com isto, sofre uma redução. Mas as interrogações propriamente humanas, isto é, as do ‘de onde’ e do ‘para onde’, os questionamentos da religião e do ethos, não podem encontrar lugar no espaço da razão comum descrita pela ‘ciência’ entendida deste modo e devem ser deslocados no âmbito do subjetivo. O sujeito decide, com base nas suas experiências, o que lhe parece religiosamente sustentável, e a ‘consciência’ subjetiva torna-se portanto a única exigência ética. (…) O que permanece das tentativas de construir uma ética partindo das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia, é simplesmente insuficiente”.

Será necessário frisar que, condenando a Teologia Liberal e condenando o Método Histórico-críticoBento XVI renova as condenações de São Pio X ao Modernismo?

Será necessário frisar que, condenado a Teologia Liberal e condenando o Método Histórico-críticoBento XVI está implicitamente minando o próprio Vaticano II?

É por terem entendido perfeitamente que, na sua “Aula” de Regensburg, Bento XVI, no fundo, solapou as bases do Concílio Vaticano II, é que os modernistas uivaram e ganiram de ódio. Eles sentiram o golpe. Como reagirão?

Porque foi deflagrada uma guerra entre Bento XVI e os hereges que dominaram a estrutura eclesiástica desde o Vaticano II.

Compreende-se o que dizia a pequena Jacinta de Fátima:

“Lúcia, é preciso rezar muito pelo Papa. Vocês não veem o Papa sozinho rezando num palácio, e uma multidão jogando pedras nele?”

É preciso rezar muito pelo Papa!

3a Onda da Deselenização: a Doutrina da Inculturação

Não podendo negar o fato do relacionamento profundo entre Fé e Metafísica grega, tal como se realizou, de fato, na História, e tal como alcançou sua perfeição na escolástica medieval, a heresia anti-intelectual de nossos dias procura relativizar o valor do pensamento grego unido à Fé, defendendo a tese de que, assim como São Tomás fez uma síntese do pensamento grego pagão com o cristianismo, assim se poderiam fazer novas sínteses com quaisquer culturas que fossem, e com quaisquer sistemas filosóficos.

Tal afirmação provém evidentemente da falsa ideia de que não há, realmente, uma filosofia objetivamente verdadeira, que contenha verdades objetivas válidas para todo o sempre, como também que não existiria uma cultura objetivamente verdadeira com valores universais objetivos.

É a afirmação do relativismo filosófico e cultural.

Bento XVI condena esse relativismo cultural e filosófico dizendo:

“Em consideração do encontro com a multiplicidade das culturas hoje há quem goste de dizer que a síntese com o helenismo, realizada na Igreja antiga, teria sido uma primeira inculturação, que não deveria vincular as outras culturas. Isto deveria ter o direito de retroceder até ao ponto que precedia aquela inculturação para descobrir a simples mensagem do Novo Testamento e inculturá-la depois novamente nos seus respectivos ambientes”.

Esta tese não é simplesmente errada; contudo é grosseira e imprecisa. De fato, o Novo Testamento foi escrito em grego e tem em si o contato com o espírito grego um contato que se tinha maturado no desenvolvimento precedente do Antigo Testamento. Sem dúvida existem elementos no processo formativo da Igreja antiga que não devem ser integrados em todas as culturas. Mas as decisões de fundo que, precisamente, se referem ao relacionamento da fé com a investigação da razão humana, estas decisões de fundo pertencem à própria fé e são os seus desenvolvimentos, conformes com a sua natureza”. (destaque nosso).

Bento XVI foi taxativo: a doutrina da inculturação a quaisquer culturas e pensamentos é errada, grosseira e imprecisa! Ótimo!

E mais: as decisões de fundo que, precisamente, se referem ao relacionamento da fé com a investigação da razão humana, essas decisões de fundo pertencem à própria fé”.

Não se poderia ser mais claro!

 

***

 

A conclusão de todo esse discurso de extraordinária importância, logicamente só podia ser uma: é necessário voltar á escolástica medieval, à filosofia aristotélico-tomista.

Não é possível outra conclusão. Entretanto, surpreendentemente, Bento XVI chega a uma conclusão que deixa perplexo quem lê com atenção essa “Aula” magistral.

Disse o Papa:

“Com isto chego à conclusão. Esta tentativa, feita apenas em linhas gerais, de crítica da razão moderna a partir do seu interior, não inclui absolutamente a opinião de que agora se deva voltar atrás, à época anterior ao iluminismo, rejeitando as convicções da era moderna”.

Como???

Se a doutrina católica exige que exista uma harmonia entre Fé e razão, e se esta harmonia foi destruída a partir de Duns Scoto, e se essa harmonia existia antes de Duns Scoto, como solucionar a crise senão retornando à situação anterior à destruição, anterior a Duns Scoto?

É absolutamente necessário retornar à situação anterior ao voluntarismo de Duns Scoto.

É absolutamente necessário, então, retornar a São Tomás!

É preciso voltar à Escolástica!

E por que Bento XVI recusou dizer isso, que não é preciso retornar ao período anterior ao Iluminismo? Porque, segundo o Papa…

“Aquilo que no desenvolvimento moderno do espírito é válido, é reconhecido sem hesitações: todos estamos gratos pelas grandiosas possibilidades que ele abriu ao homem e pelos progressos no campo humano que nos foram proporcionados”

E o que se pode aceitar do desenvolvimento moderno? Por exemplo, as novas técnicas odontológicas, médicas, ou de transporte, bem superiores às medievais? É claro que sim!

Mas não é desse desenvolvimento técnico que tratou o Papa em sua “Aula” de Regensburg.

Ele não estava tratando de anestesias e esparadrapos, aviões e transístores. Tratava da harmonia da Fé com a razão. Não de técnica!

Foi tirada uma conclusão que não resulta das premissas colocadas.

Mesmo assim, o Papa não permanece cego á ambivalência do progresso técnico moderno, mostrando-se preocupado por ter ele criado, ao lado de coisas bem úteis, algumas ameaças universais apocalípticas.

“Porque com toda a alegria diante das possibilidades do homem, vemos também as ameaças que sobressaem destas possibilidades e devemos perguntar-nos como podemos dominá-las. Só o conseguiremos se razão e fé estiverem unidas de uma nova forma; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua vastidão. Neste sentido, a teologia, não só como disciplina histórica e humano-científica, mas como verdadeira teologia, ou seja, como interrogação sobre a razão da fé, deve ter o seu lugar na universidade e no amplo diálogo das ciências”.

Em vez de pedir, então um retorno à escolástica tomista medieval, Bento XVI propõe “um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso”. Propõe um novo “iluminismo” (???):

“Só o conseguiremos [vencer os perigos trazidos pelo racionalismo moderno] se razão e fé estiverem unidas de uma nova forma; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua vastidão. Neste sentido, a teologia, não só como disciplina histórica e humano-científica, mas como verdadeira teologia, ou seja, como interrogação sobre a razão da fé, deve ter o seu lugar na universidade e no amplo diálogo das ciências”. [O destaque é nosso].

 

Conclusões

A grande conclusão desse importante discurso do Papa Bento XVI é que o Concílio Vaticano II, com seu aggiornamento ao mundo moderno e ao pensamento que divorciou a Fé da razão, saiu bem abalado pela condenação do Papa aos dois fundamentos da Teologia Conciliar: a condenação da Teologia Liberal e do método histórico-crítico, que os peritos do Vaticano II herdaram da heresia modernista.

Abalados esses dois pilares, é questão de tempo o desmoronamento do pastoral Vaticano II.

É claro que as consequências dessa condenação da Teologia Liberal e do método histórico-crítico serão inevitavelmente tiradas ainda que lentamente. Mas pronunciada a palavra, quem poderá deter seus efeitos?

Quanto ao recuo timorato e contraditório para um “iluminismo” conciliador da Fé com a razão, isso não passará de uma fórmula natimorta por sua própria intrínseca contradição.

Não existe um iluminismo conciliável com a Fé.

Voltemos, pois corajosamente a São Tomás. E que urrem e uivem os lobos modernistas, pela “bofetada” que Bento XVI deu no Vaticano II, antes de realmente lançá-lo ao sepulcro.

 

São Paulo, 6 de Outubro de 2006
Orlando Fedeli

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